O tema da Campanha da Fraternidade de 1997 promete levantar muita poeira. Existe, porém, o risco de a Igreja fixar mais a atenção nas "prisões morais". O que seria uma pena.
Fala mansa e aguerrida num mesmo compasso, dando a entender que a batalha por justiça e liberdade exige um bocado de ternura. Eis aí uma das tantas lições de vida que a religiosa e psicóloga amazonense Maria Emília Guerra Ferreira, 52 anos, confessa ter aprendido desde que passou a trabalhar com os presos da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.
Membro da congregação das Cônegas de Santo Agostinho e militante da Pastoral Carcerária, Maria Emília conversa com desenvoltura sobre o tema da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano - os encarcerados. "Os detentos são filhos do desajuste social, da miséria e das drogas", ela diz. Lamenta que instituições criadas para a reeducação dos presos estejam falidas, porque "participam do mesmo culto ao 'deus-lucro' da sociedade capitalista, em sua versão neoliberal".
Desde o ano passado, anda com a agenda lotada de compromissos - debates, seminários e palestras junto a grupos e comunidades. "O tema promete levantar muita poeira", ela comenta. Mas vai depender bastante de como será abordado. Porque há o risco de se fixar mais nas chamadas "prisões morais". "Temos que falar de prisão por causa da divisão social, econômica e política entre pobres e ricos."
Segunda de seis irmãos de uma família que migrou cedo de Manaus para São Paulo, Maria Emília conta que a dedicação aos excluídos foi amadurecendo ao longo da vida, e que deve muito à família. Um exemplo sempre relembrado é o da tia-avó parteira, que acudia mulheres pobres na hora do aperto.
Desde os tempos de noviça, fez da democracia uma bandeira de luta. Eram os anos duros da ditadura, e a congregação a que pertence chegou a ser tachada de comunista pelos militares.
Em 1972, já formada em psicologia, trocou a periferia da metrópole pelas caatingas do Nordeste. Sente saudades dos treze anos passados entre Recife, o agreste pernambucano de Tacaimbó e o interior da Paraíba. Fez parte da equipe que sonhou e deu início ao Centro de Formação para Missionários do Meio Rural, em Serra Redonda/PB, junto com o teólogo da libertação José Comblin, tido como um dos seus "gurus".
Em 1985, quando regressou a São Paulo, Maria Emília ganhou o mundo dos sofredores de rua, com as Oblatas de São Bento, e do grande presídio Carandiru. Hoje, tendo prestado concurso, é psicóloga do Estado e trabalha no Departamento de Saúde do Sistema Penitenciário.
Os presos e presas ocupam totalmente o tempo e as preocupações de Maria Emília, de segunda a segunda, dia e noite. Mas ainda sobram alguns minutos para cultivar uma velha paixão: a música. "A música prepara o clima para a arte maior: o amor", diz a Irmã poeta, autora de "Procurando a liberdade, caminheiro...", um cântico que anda na boca do povo das comunidades pelo Brasil afora.
A emoção toma conta dos seus olhos quando mostra fotografias dos amigos que já perdeu nos labirintos tortuosos do presídio: Luís, Cinturão, Mílton, Rodolfo, Maria, Peninha, Gisa... Um rosário de nomes e apelidos, vidas arrebatadas pela Aids, pela violência policial, pelo tráfico de drogas..., pelo descaso do Estado. Em 1992, quando ocorreu o massacre de 111 presos no Carandiru, acompanhou os familiares ao Instituto Médico Legal para o reconhecimento dos corpos.
Maria Emília diz o que pensa. E o que pensa, sente e faz, logo escreve. O seu livro "A produção da esperança" - tese de mestrado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo - é um relato do trabalho e experiência na Casa de Detenção de São Paulo. É dessa experiência, e dessa esperança, que ela fala na entrevista a SEM FRONTEIRAS.
Sem Fronteiras Como surgiu a idéia de trabalhar no presídio?
Maria Emília O padre Antônio Macedo, da Pastoral Carcerária, me chamou para ajudá-lo na Casa de Detenção de São Paulo. Naquele dia estava sendo celebrada a missa no Pavilhão 8, considerado um dos mais perigosos. Ali estão as "cobras criadas", os "bandidões", no conceito da polícia.
Você sentiu medo?
Não. O que senti foi muita indignação. Fazia mil perguntas sobre o que leva uma pessoa a estar ali, naquelas condições. Não é possível existir gente dentro desse esquema de prisão, do jeito como a coisa é concebida no Brasil. A começar pela própria arquitetura, que é uma das questões que mais me afligem.
Como assim?
O espaço físico incide muito no comportamento dos detentos, mais do que horários e regras que estão obrigados a seguir. A arquitetura do presídio é repressiva e violenta, não é educativa. Isso, sem falar da superlotação. Para mim, foi um grande choque o contato com essa realidade, pois eu vinha de duas experiências totalmente diferentes: no sertão nordestino, onde a vista se perde nos horizontes da caatinga, e nas ruas da cidade, onde também há liberdade.
O que a levou para a psicologia?
