Editorial
Há esperança na face do povo?
Mais um ano chega ao seu término, sem que nada tenha acontecido. As mesmas tragédias, as mesmas conversas: assaltos, seqüestros, assassinatos de trabalhadores rurais, meninos de rua, filantropias... ou como diria a letra da canção, do jeito que já foi um dia. A selvajaria das ruas se casa à já corriqueira nos campos. Os sem terras continuam sem terras, presos continuam a se amontoar e a se rebelar, numa trajetória onde nada de surpreendente parece causar sobressaltos aos donos do poder. Tudo tão trivial, como tentam nos fazer crer os noticiários da T.V.
A fé não conseguiu demover a montanha. As esperanças de que o ano de 97 fosse um ano da virada se perderam num vendaval de lamentações: contra os políticos canalhas, contra o dirigente traidor, as instituições falidas, a falta de verbas para a saúde, educação... enfim, contra tudo que foi prometido e não foi realizado. Os mesmos lamentos e a mesma ladainha, sempre acompanhado do tradicional: quem sabe não será o próximo ano melhor? Ainda mais quando este começa com o tradicional carnaval, a maior demonstração da nossa efusiva espontaneidade, e se encerra com novas eleições presidenciais, um outro desfiar de promessas repetidas e inesgotáveis mas que não deixa de acalentar esperanças.
Os que governam e mandam no poder acreditam nesta permanente renovação da fé no futuro, num futuro qualquer, ou ... no futuro que eles querem, ou ... num futuro como eles querem. Não só acreditam, ou fingem acreditar, como precisam acreditar. Esta é uma pré-condição para o sucesso de suas manobras de sustentação em equilíbrio: para que um mercado de sonhos por eles patrocinados não morra e se perpetue; como farsa, talvez, mas enfim, esta também não deixa de fazer parte da vida.
Em se tratando de farsa, o que finda foi certamente dos anos mais pródigos; de vida nem tanto: sobraram encenações, faltaram inovações. Com mímicas e trejeitos, por mais um período conseguiu-se manter o Real no panteão. A unidade das forças políticas foi capaz de assegurar sua impunidade. De pouco valeram admoestações. Críticas a uma estabilidade monetária que desemprega, causa instabilidade entre os que estão empregados e incerteza nos que sequer adentraram o chamado mercado de trabalho, sequer foram consideradas; quando não foram taxadas de exotéricas, ou extemporâneas. O desequilíbrio das finanças mundiais também: como abalar a autoconfiança de governantes que dispõem de 50 a 60 bilhões de dólares de reservas? Contra fatos parece - como se diz popularmente - não haver argumentos. Mas, enfim, foi essa a tônica de todo o ano que já finda: os governantes tudo fazendo em defesa de uma pretensa estabilidade que haviam promovido, e seus críticos o tempo todo tentando demovê-los dessa postura considerada arrogante de não serem contrariados, ainda que para tanto os dados apresentados sejam os mais convincentes.
A questão é a seguinte: o ano que termina parece esgotar um ciclo. As políticas de estabilização não mais respaldam confianças inabaláveis num futuro promissor. Como se não bastasse o que está a ocorrer em países considerados meninas dos olhos do capitalismo internacional, como Tailândia, Malásia, ou mesmo México e Indonésia, às voltas com profundas estabilidades estruturais, seus próprios dirigentes não parecem ter muita certeza quanto ao futuro imediato de sua criação: a forçada estabilidade monetário-inflacionária.
Tal como nos países ditos emergentes da Ásia, o mito da estabilidade no Brasil vem sendo sustentado através de políticas de resultados concretos muito pífios do ponto de vista social. O que veio a se consolidar no ano que passou foi aquilo que se esperava deste apego neo-liberal, tanto das equipes asiáticas como a do Governo brasileiro. De um lado, uma elevada concentração de riquezas patrimoniais nas mãos dos que se aproveitaram da farra das privatizações e dos ganhos facilitados em bolsas de valores e títulos diversos, através de uma permissiva política financeira; de outro, um empobrecimento crescente da população, à medida em que cresce o desemprego estrutural e baixam os salários dos que permanecem empregados, ou conseguem se empregar, como decorrência da onda crescente de informalização.
