Missão na Ásia: Índia

O Deus lá de cima se encontra lá embaixo


A vida na companhia dos antigos "senhores da estrada", os ciganos. A Índia será curada das suas chagas sociais, escreve o missionário.


Renato Rosso


Estou a cerca de oitenta quilômetros de Jaipur, no norte do Rajastão, Índia, no meio da mata. Os arbustos maiores não passam de dois metros de altura, e tudo aqui é seco. As árvores foram derrubadas, e a vinte quilômetros já começa o deserto, que entra pelo Paquistão adentro.

Os Banjara fizeram dessas colinas um ponto de referência para o grupo. Mulheres, crianças e alguns homens se fixam por aqui, enquanto outros, jovens e adultos, procuram trabalho nas cidades e aldeias vizinhas. Depois de um tempo retornam. É hora de revezamento. Outros assumem a tarefa.

Dizem que tigres e serpentes são comuns nessa região, mas os ciganos sabem como se defender. Cães amestrados prestam uma boa ajuda.


"ESCOLA INFORMAL" - Os Banjara estão divididos em sete acampamentos. Sobre o topo de uma das colinas localizada mais ou menos no centro, há algum tempo, as crianças se reúnem para a escola. Chamam isso de "informal education", que literalmente significa "escola informal".

Escola mais informal do que essa - isto é, "sem forma" -, nunca vi em minha vida: não tem teto, nem portas, janelas e paredes. Nada de barraca, nem mesmo uma árvore com um pouco de sombra, nada para sentar em cima. Uma escola realmente informal.

O amigo que cuida da escola, com muita boa vontade, consegue levar o trabalho adiante do jeito que dá. Quando pergunto aos alunos como se sentem, respondem com um sorriso que vai de orelha a orelha para dizer que estão bem. Também os adultos afirmam estar felizes, porque o lugar é seguro. Eu acredito. Quem iria incomodá-los?


"SENHORES DA ESTRADA" - No passado, esses grupos de ciganos eram conhecidos como os "senhores da estrada". Andavam de um lugar para outro, atravessando rios e florestas. Como? Só Deus sabe.

Percorriam a Índia inteira, chegando até o Oriente Médio, para depois retornar. Atravessavam reinos inimigos entre si. Para se ter uma idéia, só o Rajastão era dividido em pelo menos cem pequenos reinos.

Os ciganos dispunham de um salvo-conduto especial para atravessar uma determinada região. É que todo mundo precisava do trabalho deles.

De fato, eles transportavam mercadorias, serviam de "correio" para as longas distâncias e eram também os banqueiros dos grandes senhores - podiam comprar ouro e trocá-lo por bens de consumo ou dinheiro.

Muitas vezes, o ouro e os objetos preciosos não eram carregados por eles em suas longas viagens. Preferiam enterrar tudo em lugares secretos. No momento certo, sabiam qual caixa-forte abrir para fazer os seus negócios.

Engana-se quem pensa que os Banjara se deslocassem em grupos de apenas algumas dezenas de famílias. Grupos de até 3 mil homens (sem contar as mulheres e as crianças) eram uma coisa normal.


OS TEMPOS MUDARAM - Os Banjara nunca faziam guerra. Como outros grupos ciganos semelhantes, durante uma guerra, podiam ser recrutados para ajudar um determinado exército, mas nunca para o combate. Ficavam na retaguarda, prestando às tropas todo tipo de serviço necessário. Em caso de derrota, nada sofriam, porque todos reconheciam o seu valor social.

Outras atividades importantes eram a música, a dança, a acrobacia e o teatro nas cortes dos reis ou para os soldados.

Hoje, podemos encontrá-los aos milhões em periferias anônimas, pobres, às vezes miseráveis. Dignidade suficiente, porém, não lhes falta, numa sociedade que mudou muito desde os tempos em que eles eram reis das estradas, rios e florestas.

Gostaria ainda de lembrar os Hakkipikki, um povo de caçadores do centro-sul do país. Ou também os Gadha Lohar, que trabalham com metais. Ou os Rabari, pastores de ovelhas, cabras, gado e camelos. Ou, ainda, os Korwas...

Alguns Korwas deixaram de ser pastores para fabricar pulseiras, colares e especialmente coroas. Em seus acampamentos, todos fazem coroas: mulheres e homens, jovens e crianças. Coroas para hinduístas, muçulmanos e cristãos, vendidas nas portas dos templos, mesquitas e igrejas. É difícil falar de escola com eles, já que as crianças trabalham na produção de coroas.

Gostaria também de falar sobre os Kalibilias, os Nat e os Bopas, que são dançarinos, músicos, acrobatas, de circos.


VIDA E ENERGIA - A Índia é um país cheio de surpresas. É, sobretudo, o país da esperança. Os jovens não querem emigrar, como em outros lugares, pois sabem que em sua terra podem construir um futuro.

