Guatemala

Os deuses
estão de volta


Silenciosamente, a espiritualidade indígena começa a mostrar a cara.


Paul Jeffrey


Os evangélicos estão roubando ovelhas do rebanho de São Pedro?

Para além das polêmicas sobre o assunto, os grupos religiosos que mais crescem na Guatemala podem estar sendo os que silenciosamente praticam a espiritualidade ancestral maia. Em termos relativos, esse crescimento é maior, garante Celso Lara Figueroa, catedrático da Universidade de São Carlos, na capital.

Entre 3% e 10% da população guatemalteca - que era de 10,6 milhões de habitantes em 1995 - praticam alguma forma de espiritualidade maia. É difícil saber ao certo, porque tais práticas sempre foram reprimidas pela Igreja e o governo.


RECONHECIMENTO OFICIAL - Com as comemorações, em 1992, dos quinhentos anos da chegada dos colonizadores europeus à América, um novo espaço cultural começou a se abrir, e muitos sacerdotes maias e os seus seguidores saíram das trevas. O fenômeno é parte de um renascimento indígena mais amplo, que está ocupando o cenário político e cultural guatemalteco.

Em 1995, no âmbito das negociações de paz com a guerrilha, o governo assinou um acordo sobre identidade e direitos indígenas, comprometendo-se a "abolir todas as leis e decretos que resultem na discriminação dos povos indígenas". A Guatemala foi oficialmente declarada "nação multiétnica, multicultural e multilingüística".

O governo também garantiu "reconhecimento, respeito e proteção às diversas formas de espiritualidade" indígena.

Falta ainda muito para o governo cumprir com as promessas, reclama Fermín López, um sacerdote maia. Até hoje, o Ministério de Cultura e Desportos o proíbe de realizar os ritos tradicionais no local sagrado de Iximché, antiga cidade maia nas proximidades de Tecpán.

Fermín pode fazer suas cerimônias ao redor do local, mas está proibido de utilizar o espaço circular no centro das ruínas, onde os ancestrais adoravam os seus deuses. Ele admite, porém, que houve mudanças importantes: antes, tinha que se "disfarçar de catequista católico para conversar com as pessoas sobre a religião maia".

Hoje, isso não é mais necessário. Pode desempenhar abertamente as suas funções. Ele se juntou a outros dez sacerdotes indígenas de Tecpán para formar uma associação, que ele considera "um tipo de sindicato", com o objetivo de negociar junto às autoridades um tratamento mais adequado.

Durante séculos, a Igreja católica chegou a usar de violência para obrigar os maias a se converter. Isso fez com que os indígenas desenvolvessem um tipo de sincretismo, disfarçando as suas divindades por meio de santos católicos. Atualmente, muitos líderes católicos mostram maior abertura. Buscam com freqüência uma maneira de fazer com que o catolicismo se enriqueça no contato com os conceitos religiosos maias.

São os evangélicos os que hoje mais se opõem à espiritualidade maia. Alguns líderes chegam a qualificá-la como "paganismo", não permitindo qualquer tipo de aproximação. O professor Lara Figueroa sustenta que o crescimento das práticas religiosas maias ajuda a frear o que ele considera "a influência globalizante" da expansão evangélica.


RECRIAÇÃO DO PASSADO - O governo do presidente Álvaro Arzú nomeou recentemente um Conselho de Anciãos com autoridade para ordenar sacerdotes maias e servir como intermediário entre governo e indígenas.

Na visão de pessoas que acompanham o ressurgimento religioso maia, o fenômeno apresenta uma série de desafios. Para um observador da Organização das Nações Unidas, há um conflito inerente entre os que propõem um retorno às formas tradicionais de governo maia das comunidades indígenas e os ativistas maias que desejam estabelecer um controle democrático de suas comunidades e terras. É que as formas tradicionais não eram democráticas, no sentido atual.

Outra controvérsia emerge do fato de que grande parte das práticas espirituais anteriores a Cristóvão Colombo foi eliminada pela ação dos espanhóis. Os colonizadores queimaram a maioria de escritos maias, na tentativa de eliminar tudo o que consideravam pagão. Devido a isso, a atual prática espiritual maia, em diversos graus, representaria um amálgama de memória cultural, sincretismo católico e inovações.

"O que estamos presenciando não é exatamente o ressurgimento da mesma expressão religiosa de milhares de anos atrás, porque essa simplesmente não existe mais", observa Dennis Smith, do Centro Evangélico Latino-Americano de Estudos Pastorais. "Estamos vendo algo que é igualmente válido como expressão cultural, como expressão genuína da memória coletiva e de uma visão de mundo alternativa. Algo que está baseado nos valores tradicionais maias que os indígenas conseguem recuperar." Smith considera legítimo esse processo de recriação do antigo, de "invenção de novas expressões de espiritualidade tradicional".


(Noticias Aliadas, SEM FRONTEIRAS, p. 27)