Editorial
Fraternidade a partir das prisões
A Campanha da Fraternidade da Igreja Católica em 1997 enfrentou uma situação limite - a dos presos e prisões no Brasil. Com isto representou um julgamento:
- da sociedade que condiciona e ajuda a deflagrar a criminalidade e a violação dos direitos individuais;
- do modo como a sociedade encara e enfrenta a criminalidade.
Encerrada a campanha, cabe avaliar seu conteúdo, saldo, pistas para a continuidade.
Preliminarmente cabe analisar que a campanha, diante de um tema difícil e até, provavelmente, para melhor articulá-lo com a vida das pessoas e o questionamento da sociedade, colocou a questão em dois níveis: um mais específico, a situação dos encarcerados (A fraternidade e os encarcerados - tema), e outro, mais global (Cristo liberta de todas as prisões - lema). Ambos citados, em cada paróquia ou pregação o acento pode ter recaído mais num ou noutro.
LENDO O TEXTO BASE
Resumindo e refletindo sobre o diagnóstico, trabalhamos sobre o texto básico da campanha. Este enfrentou visões distorcidas e muito generalizadas sobre os presos. A visão de que alguns já nascem bandidos e, acrescentamos, são uma outra espécie de gente, que são irrecuperáveis e não devem ter o tratamento das pessoas normais; a de que o crime foi uma ação totalmente livre de "gente que não presta" esquecendo os diversos condicionantes e limitações à liberdade. A de que só os honestos, direitos, têm direito, o qual não existiria para os bandidos. A de que, diante da miséria do povo e da animalidade dos bandidos, eles têm até muita mordomia, com casa e comida de graça, às custas do Estado. Em contraposição a estas posições conservadoras e expressão de uma cultura autoritária, critica, também, a crença muito espalhada entre setores progressistas de que o criminoso é simples vítima e produto da sociedade em posição que, bem intencionada, termina "criminalizando" as classes pobres, respaldando sua condição de suspeitas. Esquecendo que, complete-se, se pobreza fosse igual à criminalidade, a maioria do povo brasileiro seria de bandidos. Não o é, apesar dos pobres serem tratados como os suspeitos preferenciais pela polícia. Justificando, especialmente nas regiões onde a identificação entre negro e pobre é maior, a frase denuncia de que, "no Brasil, ser pobre é crime e negro é agravante."
No diagnóstico das opiniões sobre crime e criminosos se poderia ir mais longe. Lembrar a vigência, no Brasil, do conceito medieval da pena - como um instrumento de vingar a sociedade, castigar o criminoso, fazê-lo, sofrendo, expiar os seus pecados. A concepção moderna, oriunda da Revolução Francesa, da pena como instrumento de ressocialização e re-educação do preso para sua reintegração na sociedade não é assimilada por vastas camadas da população. Para estas, auxiliadas pela fala de programas de rádio e televisão, o desejo é que o criminoso "apodreça na cadeia". Pena seria só cadeia e "cana dura". Esta imagem da função das penas e da cadeia ajuda a explicar porque, sendo as cadeias "Sucursais do inferno", mesmo tendo sua realidade conhecida não se levantaram, até então, ondas de indignação e solidariedade. O documento mostra que as prisões estão superlotadas com quase metade dos condenados amontoados em delegacias ou estabelecimentos de triagem. A comparação das condições previstas em lei com as reais são a mais cruel e até sarcástica comprovação de uma das características das elites brasileiras. Situadas na periferia do Ocidente, adotam ou não reagem à colocação, no papel, das normas mais modernas. Não têm condições de expor e legitimar ideologicamente sua verdadeira prática e assumem, como prova de civilização e meta para um futuro indefinido, colocar no papel direitos e intenções humanizadoras. A Lei de Execução Penal prevê espaço mínimo por preso, fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas, possibilidade de educação e existência de bibliotecas no presídio; atendimento médico, farmacêutico e odontológico, assistência jurídica para os presos pobres, assistência social para amparar as vítimas, a família do preso e prepará-lo para a liberdade; assistência religiosa e prática livre do culto; direito ao trabalho inclusive para remissão da pena (1 dia da pena por 3 de trabalho); visitas de amigos, familiares, esposas e companheiras. Muito pouco disto é realmente feito o que, inclusive, leva os presos, procurando chamar a atenção e insistindo em afirmar que também são gente, a rebeliões, algumas bem violentas, que desencadeiam o medo na sociedade e a repressão sobre eles.