Sempre tive boas professoras de psicologia, brilhantes, entusiasmadas. Isso me influenciou. Mas também gostava muito de tocar piano. Uma das grandes dúvidas da minha vida foi essa: seguir a carreira de pianista ou a de psicóloga? Como queria ser freira e dar a vida pelos pobres, acabei optando pela segunda. Resolvi cuidar dos sons que ecoam no coração das pessoas.
Que sons você consegue captar por detrás das grades?
São vozes que evocam o desejo de liberdade e a vontade de viver, apesar de tudo. Uma das fases mais felizes da minha vida está sendo esta, em que convivo todo dia com os presos e presas. Eles são os meus grandes mestres, junto com o padre José Comblin e também a Irmã Assunção, religiosa do Bom Pastor que há 35 anos trabalha com a população carcerária.
Gostaria que a sociedade olhasse os detentos a partir das qualidades que eles possuem. Por detrás de cada história há a capacidade de suportar anos e anos de prisão, sessões de tortura e castigos de toda sorte, sem se deixar morrer ou se matar.
Lembra algum personagem especial dessas histórias?
São tantos e tantas, pois trabalhei também durante quatro anos no presídio feminino. Um exemplo é o do Seu Davi, que passou 23 anos na cadeia. É a resistência em pessoa, um artista. Está dando a volta por cima. Foi acolhido por uma comunidade de base de Osasco, em São Paulo, e desta participa ativamente, além de fazer parte, como músico, da banda da prefeitura do município. Como é que esse homem, nesse tempo todo, não se deixou quebrar por dentro? Como conseguiu sobreviver, sem se deixar morrer nem matar?
Quais os seus horários de trabalho?
Comecei com visitas de duas horas, uma vez por semana, até ficar todos os dias, das 9 da manhã às 5 da tarde. Quando estou em casa, tento estudar mais o problema, lendo livros sobre violência e psicanálise. É um trabalho feito em equipe.
Concretamente, o que faz a Pastoral Carcerária?
Começamos com grupos de estudo da bíblia e visitando familiares dos detentos. Em seguida, passamos a criar pequenos grupos de ajuda a aidéticos e doentes mentais.
E atualmente?
Em março de 96, fui convidada pelo diretor do Departamento de Saúde do Sistema Penitenciário a ajudar nos trabalhos que ali estavam se desenvolvendo, especialmente as ações concretas voltadas para os doentes mentais presos e para a saúde integral da mulher presa. No sistema penitenciário, como no mundo, as mulheres parecem não existir. Pouco ou nada há especialmente pensado para elas, talvez pelo fato de constituírem apenas 3,6% da população carcerária. Chega-se ao absurdo, em certos distritos policiais, de as mulheres presas serem obrigadas a usar miolo de pão ou lençol durante o período menstrual. Já conseguimos melhorias, mas ainda falta muito.
De que modo a CF deste ano pode contribuir para uma mudança desse quadro?
A campanha promete levantar muita poeira, porque a questão das prisões, no Brasil, não está sendo levada a sério. Penso que a cadeia é como um laboratório: ajuda a analisar e entender a sociedade. Vai ser um momento para a gente se olhar na cara e dizer: olha o que estamos produzindo. Por que isso está acontecendo? Quais as causas e quem são os verdadeiros responsáveis?
O texto-base da CF espelha bem a realidade?
Participei dos trabalhos que resultaram depois no texto-base. Há o risco de se falar apenas das 'prisões morais'. Temos que falar de prisão por causa da divisão social, econômica e política entre pobres e ricos.
Tem gente que acusa a Pastoral Carcerária de defender bandido. Acho que a sociedade deveria agradecer a quem cuida dos doentes sociais. Se não se cuida dessas pessoas, consideradas marginais, o banditismo pode se tornar ainda mais cruel.
De que forma a Igreja está dando ouvidos a essa profecia?
Como no caso do movimento de Jesus, há um movimento de Pastoral Carcerária, isto é, a Igreja marcando presença lá onde a vida é negada. Uma presença que não consiste apenas em celebrar missa, ainda que isso seja extremamente positivo, pois contribui para ampliar os espaços de liberdade na prisão.
O trabalho na cadeia é muito complexo, porque você não trata só com presos, mas também com a instituição penitenciária, a família, o trabalho, a saúde, a escola, a religião. Por isso, necessita de tempo, metodologia, programa, periodicidade, construção, aprendizado.
Acho que a Pastoral Carcerária, em São Paulo e em outros lugares, está caminhando para essa presença mais eficaz, para ser realmente uma escola de vida.
E o seu livro "A produção da esperança"?
É o resultado de uma tese de mestrado na PUC de São Paulo. É um pouco a questão do evangelho, quando diz que o Reino de Deus está escondido. Sustento que o corpo do preso é uma profecia pelo avesso. O livro alerta para a insanidade do sistema penitenciário e da sociedade, que teima em viver conforme os valores do capitalismo. Cada rebelião é um sinal dos tempos. Mas ninguém dá ouvidos a essas profecias. Quando é que vão reparar na profecia que os corpos dos presos estão proclamando?
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