Dia Nacional das Comunicações

Um latifúndio chamado informação


Mitos, meias verdades e mentiras na posse dos meios de comunicação e no controle da informação no Brasil.


Igor Fuser


O Movimento dos Sem-Terra (MST) quebrou a rotina de São Paulo numa manhã de abril do ano passado, com uma marcha que atravessou a Zona Oeste da metrópole e culminou com um ato público pela reforma agrária na Avenida Paulista.

No dia seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo estampou, na primeira página: "Passeata dos sem-terra atrapalha o trânsito". Na única fotografia publicada, um dirigente do MST aparecia, em primeiro plano, falando num telefone celular. Nada mais.

A manifestação, que levou centenas de pessoas - homens, mulheres e crianças - a percorrer, a pé, a distância entre São Paulo e Sorocaba, ponto inicial da marcha, virou um trivial problema de trânsito. Um aborrecimento a mais na vida atribulada dos paulistanos.

Os sem-terra, nas páginas do Estadão, lembram o operário da música "Construção", de Chico Buarque: "Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego...".

Quanto à imagem do líder com o celular, a mensagem sugeria a "falta de coerência" entre um movimento de lavradores e o uso de um equipamento moderno, cuja posse é associada a status social.

Para agradar o jornal, o MST deveria, talvez, comunicar-se por mensagens carregadas por macaquinhos, como nos gibis do Tarzan. Nas viagens a Brasília, para discutir as questões da reforma agrária, o meio de transporte seria o carro-de-boi, em vez do avião.

O episódio é típico da cobertura que a chamada "grande imprensa" dá aos conflitos sociais no país.

Nos seus editoriais, virou um ritual obrigatório lamentar a pobreza e as desigualdades que tornam a sociedade brasileira uma das mais injustas do planeta. Mas é só alguém fazer qualquer coisa tentando corrigir essas injustiças para receber, desses mesmos meios de comunicação, a pecha de "radical".


Comando único

Na greve dos petroleiros, há dois anos, os jornais, as revistas e as emissoras de rádio e TV agiram como se obedecessem a um comando único, num esforço conjunto para jogar a população contra os trabalhadores.

O motivo principal da greve - um acordo salarial assinado por Itamar Franco quando ainda era presidente e não cumprido pela direção da Petrobrás - foi propositalmente omitido do público.

Quando as empresas distribuidoras de gás sabotaram a entrega do produto, numa manobra para aumentar a irritação da população contra os grevistas, a única notícia, em toda a imprensa brasileira, apareceu num pé de página do Jornal do Brasil, sem o menor destaque.


A postura é a mesma, sempre.

Os manifestantes que protestam contra as privatizações são "baderneiros". Os funcionários públicos são chamados de "corporativistas" quando tentam preservar o mínimo de dignidade em seu trabalho, diante da política de desmanche aplicada pelo ministro Bresser Pereira (nunca se viu um jornal chamar de "corporativismo" as ações dos banqueiros ou dos donos de supermercados em defesa de seus interesses).

O mais espantoso é a unanimidade. Se tem uma palavra que os editorialistas dos jornais adoram, essa palavra é "pluralismo", usada toda vez que se mencionam as maravilhas de nossa democracia tropical.

Pois na velha União Soviética, nos tempos de Mikhail Gorbachev, sob um regime ainda ditatorial, a imprensa era muito mais pluralista do que no Brasil do reinado de Fernando Henrique Cardoso.

Tente-se, por exemplo, encontrar um só argumento contrário à privatização da Companhia Vale do Rio Doce na cobertura dos jornais, do rádio ou da televisão. É procurar agulha num palheiro.


Mito da imparcialidade

Na realidade, a imprensa brasileira se sustenta sobre um mito: o do jornalismo objetivo, independente, imparcial. Até que ponto essa idéia se comprova na prática?