Quem são eles? A imensa maioria são homens (96%), pobres (95%), miseráveis, que não podem (85%) contratar advogados. Contestando imagem dominante e porque o censo penitenciário foi nacional a divisão entre brancos (56%) e negros e mestiços (43%) corresponde, mais ou menos, à da sociedade brasileira. A duração média das penas seria de 5 anos, o que, teoricamente, deveria facilitar a ressocialização. Na prática, sob pressão das condições de "vida", brutalidade e até tortura de muitos funcionários, ociosidade e mistura com presos mais violentos e condenados a penas maiores, os condenados encontram na cadeia uma escola de crimes que leva a um alto grau de reincidência, de volta para a cadeia.
Cadeia que prefere os pobres e seleciona os crimes. Ladrões e assaltantes armados de "ganância" e "revólveres", mas não de canetas e computadores. Não há, praticamente, presos de colarinho branco. Reforçando velho aforismo dos meios forenses de que o Código Civil (e Comercial) é para os ricos e o Código Penal para os pobres.
Depois de rever a história de luzes e sombras na relação entre Igreja Católica, criminalidade e direitos dos presos, o documento coloca algumas condições que criando "Prisões por trás das prisões" seriam elementos que estimulariam a tentação para o crime: o consumismo associado à desvalorização do trabalho, a concentração de renda associada ao estreitamento dos canais de qualificação e ascensão social; a cultura do "jeitinho" e do clientelismo (sinteticamente, a cultura do privilégio que predomina sobre a da cidadania): os maus exemplo da classe dirigente; o crescente individualismo legitimado pela ideologia neoliberal e veiculado pelos meios de comunicação; o desamparo e esfacelamento da família; a impunidade decorrente não só da força do poder e do dinheiro, mas de um consentimento implícito inserido na cultura; a falta de confiança nas instituições levando a violência e realimentando a sua cultura que se amplia, inclusive, em âmbito mundial.
O julgamento desta realidade, como não podia deixar de ser, concentrou-se, na CF, em critérios evangélicos.
Lembra que, independente do crime, o autor continua sendo humano; o Deus cristão sempre mantém aberto o caminho do perdão e recomeço; o reconhecimento do erro é caminho necessário de emenda e reconciliação consigo mesmo e com os outros, mas o perdão de Deus é gratuito, modo de impedir que o ressentimento e a violência tenham a última palavra.
Assume que a justiça deve ser feita, a concessão do perdão exige a reparação do mal e o ressarcimento do prejuízo, mas como Cristo veio para os doentes e não para os sãos, como o critério do seu julgamento são atos concretos pelos necessitados, os criminosos devem ser atendidos "porque precisam, não porque sejam bons".
Assim, se desencadearia a dinâmica da solidariedade que deve auxiliar criminosos, presos e vitimas dos crimes e enfrentar tudo aquilo que na sociedade pode alimentar a espiral de violência.
Ao passar do julgar para o agir o texto da CF concentrou-se em uma política específica para os encarcerados. o que já coloca a tarefa de aprofundar o combate às causas mais amplas da violência e criminalidade.
Quanto à situação dos presos, propõe-se toda uma nova política penal e penitenciária com:
Esta política dependeria também do(a):
- ênfase nas penas alternativas;
- mudanças no projeto penitenciário: modernização da arquitetura penitenciária, descentralização penitenciária, isto é ,municipalização e regionalização das prisões; democratização da assistência jurídica, melhoria de assistência médico-psicológico-social; política efetiva de implementação do trabalho com a devida remuneração, separação entre presos primários e reincidentes, engajamento da família no esforço de reintegração no convívio social, profissionalização dos servidores do sistema;
- criação de Conselhos de comunidade para acompanhar a execução das penas;
- formação e reciclagem dos pessoal dos serviços penitenciários e dos policiais;
- reforma do judiciário para diminuir sua morosidade e burocratização e permitir a participação e controle sociais;
- fortalecimento das defensorias públicas;
- criação de disciplinas específicas de Direitos Humanos nas faculdades de Direito e no ensino secundário;
- montagem de sistema de apoio aos presos, inclusive pelos cristãos;
- combate a toda política de extermínio;
- ampliação da Pastoral Carcerária.
Enfim, propôs-se toda uma política de revalorização e resgate dos mais marginalizados, dos excluídos. Isto em uma sociedade que banaliza a violência, mantém a miséria, aprofunda a exclusão.
A dimensão da tarefa e o conhecimento dos obstáculos levou a explicitação de três linhas de ação. Todas a nível de conscientização - formação de consciência na comunidade eclesial por uma educação que ajude a caminhar para uma sociedade fraterna, reconciliada e solidária; educar para a cidadania, aprofundando a questão dos direitos civis e educar a opinião publica para uma leitura crítica dos meios de comunicação, denunciando preconceitos, imagens deformadas dos presos e reagindo à cultura da violência.
Da conscientização deve nascer e se ampliar - é a etapa não explicitada pelo texto base - o trabalho de mobilização e organização.
PROSSEGUINDO A REFLEXÃO
Resumida a mensagem, quais os seus resultados?