Não foi por acaso, diga-se, que isto veio a acontecer; não foi, como se acredita por aí, algum desvio de rota corrigível numa reedição desta administração. Não, este foi mesmo o propósito. A política de readequação estrutural do país, como de outros recém-emergentes parceiros ideológicos na Ásia e América Latina, foi conduzida de acordo com esses parâmetros e expectativas, por mais cruel que isto possa parecer a bem intencionados e crédulos cidadãos.
Algo, no entanto, parece embaralhar e conturbar o jogo de manobras do poder. Se o objetivo sempre foi o de promover a elevação dos lucros, quebrando a força da classe trabalhadora através do desemprego massivo, esperava-se também que este ano anunciasse novos rumos e possibilidades de crescimento que não fosse tão só baseado na circulação financeiro-especulativa. Mas eis que nada disso parece sequer transpirar. As ponderações de Greespan, do Banco Central dos E.U.A, ou do mega-especulador George Soros, pedindo cautela (!) aos aplicadores não foram suficientes para inverter o rumo. O capital continua a voar em busca do ganho fácil e de curto prazo, e os investimentos produtivos reais escasseiam em qualquer parte do mundo, comprometendo a estabilidade global, sob a ótica, inclusive, dos que mandam no poder mundial.
Não surprende a preocupação de uma Alemanha perseguida por volume de desemprego, que já atinge cerca de 4.100.000 trabalhadores, ou de um França e de uma Inglaterra que resolvem alterar, ainda que muito timidamente, algumas das regras do jogo até então prevalecentes. Como não é surpreendente, por paradoxal que possa parecer, a atitude passiva do governo brasileiro, de simplesmente disfarçar, fingir tranqüilidade, e de procurar vender-se cada vez mais barato como representação de um espaço subordinado no contexto internacional; de sequer demonstrar qualquer veleidade de soberania no momento em que dele se exigia uma tomada de posição mais firme, seguido pelos compromissos externos e pela necessidade de afirmação diante dos credores como elemento confiável de um clube do qual só participam os que perfeitamente assimilam as regras do jogo predominantes.
O que se evidenciou durante todo esse período foi que o governantes acreditaram demais na salvação vinda de fora, não da situação do povo mas de suas estatísticas. O que não aconteceu. O país permaneceu como um paraíso das aplicações puramente especulativas do capital financeiro internacional, sem qualquer reversão destas para investimentos diretos na produção; nenhuma tentativa de maquiar essa situação foi bem sucedida, sendo pouco convincentes os esforços de traduzir uma permanência maior no país das aplicações na bolsa de valores em moeda estrangeira como investimento direto. Mudanças, estas sim, vêm se processando na situação do povo que, mesmo firme na sua esperança, já não consegue mais controlar seu ceticismo quanto ao que pode acontecer num país que aposta cada vez mais na estática: no deixa como está para ver como é que fica. Mudanças que se coadunam com o momento de instabilidade geral vivida pelo país, assimilada, neste caso, no seu aspecto social, como perda de esperança.
Os requebros dos políticos de Brasília têm visado a tão só equilibrar a aliança que dá sustentação ao atual bloco no poder. À exceção de uns poucos - mas muito poucos mesmos - o parlamento não conseguiu ecoar a voz dos descontentes. A crise das organizações representativas de cunho popular tem contribuído, também, para refrear o ânimo dos que ainda crêem na possibilidade da luta e do enfrentamento como saída para esse quadro de letargia em que nos encontramos. O povo continua criativo nas suas formas de sobrevivência nos mais diferentes espaços: nos bairros periféricos, nos meios rurais mais afastados, onde quer que seja. A luta pela sobrevivência tem sido uma constante. A solidariedade entre os populares, o compromisso com a vida pela união concreta dos interesses, através de sua horizontalização, ainda parece, porém, muito tímido, para a dimensão das necessidades. Algo que ao governo não passa despercebido; ainda mais a uma equipe, como a atual, dotada de razoável percepção sociológica.