Vale a pena ler a opinião do jornalista Emiliano José, professor da Universidade Federal da Bahia, expressa no prefácio de seu livro "Imprensa e Poder", em que analisa a cobertura do impeachment de Fernando Collor:

"A imprensa continua sólida na sua posição de camuflar suas opções políticas, tão evidentes, sob o manto sagrado daquilo que ela arbitrariamente qualifica como notícia, sob a postura olímpica de que apenas 'cobre os acontecimentos'. Nunca admite ter lado, preferência, partido - e ela sempre os têm".

Para veicular sua visão de mundo, a imprensa raramente recorre à mentira, pura e simples. O mecanismo usado, muito mais eficaz, baseia-se em ênfases e omissões.

Os fatos, opiniões e enfoques que interessam aos donos dos meios de comunicação recebem todo o destaque. São manchetes de jornais, capas de revistas, assunto pisado e repisado nos noticiários de rádio e TV.

O que não interessa a eles é omitido. Quantos trabalhadores rurais são mortos, em luta pela terra, sem que esses crimes sejam sequer mencionados pela mídia? Quantas reservas indígenas são invadidas sem que a imprensa noticie? Quantos meninos de rua são assassinados por policiais?

As exceções confirmam a regra. O massacre dos camponeses sem-terra em Eldorado dos Carajás, no Pará, só ganhou destaque porque existia uma fita de vídeo gravada por uma equipe de televisão do Pará (felizmente, ainda há jornalistas honestos e corajosos).

Os casos de corrupção são denunciados, desde que não coloquem em risco as regras do jogo da política e da economia. Pode-se afastar Collor, mas a política neoliberal iniciada sob seu governo está fora de discussão.

O país inteiro comenta o escândalo dos precatórios, e chega-se a cogitar o impeachment de políticos como o prefeito malufista Celso Pitta. Mas a ajuda bilionária do governo aos banqueiros através do Proer, que custou aos cofres públicos muito mais do que todo o dinheiro desviado no escândalo dos precatórios, é tratada com discrição.


Ordem estabelecida

Os representantes da oposição sofrem marcação cerrada. Seus mínimos escorregões são noticiados com estardalhaço, dia após dia, mesmo que não contenham, a rigor, nenhuma ilegalidade.

O comportamento é oposto quando quem está na berlinda são figuras que a imprensa prefere preservar.

Veja-se, por exemplo, o caso do atropelamento de um trabalhador, em Brasília, pelo filho do então ministro dos Transportes, Odacir Klein. O rapaz, que estava acompanhado pelo pai na ocasião do acidente, fugiu do local, em vez de prestar socorro à vítima.

O juiz encarregado do caso "condenou" o filho do ministro a apenas algumas horas de "trabalho comunitário", por considerar que a pessoa atropelada teve morte instantânea e, por isso, não se pode falar em omissão de socorro.

A decisão judicial - isto sim, um verdadeiro escândalo - foi simplesmente registrada, sem maior destaque, e o assunto caiu rapidamente no esquecimento. Os telespectadores do SBT não ouviram Boris Casoy dizer: "Isso é uma vergonha!".

"Nossa imprensa está completamente rendida à ordem estabelecida das coisas", afirma Roberto Mangabeira Unger, filósofo brasileiro que dá aulas de Direito na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

"A tarefa principal do jornalismo numa democracia seria ampliar o entendimento coletivo do possível. A imprensa brasileira, ao contrário, colabora para desmoralizar qualquer visão de ampliação possível e para reafirmar os limites do existente", explica o professor.


Interesses dos anunciantes

A farsa do jornalismo "imparcial" não passa completamente despercebida pelos leitores (veja quadro 1). Por que, ainda assim, as empresas de comunicações insistem em deformar o noticiário?

A resposta é simples: existe, por trás da cobertura da imprensa, interesses muito mais fortes do que simplesmente o de vender jornais ou de aumentar a audiência.

Em primeiro lugar, há os interesses dos anunciantes. Não se encontra, nos arquivos dos jornais, uma única reportagem em tom crítico contra um dono de supermercado, como Abílio Diniz, do Pão de Açúcar, ou Cosette Alves, do Mappin - duas das empresas com maior volume de anúncios na imprensa diária.

Ao contrário, dona Cosette, mesmo sem ser jornalista, ganhou, na Folha de S. Paulo, a chance de satisfazer sua vaidade com espaço nobre para publicar entrevistas com pessoas famosas.