De início, o mais importante. Lançou uma onda de humanização e solidariedade aos presos, enfrentando a tendência de desumanização crescente de suas imagens e brutalização de suas pessoas. Lembrou que criminosos, vitimas e familiares de uns e outros são, todos, pessoas e merecem atenção e cuidados.
Apresentou e, fazendo-o, colocou em julgamento um sistema que criminaliza os pobres, mas garante a impunidade aos ricos. A identificação (e luta para posterior erradicação) das raízes da impunidade , coloca como tarefa a necessidade de aprofundamento da analise. A esta análise contribuiremos com alguns elementos.
Partiremos da ambigüidade da relação dos brasileiros com as leis. Estas são, geralmente, vistas não como emanando da vontade e participação popular, mas como algo feito por "eles" (os poderosos, os "homens") e que pode ou não ser aplicada de acordo com os contatos e o prestígio de cada pessoa. Por isso, existe o ditado "para os amigos tudo, para os inimigos a lei". À experiência da lei como coisa mais ou menos desconhecida, arma que pode ser usada mais ou menos arbitrariamente, se soma a constatação de que continua existindo, na prática, uma lei para os pobres e "fracos" e outra para os ricos e poderosos.
Esta relação ambígua com a esfera legal permite que, provocando a reflexão das pessoas digamos: "No Brasil, os ricos e poderosos passam por cima da lei e os fracos e pobres, quando podem, passam por baixo".
Não conhecendo nem interiorizando, muitas vezes, leis como parâmetros de comportamento, com padrões diferentes e legitimados para suas ações na casa e na rua, vivendo em uma sociedade extremamente desigual, os brasileiros vivem em uma cultura na qual se desenvolvem necessárias estratégias de relacionamento e sobrevivência (o lado positivo do "jeitinho"), muitas vezes aceitam como "naturais" e irremovíveis privilégios e "espertezas".
É interessante aprofundar a diferença, na percepção social, entre crime, irregularidade e esperteza.
Restringe-se, comumente, o uso da palavra crime para atos que violam diretamente a integridade física (homicídio, estupro) e para roubos e assaltos contra a pessoa ou seu patrimônio. O descumprimento da lei pelos administradores e dirigentes é geralmente considerada uma "irregularidade (quando apontada pelos Tribunais de Contas, por exemplo) ou, caso se tenha conseguido descobrir uma "brecha" na lei, construído uma nova interpretação, uma prova de esperteza.
Atualmente, na presidência imperial de Fernando Henrique Cardoso, chegou-se a extremos. A Presidência da República condena e pressiona publicamente o Supremo Tribunal Federal porque ele reconheceu o óbvio - o direito à isonomia dos servidores federais inscrito na Constituição. E anuncia, como prova de esperta "competência", que vai passar alguns anos para pagar o devido. Ao mesmo tempo, o "escândalo dos precatórios", repercutido por toda a "mídia", mostra que Governadores sem recursos usaram o dinheiro da venda de títulos públicos destinados a pagar condenações judiciais para realização de obras e, caso de Pernambuco, inclusive para pagar décimo terceiro salário de funcionários públicos. Preferiram, na melhor das hipóteses, utilizar uma "brecha" para conseguir recursos para os Estados que enfrentar a política econômica que os diminui. Aliás, o caso dos precatórios, mostrando como, na prática, funciona o sistema financeiro expõe, mais uma vez, dois dos crimes mais generalizados (e geralmente impunes) da elite brasileira - a sonegação fiscal e a remessa ilegal de recursos para o exterior. Ao final, a sonegação será o único crime pelos quais os empresários pagarão (multas), na medida em que comissões e lucros dos mais altos do mundo são "normais" no Brasil.
Além da lei que pode ou não ser aplicada outra constatação que se precisa aprofundar é a relação entre os pobres e o Judiciário. Não só é difícil o acesso dos pobres à justiça e ao Judiciário (às vezes, coisas muito diferentes), como também a força e a inércia do Judiciário atuam geralmente contra os pobres e excluídos.
Finalmente, a campanha de 1997 nos permite estimular a luta contra os desrespeitos aos direitos humanos.
Conhecemos as causas profundas dos desrespeitos: a desigualdade econômica e social; a tradição, história e cultura autoritárias e com alto potencial de violência; o tipo de modernização promovida por um capitalismo que prega prazer e consumo sem limites morais e inviáveis para a maioria; a ambigüidade e liberdade humana que permite a opção pelo egoísmo e o mal.
A reflexão promovida pela campanha nos permitiu julgar um sistema criminógeno a partir de um seu produto e limite - os encarcerados. E a partir desse limites reabastecer as forças para transformar e reconciliar a sociedade.
Cadernos do Ceas