A sensibilidade governamental para com o povo tem sido a mesma do cientista, imbuído do princípio da neutralidade frente a seu objeto: a frieza e o cálculo. De um lado, encarando a pobreza e seu crescimento como um resultado circunstancial, logo superável mercê de uma esperada arrancada desenvolvimentista; de outro, ativando o cinismo muito típico daqueles que se profissionalizam na política, no samba de uma nota só: a ordem como pressuposto de dias melhores.
De um modo ou de outro, os governantes têm apostado em dois eixos que, de certo modo, demarcaram o ano que passou: na fuga para a frente, no tocante a uma abordagem mais séria das conseqüências sobre a população da continuidade do plano de estabilização que o elegeu; e na ruptura com qualquer possibilidade de construção de novos mecanismos institucionais, partindo dos próprios setores populares, afinando seus instrumentos no intuito de romper qualquer possibilidade de movimentos enraizados e organizados, sobretudo no campo.
O que tem se observado é uma freqüente subestimação dos impactos sobre a estabilidade macroeconômica dos déficits nas contas correntes do país previstos até o final de 97; algo tão mais grave quanto mais, conjunturalmente, as fugas de capitais têm se sucedido. Frente a este quadro, as respostas governamentais têm sido as mais simplórias; respostas tais como as de que o Brasil não é México, ou de que o Brasil não é a Argentina, Tailândia, Malásia etc, em tudo contrariando as posturas do capital circulante financeiro; este que tem demonstrado freqüente desconfiança no país ante os níveis de desgaste do atual quadro internacional, sobretudo daquele quadro em que o país está inserido, ou dos países ditos emergentes.
De concreto, os governantes têm optado por atuar dentro de suas margens de possibilidade estratégica - se assim pode-se falar - preservando os interesses de integração passiva num contexto ao qual procuram se articular sem, em nenhum momento, ousarem interferir; sendo que uma dessas margens reside justamente no controle do movimento popular, especialmente dos movimentos no campo, que têm ameaçado aquilo que respalda sua aceitação como sócio menor e subordinado do clube dos países capitalistas dominantes: a estabilidade política necessária a uma reprodução sem atropelos dos capitais investidos, de qualquer natureza.
O arrocho sobre as representações sindicais urbanas, o descaso com suas manifestações, às quais tem respondido quase que apenas com a força policial e a dedicação em tempo integral à destruição do movimento dos trabalhadores rurais sem terra são parte desse programa prioritário. Talvez o que motivou a fala do Ministro da Justiça, Iris Rezende, a afirmar, numa entrevista à imprensa, em setembro, que a prioridade do governo, a partir de então, estará voltada com afinco para a defesa da propriedade, e dos proprietários, por extesão, contra invasões promovidas pelos movimentos sociais. O governo sinaliza assim para uma necessidade de paz; não com os trabalhadores, e não parece ser este o seu objetivo, nem do Ministro da Reforma Agrária. Mas paz com os empresários, com os investidores, com os especuladores, com todos aqueles que têm na propriedade e na renda que esta propicia, o eixo fundamental da sua reprodução.
O governo mostra a sua face: a defesa da propriedade a qualquer custo; e tem seus escudeiros no seio do corpo ministerial. E o povo? Qual é a face do povo, num momento em que este atravessa um dos momentos críticos de sua história, na seqüência de um movimento de repressão a suas aspirações mais legítimas e mínimas como trabalhar e viver? Se em 97 foi de luta e de enfrentamento de manobras poderosas, em 98 mais ainda tenderá a ser; afinal, não parecem ser tranqüilos os dias que nos esperam diante da passividade ameaçadora de um governo ancorado na sombra das velhas e carcomidas autocracias.
Cadernos do Ceas