Cultura popular

Nordestino
alegra São Paulo


"Apesar de tudo, a vida é uma festa." O migrante nordestino em São Paulo quer assumir a sua cultura e manter acesa a alegria de viver.


Texto: Immaculada Lopez - Fotos: Paulo Lima


O pessoal vem de longe, de bairros afastados ou até de cidades vizinhas. Pega duas, três conduções, mas não importa. Se faz isso para trabalhar, por que não também para se divertir? Afinal, sexta à noite, sábado e domingo são dias de forró. A música ao vivo toma conta do Centro de Tradições Nordestinas, o CTN, no bairro paulistano do Limão.

"A gente dança a noite inteira", garante dona Maria José. A cada duas semanas, ela deixa os filhos e a netinha em casa para passar o dia ali, junto com uma colega. Vai matar as saudades da sua Alagoas. "Aqui, a gente encontra o pessoal da terrinha... e até umas paqueras", ri envergonhada.

Batom alegre na boca, brinco dourado na orelha, sapato novo nos pés, Maria José e tantas outras moças se enfeitam para o baile. "O pessoal vem é brincar", resume Tia Dé, que dá nome a uma das barracas de comida. Ela e o marido, Seu Zé, trabalham no CTN desde a inauguração, há seis anos. Baianos da cidade de Serrinha, todos os fins de semana preparam baião-de-dois, buchada, vatapá, mandioca, carne-de-sol, carne-seca, acarajé... para matar a vontade de quem chega.


POVO FAZ A FESTA - "Imagine um assalariado que gosta de baile e tem dez contos no bolso. Se ele for num salão, gasta todo o dinheiro só pra entrar." Para Seu Zé, o sucesso não tem mistério: "Aqui, ele entra de graça, dança a noite inteira, arruma namorada e, com os dez contos, bebe suas cachaças e até come alguma coisa!".

O CTN surgiu no meio da capital como espaço para dançar, cantar, comer e falar do jeito nordestino. Tudo isso também pode ser feito em outros salões, restaurantes e bares da cidade, mas o CTN ganha de longe: no tamanho e na forte companhia de uma emissora de rádio, a Rádio Atual.

Na verdade, o centro de tradições nasceu da rádio - anunciada como a primeira emissora nordestina da cidade, alcançando hoje todo o país. Como ponte entre Nordeste e Sudeste, divulga o forró e o repente, recebe e manda recados dos ouvintes, além de ser um meio de fazer política. Tanto a rádio como a área de lazer pertencem ao deputado federal José de Abreu, do PSDB, que ganhou a simpatia de muitos eleitores.

"O CTN incorporou até mesmo o coronelismo nordestino, usando a comunicação, a religiosidade e o forró para fins políticos assistencialistas", ressalva Valdiran Ferreira dos Santos, do Serviço Pastoral dos Migrantes. Mas, acima de tudo, o povo faz a festa.


PADRE CÍCERO, FREI DAMIÃO... - Alguns chegam cedo, já na hora do almoço. Tomam uma cerveja, dão umas voltas, param e ouvem o repente que toma conta do palco. Lá em cima, o violão vai passando de mão em mão. Seu Valdir Teles, um dos artistas, veio de São José do Egito, a 400 quilômetros do Recife. Tem a agenda cheia, mesmo sem o apoio da mídia. Ele diz que todo mundo aprecia a cantoria e se diverte com os improvisos.

Um pouquinho mais à frente, algumas crianças aprendem artesanato. Olham para Beto, filho de pernambucanos de Caruaru, que fala das coisas bonitas que podem ser criadas com o barro.

Enquanto isso, do outro lado, um grupo assiste a um vídeo sobre o padre Cícero. Na porta da sala não falta uma estátua do milagreiro, que dona Aldagiza sempre beija com devoção. Afinal, são muitas bênçãos a agradecer.

Outra presença marcante é a do frei Damião. Não é só a estátua. Com freqüência, o velhinho aparece em carne e osso. Então, o forró dá lugar à missa, e o centro de tradições fica repleto de fiéis que vêm ver o frei.

Também há espaço para lembrar Zumbi dos Palmares, homenageado com uma estátua e um mural.

"Adoro vir aqui. É um pedacinho do Nordeste", conta a pernambucana Aldagiza. Nascida em Triunfo, chegou em São Paulo há 34 anos, mas a saudade ainda persiste. "Saudade até das folhas secas", no seu modo de dizer. "Vem uma vontade de comer um feijão maduro, tomar uma água de coco..." Sem falar das festas: "Lá, tem festa a cada oito dias!".

O coração fica menos apertado quando se reúne com os amigos. "Encontrei no CTN uns primos que não via desde que cheguei. Sentamos aqui na primeira barraca e conversamos a tarde inteira."


MEMÓRIA, CULTURA - Dona Aldagiza, como a maioria dos migrantes, já se sentiu muito incompreendida pela cidade. Os filhos às vezes fazem questão de esquecer a herança nordestina.

"Existir um lugar onde o nordestino possa perder o medo e a vergonha de ser ele mesmo é muito importante", reconhece o diácono Valdiran, da Pastoral dos Migrantes. Geralmente, o preconceito é tanto que o nordestino acaba se acanhando e negando a própria identidade.

"E o seu sofrimento aumenta", conclui Valdiran, lembrando que esse povo saiu forçadamente da sua terra, uma questão de vida ou morte. Coisa que esse alagoano conhece de perto. Depois de viver em Pernambuco e no Pará, veio há três anos continuar o seu trabalho missionário em São Paulo.

