A Igreja no Brasil aberta ao mundo
Bíblia
O pão sofrido
do trabalhador
Breve comentário do Salmo 127 (126).
Frei Carlos Mesters
1 Se Javé não constrói a casa,
em vão trabalham os seus construtores.
Se Javé não guarda a cidade,
em vão vigiam os guardas.
2 Não tem sentido levantar de madrugada
e se atrasar para deitar,
se é só para comer o pão sofrido do trabalho!
Aos seus amigos, Deus o dá até enquanto dormem!
3 A herança que Javé concede são os filhos,
seu salário é o fruto do ventre.
4 Os filhos gerados na juventude
são flechas na mão de um guerreiro.
5 Feliz o homem que enche
sua aljava com elas:
não será derrotado nas portas da cidade
quando entrar em juízo contra os seus inimigos.
O Salmo 127 tem a coragem de afirmar: "Se Javé não constrói a casa, em vão trabalham os seus construtores. Se Javé não guarda a cidade, em vão vigiam os guardas. Não tem sentido levantar de madrugada e se atrasar para deitar, se é só para comer o pão sofrido do trabalho! Aos seus amigos, Deus o dá até enquanto dormem!".
Essas palavras, ditas assim, sem levar em conta quem as diz e por que as diz, podem até chocar. Será que eu posso dizer isso a um pai ou a uma mãe de família que se gastam dia e noite para sustentar os filhos? Não posso, não!
Então, como entender este salmo?
O Salmo 127 tem duas partes. A primeira (versículos 1 e 2) fala da construção da casa e da defesa da cidade, e ainda diz que não adianta levantar cedo e deitar tarde, se é só para comer o pão sofrido do trabalho. A segunda parte (versículos 3 e 4) fala dos filhos e da vida em família. O que uma coisa tem a ver com a outra?
"Se Javé não constrói a casa, em vão trabalham os seus construtores. Se Javé não guarda a cidade, em vão vigiam os guardas." Quando aqui se fala em construção de casa, não é só a construção das paredes. Na bíblia, casa significa também a família, a grande família, o clã, a comunidade, e cidade, não só as muralhas, mas também o povo que nela mora. "Construir a casa" não é só trabalho do pedreiro. É também garantir o futuro da família, da comunidade.
"Vigiar a cidade" não é só trabalho do guarda que passa a noite acordado. É também preocupar-se com o futuro do povo que mora na cidade. O que o salmo quer dizer é o seguinte: não adiante você se matar trabalhando, sem pensar no seu futuro. Não é ganhando muito dinheiro que você garante o futuro da sua família, do seu povo, mas sim tendo gente que, depois de você, continua o trabalho que você começou.
Com efeito, no antigo Israel, o clã, a grande família, a comunidade, era a base da convivência social. Era a proteção das famílias e das pessoas, a garantia da posse da terra, o veículo principal da fé e da tradição, a defesa da identidade do povo. Era a maneira concreta de o povo daquela época encarnar o amor a Deus no amor ao próximo.
Defender o clã, a comunidade, era o mesmo que defender a Aliança do povo com Deus. Onde havia essa comunidade, não havia necessidade de as pessoas levantarem de madrugada e atrasar a hora de deitar. A Providência divina passava pela organização fraterna. Ali, o amor a Javé construía a casa e guardava a cidade.
Por isso, na segunda parte, o salmo se preocupa com os filhos. "A herança que Javé concede são os filhos, seu salário é o fruto do ventre...". Quando os pais transmitem para os filhos o ideal de vida que eles mesmos receberam dos antepassados, eles criam e fortalecem o clã, a grande família. Os filhos, assim formados, formam a comunidade.
Quem vive numa comunidade assim, bem organizada, já não se preocupa com a própria defesa! Pode dizer, de verdade: "Javé constrói a nossa casa! Javé guarda a nossa cidade! Se Javé não constrói a casa, em vão trabalham os seus construtores. Se Javé não guarda a cidade, em vão vigiam os guardas. Não tem sentido levantar de madrugada e se atrasar para deitar, se é só para comer o pão sofrido do trabalho! Aos seus amigos, Deus o dá até enquanto dormem!".
O ideal de sociedade que transparece no Salmo 127 é bem mais humano e bem mais solidário que a sociedade em que vivemos hoje.
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Frei Carlos Mesters é biblista, autor de diversos livros. Há anos acompanha a caminhada das comunidades eclesiais do Brasil. Atualmente, trabalha no Instituto Bíblico de Angra dos Reis/RJ.
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