Outro poderoso anunciante, Romeu Chap Chap, dono da construtora e da imobiliária Chap Chap, foi brindado, na mesma Folha, com uma entrevista numa seção que, sob a rubrica "pecados do capital", trata a ostentação e o luxo da elite brasileira como coisas muito "chiques".

Nessa seção, o empresário Chap Chap conta que seu vinho preferido é o Echezeau do Domaine Romanée, francês. O preço da garrafa: 350 reais. O senhor Chap Chap, ao abrir uma garrafa de vinho, gasta o equivalente ao que um trabalhador com salário mínimo ganha em dos meses inteiros de batente. Tudo muito chique, muito refinado, na visão da Folha.


Monopólio dos meios

Há outros motivos por trás do elitismo e da manipulação ideológica presentes na cobertura da imprensa brasileira.

Os empresários de comunicação podem ou não ser jornalistas. O importante é que são empresários, e dos graúdos. Freqüentam os mesmos clubes, as mesmas associações, as mesmas rodas sociais dos manda-chuvas das finanças, da agricultura, da indústria e do comércio.

Concentram a informação do país da mesma maneira que os grandes latifundiários concentram a propriedade da terra.

Num estudo sobre o assunto, o professor Erasmo de Freitas Nuzzi, ex-diretor da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, informa que "os meios impressos e eletrônicos são dominados por quinze empresas, as quais controlam 90% da mídia nacional" (veja quadro 3).

O maior desses grupos, a Rede Globo, atinge 99% dos domicílios com sua programação de TV. Possui 83 emissoras de televisão, 31 emissoras de rádio AM e 49 emissoras FM.

Para enfrentar essa situação de monopólio, um conjunto de entidades da sociedade civil constituiu o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, que reúne sindicatos, partidos e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A imprensa boicota as atividades desse movimento e faz de tudo para desmoralizar suas propostas.

"A maior parte dos empresários da comunicação, na verdade, tem horror à pluralidade política, quando essa pluralidade não é administrada por eles", afirma Daniel Herz, membro da coordenação do Fórum.

E justifica: "Eles temem a criação de qualquer via de mão dupla no processo de comunicação. Querem manter com os leitores e telespectadores uma relação balizada apenas pela decisão individual da compra de um jornal numa banca ou pela utilização dos seletores de canais ou botões de liga-e-desliga. Ou seja, aceitam se relacionar com os consumidores, e não com os cidadãos".


Casta de "estrelas"

Para os jornalistas, o exercício da profissão nessas condições se torna cada vez mais difícil. Dentro das redações, o controle da informação pelas chefias é cada vez mais rigoroso.

No topo da hierarquia de poder e de salários, consolida-se uma pequena casta de "estrelas" do jornalismo. Alguns deles se tornaram tão famosos quanto os grandes astros de novelas e do futebol - e tão ricos quanto grandes empresários.

Por coincidência, quanto mais crescem os salários desse seleto grupo de jornalistas, mais conservadoras se tornam suas opiniões.

É como na propaganda daquela marca de biscoitos, em que se pergunta se eles "são mais fresquinhos porque vendem mais, ou se vendem mais porque são mais fresquinhos".

No caso das estrelas da imprensa, não se sabe se eles são de direita porque ganham muito dinheiro, ou se ganham muito dinheiro porque são de direita.

"Há um grupo de profissionais muito bem aparelhados, com um prestígio emergente e grande tendência a ter afinidade com os interesses dos jornais", afirma Caco Barcellos, um raro exemplo de celebridade global que continua a pautar o exercício de sua profissão pela dignidade e pela defesa dos direitos humanos.

Aos jornalistas comuns, o que acaba valendo é o famoso conselho de Assis Chateaubriand, o falecido dono dos Diários Associados: "Se você quer expressar suas próprias opiniões, funde um jornal. Não o faça no meu".

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Igor Fuser, ex-editor da revista Veja e autor dos livros "México em Transe" e "A Arte da Reportagem", é secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.


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