Numa cidade que "não favorece o celebrar o junto", Valdiran começou a visitar os nordestinos nos bairros, espalhando a idéia de que eles deviam se reunir, para "resgatar a sua memória, a sua cultura, a sua festa", conta, sonhando com a conquista de maior consciência e dignidade do ser nordestino.

Os frutos desse trabalho pastoral já estão aparecendo. Em junho do ano passado, aconteceu o Primeiro Encontro dos Migrantes Alagoanos em São Paulo, a maioria moradores do bairro de Perus. Em outubro foi a vez do Primeiro Encontro dos Canudenses. Só no bairro de Santo Amaro, no Jardim São Luiz, vivem mais de cem famílias dessa cidade baiana. Os migrantes piauienses, por sua vez, já realizaram dezesseis encontros.


FEITO PARA SER ALEGRE - A cidade porém é grande, e milhares de nordestinos continuam dispersos, até meio perdidos, pelos bairros. Mais e mais iniciativas se fazem necessárias.

Enquanto Valdiran atua com a pastoral nas periferias, o padre Ângelo, por exemplo, decidiu ir ao encontro dos migrantes espalhados pelo bairro onde mora, uma região de classe média alta. Depois de mais de trinta anos de vivência no Maranhão, o comboniano italiano Ângelo La Salandra mudou para o Sul, por motivos de saúde. Mas o coração já pertencia de vez aos nordestinos.

Desde 1980, ele sai todas as noites a andar pelas ruas. Começa parando nas construções para conversar com os pedreiros, que moram ali mesmo, aos pés dos futuros edifícios. Depois é a vez dos guardas noturnos, que se animam com a conversa amiga na noite quase sempre silenciosa. "A pessoa sente falta da família, das festas", conta o padre Ângelo. Se ele mesmo tem tanta saudade da terra nordestina, imaginem o migrante!

Ângelo lembra das festas juninas, tanto na cidade maranhense de Balsas como no interior do Pará e Maranhão. "Uma fogueira no meio, e todo mundo em volta. É hora de estar junto, encontrar os compadres e as comadres."

Ele faz questão de dizer que cultura não é algo abstrato, e "vem quando as pessoas se encontram. Por isso, falo para o pessoal procurar amizades." Apesar de insistir no valor da educação e do trabalho, o missionário reconhece a importância da dança e da música. Afinal, "o coração humano está feito para ser alegre".

Como dizia o lema do encontro alagoano, promovido pela pastoral: "Apesar de tudo, a vida é uma festa". Mesmo nas piores condições de sobrevivência - enfatiza Valdiran -, o nordestino recorre à festa, ao riso, à brincadeira. Uma resistente mania de alimentar a fé e a esperança, "de celebrar a vida", resume o missionário. Festa e religiosidade se misturam. Basta lembrar as romarias a Juazeiro do Norte/CE ou a Bom Jesus da Lapa/BA, as quadrilhas e forrós de São João, os reizados, os guerreiros de São Sebastião.

São momentos essenciais na vida do nordestino, defende Valdiran. Provocam saudades. "Não é à toa que as famílias vão visitar os parentes justo no dia do padroeiro da sua terra! Voltam para reviver a festa." Porque é difícil vivê-la em São Paulo. Mas não impossível.


SABEDORIA DO POVO - No Morro do Querosene, há quatro anos, celebra-se o nascimento, vida e morte do boi-bumbá. "A cantoria começou em casa. Os irmãos foram chegando, juntava um compadre, vinha um vizinho. Daí a pouco, a gente estava no bar, ia tocando na rua", conta Tião Carvalho, cantador e tocador maranhense que vive em São Paulo há dezesseis anos. Caindo na rua, a festa tomou conta da praça. Uma surpresa para os paulistanos, tão pouco acostumados com a vida ao ar livre.

Debaixo da árvore, no centro da praça, no alto do morro, as matracas chamam o boi. Festa que começa de tarde, com o boi-mirim, segue com o frevo, a dança do baralho, o rap, o violão mineiro, e termina no alto da manhã, com a morte do boi. "Para que ele nasça no próximo ano com mais vida, num país mais grande e compreensivo", anuncia Tião.

Cintilante em sua roupa azul, Tião canta olhando nos olhos da roda. Muitos dos que moram no morro já acolheram o ritmo. Outros paulistanos estão estreando na cantoria. Para quem já conhece, a festa é um reencontro com o ar maranhense. A iniciativa é do grupo Cupuaçu, que há dez anos tenta mostrar para o resto do Brasil a cultura nordestina.

"É sabedoria do nosso povo, onde ninguém coloca a mão. Ou coloca com delicadeza", observa Tião. "Tradições que resistem, como o nordestino resiste." Olhando para trás, ele se lembra do avô, cantador de boi-bumbá, lá na sua cidade, em Cururupu. Depois veio o pai. Agora, ele. De mestre em mestre, foi aprendendo a capoeira, a percussão, o cavaquinho, a dança, o teatro...

Desde então, Tião procura sobreviver com a arte brasileira. "Estamos tentando apresentar o que é nosso, algo diferente para muita gente." Querem fazer da tradição uma manifestação atual.

O grupo se apresenta em palcos, escolas e, principalmente, nas ruas. Mas nem tudo tem que ser espetáculo ensaiado. Tião conta que é sempre necessário sair para a rua, brincar sem hora marcada, suar com os amigos, parentes... "Brincar, ser espontâneo, até perder a festa de vista."