Suas imagens em preto-e-branco correm o mundo, despertando emoções, sacudindo a indiferença. Revelam a valentia dos humildes. Provocam debate.
Da cidade mineira de Aimorés, onde nasceu, o fotógrafo Sebastião Salgado, 53 anos, guarda na lembrança os dias quentes de um lugar que não vê um pingo de chuva durante oito meses por ano. Quando menino, acostumou-se a olhar o mundo "da sombra para a luz".
A experiência transformou-se num dos aspectos mais destacados da obra que fez dele um dos maiores fotógrafos da atualidade. Sebastião Salgado é mestre em uma das técnicas mais difíceis da fotografia: a contraluz. Nesse trabalho, a luz vem da frente do fotógrafo, embaçando a cena, refletindo nas lentes. Todo o cuidado é pouco para não arruinar a foto.
Da sombra para a luz, da miséria para a solidariedade, Sebastião Salgado combina rara sensibilidade artística com aguda consciência social.
As fotos são vigorosas, sem invadir a privacidade dos fotografados. Muitos deles são vítimas do poder político e econômico, mas aparecem como vitoriosos. "Não trabalho com a miséria, mas com as pessoas mais pobres. Elas são muito ricas em dignidade", justifica.
Colecionador dos prêmios internacionais mais cobiçados do fotojornalismo e com obras expostas em museus, galerias ou estações de metrô, Sebastião Salgado repassa parte do dinheiro que ganha e também fotos para movimentos sociais e organizações humanitárias.
Economista formado pela Universidade Federal do Espírito Santo, com pós-graduação em São Paulo e doutorado na França, começou a carreira de fotográfo no início dos anos 70. Vive há 28 anos em Paris com a mulher, Lélia, e os filhos, Rodrigo e Juliano. Flavinho, o primeiro neto, nasceu quando o avô estava embrenhado no Afeganistão, há cinco meses.
Encarando o trabalho como forma de militância, Sebastião Salgado tem preferência por temas sociais e só fotografa em preto-e-branco. Diz que é para concentrar a emoção e permitir que a imagem seja interpretada pelo que é. Também considera o envolvimento ideológico com o tema das reportagens fator fundamental em sua carreira.
Apaixonado pelas grandes reportagens fotográficas, em geral sobre a realidade dos países pobres, começou retratando a falta de habitação em um subúrbio parisiense, depois os imigrantes europeus. De 77 a 84, fotografou as condições de vida e a resistência dos povos indígenas latino-americanos.
Em 1986, iniciou um projeto que o tornou famoso no mundo inteiro: Trabalhadores. O ensaio pretende arrancar das sombras o trabalho manual em grande escala, que ainda move boa parte da economia mundial neste final de século. São 350 fotografias de 26 países, nas quais o fotógrafo investiu sete anos de vida.
Atualmente, Sebastião Salgado está a meio caminho do projeto "Movimento de Populações", iniciado em 94 e com conclusão prevista para o ano 2000. Ele está percorrendo trinta países dos cinco continentes, retratando as migrações, a expulsão de refugiados e o êxodo de agricultores rumo às cidades. Nesse ritmo, não espanta que passe oito meses ao ano de mochila nas costas.
O trabalho o trouxe ao Brasil, no ano passado, para documentar a saga dos sem-terra. As imagens que recolheu foram publicadas nos principais jornais e revistas do mundo inteiro. Com isso, os sem-terra ganharam um "apaixonado militante", que articula apoio e solidariedade entre intelectuais do Brasil e do exterior.
Prova disso é que Salgado deixou o Zaire, no mês passado, para participar, no Brasil, do lançamento mundial (simultâneo em oito países) dessa que é sua obra mais militante e brasileira: Terra. Na verdade, o livro é um manifesto de apoio ao Movimento dos Sem Terra (MST). Abre com o prefácio do escritor português José Saramago e fecha com um CD inédito de Chico Buarque.
Junto com o livro estão sendo feitas exposições das fotos dentro e fora do país. Segundo o fotógrafo, os acampamentos de sem-terra à beira das estradas às vezes podem ser mais cruéis que os acampamentos de refugiados sob a proteção das Nações Unidas.
Na entrevista que segue, Sebastião Salgado fala da sua fotografia, de cidadania e do Brasil. Como em tudo o que faz na vida, nesse bate-papo também está o "Tião" de Aimorés, o Sebastião Salgado economista e um homem que corre o mundo registrando histórias com traços de marcada denúncia social.
Como surgiu a predileção pela contraluz? Sebastião Salgado - É uma coisa instintiva ter de trabalhar contra a luz. A minha cidade, Aimorés, tinha um sol incrível. A gente estava sempre na sombra. Cansei de olhar o meu pai chegando em casa na contraluz. Eu na sombra, ele vindo do sol. Numa fração de segundos, restituo tudo isso.
Você se envolve com as pessoas que está fotografando?
- Normalmente, sou bem recebido por onde passo. Tenho que conversar, perguntar, ver, sentir. Muitas vezes não são nem meus olhos que conseguem captar certas coisas, mas as pessoas que estão na minha frente. Na verdade, elas me orientam, me dão a fotografia. O resultado final vai ser melhor ou pior, dependendo da relação que cultivo com as pessoas.
Em algumas de suas fotos, as pessoas fitam a câmara com olhares muito intensos. São flagrantes?
- São. Não faço ninguém posar, nunca fiz, não me interessa. Só tenho um modo de trabalhar - com a minha história, a minha ideologia. Quando alguém não quer te dar a imagem, você pede desculpas, faz as malas e vai embora. Não roubo imagens.
Embora mostrem o sofrimento das pessoas, essas imagens também conseguem trazer à tona uma beleza escondida na miséria e no desespero...
- Não trabalho com a miséria, mas com as pessoas mais pobres. Elas são muito ricas em dignidade e buscam, de forma criativa, uma vida melhor. Quero com isso provocar um debate. A nossa sociedade é muito mentirosa. Ela prega como sendo única a verdade de um pequeno grupo que detém o poder.
Por que mostrar situações de exclusão?
- Isso faz parte da minha história. Nos anos 60, quando morava em Vitória, cheguei a militar no movimento comunista e, depois, na Juventude Universitária Católica (JUC). Desde esse tempo, passei a acreditar no ideal de uma sociedade mais justa para todos. Então, levei todo esse engajamento para o mundo da fotografia.
Na realidade, não fotografo o excluído, e sim uma amostragem do que é a maioria da humanidade. Procuro colocar a minha fotografia a serviço dos quatro quintos da população mundial que vivem em condições desumanas.
No ano passado, quando visitou acampamentos de sem-terra pelo Brasil afora, você também fez um trabalho sobre a população de rua de São Paulo. Como foi a experiência?
- Estou traçando um perfil do deslocamento dos povos no mundo inteiro, e São Paulo faz parte desse projeto. A cidade teve um crescimento populacional brutal nos últimos vinte, trinta anos, fruto de uma forte migração.
Se considerarmos o crescimento econômico do país nesse tempo todo, vemos que o Brasil ficou no mínimo 50% mais rico. Mas do que adiantou, se a população ficou muito mais pobre?
O que me causa espanto é ver que uns poucos ficaram com a parte de uma grande maioria. Andando pela capital paulista, vejo uma grande parte dessas pessoas jogadas para fora do sistema, excluídas.
E em relação aos sem-terra?
- Estou trabalhando com a questão da terra no Brasil desde 1980. Acompanhei o trabalho das Comunidades Eclesiais de Base e da Comissão Pastoral da Terra, e já realizei trabalhos sobre os bóias-frias. Os sem-terra brasileiros são a última válvula de retenção da população no campo. Espero que o meu livro Terra não sirva para isolar ninguém. Quero ajudar a provocar um debate, porque só na hora da discussão é que se encontram soluções para os problemas. E as exposições que faço para o Movimento Sem Terra são a minha contribuição para isso.
Você acha que falta vontade política por parte do governo para resolver a questão da terra no Brasil?
- Não é que falte vontade para resolver as coisas. Diria que essas pessoas estão anestesiadas por uma tradição de exclusão neste país. Desde a chegada dos portugueses, as pessoas passaram a aceitar a exclusão como algo normal. Por outro lado, enquanto visitei os assentamentos dos sem-terra, vi muita coisa bonita sendo feita. Conseguiram organizar cooperativas que são as mais produtivas nos Estados em que estive. A maior produtora de leite de Sergipe é de uma cooperativa dos sem-terra.
A saída, então, seria a reforma agrária?
- Sim. É a divisão das terras. Aliás, o mundo inteiro já fez a reforma agrária, só não o Brasil. Acho que as pessoas teriam que ir e ver algum assentamento de sem-terra. Já conversei com muitos políticos de Brasília, por exemplo, que me confessaram nunca terem ido a um assentamento. O que eles conhecem, na verdade, é a intoxicação de uma parte da imprensa e dos fazendeiros que os informam. Daí a necessidade de essas pessoas irem constatar na fonte. Só assim as coisas vão mudar.
Vivendo e trabalhando quase a metade da vida fora do país, que lugar o Brasil ocupa no seu trabalho?
- Embora o Brasil represente apenas 1% no meu trabalho, me sinto profundamente brasileiro. Jamais perdi o meu sotaque. Em casa canta-se samba, e a comida é capixaba. Tudo o que faço tem a ver com o Brasil. Na fração de segundos de cada fotografia, estou interferindo com a minha Aimorés, a minha família, a minha vida, a minha luz. Tudo isso é brasileiro.
O que fica das viagens pelo mundo, garimpando a história de povos inteiros?
- Sinto uma vontade sempre maior de continuar o que venho fazendo. As idéias são muitas, o problema é a falta de tempo para realizá-las. É uma luta constante contra o tempo para captar histórias, o imediato, o gesto fugaz, o olhar e o sorriso que, uma vez perdidos, são irrecuperáveis. Um dia desses, sobrevoando o Afeganistão a baixa altitude num avião da Cruz Vermelha, percebi traços em montanhas absolutamente inacessíveis. Traços de caravanas, a marca do bicho-homem. Meus Deus - pensei -, eu preciso conhecer essa gente! Um rosto dessas caravanas pode revelar toda uma história, a cultura de um povo. Creio que, no fundo, são poucas as diferenças entre os povos. As necessidades básicas são as mesmas, por exemplo, para um brasileiro, um japonês ou um indiano. Por isso, não me sinto estrangeiro em nenhum dos lugares por onde ando. O mundo se transformou em minha casa.
Por conta de seu trabalho atual, você chega a passar oito meses por ano viajando, em condições precárias...
- Para agüentar o pique, a gente tem que gostar muito do que faz e ter identificação ideológica com os temas que escolhe. O que conta também é sensibilidade e paciência. Você tem de esperar as coisas acontecerem, e as coisas acontecem.
E ainda sobram tempo e vontade para fotografar a família nos momentos de folga?
- Demais. Estou fazendo um trabalho com o meu filho caçula, o Rodrigo, 15 anos, portador da Síndrome de Down. Todas as férias faço um monte de filmes dele e da família. Um dia, tudo isso ainda vai se transformar em um livro.
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