A Índia tem potencial. É uma semente preciosa, que pode ser sufocada ou murchar, mas que pode também se tornar uma árvore forte e robusta, capaz de dar vida a milhões de pessoas. Não podemos ser superficiais ao analisar a pobreza na Índia.

Mesmo nas favelas ("slums"), há uma energia de vida que mal conseguimos sonhar. Existe nesse país uma riqueza humana, cultural e espiritual que supera a imaginação do turista apressado ou do leitor da vida indiana.

Claro, a Índia tem ainda grandes feridas a curar. O sistema de castas - que também fez história no Oriente Médio, entre egípcios, semitas, gregos e romanos (e a Europa ainda não está totalmente curada desse mal) -, na Índia, foi de algum modo consagrado pela religião, e ninguém sabe ao certo o quanto isso esteja enraizado na cultura desse povo.


COM O DIRETOR DE UMA ESCOLA - Quinze dias atrás, estava numa cidade do Madia Pradesh, norte do país, onde conversei por muito tempo com o diretor de uma escola com 2.500 alunos. Depois de falarmos muito sobre os ciganos, ele confessou com sinceridade e simplicidade o que outros apenas pensam, mas não manifestam:

- Padre, o seu trabalho é muito bonito. Fico admirado. Aqui na nossa cidade há muitos desses acampamentos. Gostaria até de fazer algo para os ciganos, mas agora, como diretor de uma escola, faço parte da alta sociedade. Todo dia tenho que me encontrar com o prefeito, médicos e advogados, porque os filhos deles freqüentam a minha escola. Veja, padre Renato, se eu começasse a visitar os pobres, ciganos e miseráveis, perderia a minha dignidade e credibilidade.

Juro, ele me falou exatamente assim!

Não parti para cima dele, mas o tratei com calma, como a um irmão, porque estava sendo sincero. Mas tive que lhe dizer algumas coisas (porque era batizado):

- Amigo, conheço alguém que também era mestre como você. Ou melhor, ele era mais do que um diretor. Era na verdade Deus, e nasceu numa gruta de pastores nômades, entre o mau cheiro do esterco e em condições higiênicas muito inferiores às de qualquer sala de parto de um hospital decente. É verdade, ele também perdeu a sua credibilidade, mas o fez para dizer que o caminho é exatamente esse... Não existe outro modo de ser cristão.

Conversamos ainda bastante e depois nos despedimos como amigos. Com certeza, ele ainda deverá trabalhar muito para curar as suas feridas.


SUBIR OU DESCER? - Indianos e todos nós devemos sanar essa doença de "subir", também e sobretudo em se tratando de fé. Em geral, pensamos que fazer experiência de fé significa "subir". Subir para chegar até Deus. Subir até as alturas, subir como a fumaça e o perfume de incenso...

Tudo isso é certo. Mas também se pode dizer que experimentar a fé cristã significa descer. Porque Cristo se encontra "lá embaixo", e não "lá em cima". Ele se encontra no fundo do vale, no porão do navio, debaixo da ponte, debaixo da terra, nas minas. Ele se encontra embaixo, ou mais facilmente embaixo.

Através dele, o Pai é criador do céu e da terra, mas a proposta que ele faz é esta: descer, descer como a água. Quem me testemunhou isso foi a Irmã Xavéria, uma mulher que o encontrou.

É preciso descer até a Sexta-Feira Santa. Somente ali, vamos encontrar o fogo da ressurreição que nos faz subir.


COM A FAMÍLIA HINDUÍSTA - Desculpem se desviei um pouco do assunto. Falávamos da Índia, de suas feridas, mas especialmente de sua energia de vida. Para encerrar esta carta, gostaria de contar uma das coisas mais bonitas que presenciei nesses quatro anos de vida por aqui.

Certa manhã, encontrava-me numa família hinduísta: pai, mãe e duas filhas. As filhas tinham ido à escola. O marido é diretor de uma organização não-governamental e também de uma escola com 1.200 alunos.

Na casa havia um jovem de uns vinte anos que fazia um pouco de tudo. Tinha ido tirar fotocópias, entregar cartas no correio e, ao voltar, preparou chá para nós. Não era exatamente um escravo, mas tampouco filho ou professor da escola.

No momento de tomar o chá, o diretor chamou a esposa e perguntou ao rapaz se tudo estava pronto. O jovem respondeu que sim e trouxe uma bandeja com quatro xícaras de chá: uma para o visitante, a outra para o diretor, uma para a mulher (que raríssimas vezes toma chá com os outros) e uma para si mesmo.

Fiquei olhando atentamente, para ver se não estava me enganando. Não, não estava. Eram quatro xícaras, também uma para a mulher e outra para o empregado.


A ÍNDIA SERÁ CURADA - Jamais tinha imaginado que uma coisa dessas pudesse acontecer na Índia. Então, conclui: a Índia está sendo curada. Se essas quatro pessoas podem sentar juntas para tomar o mesmo chá, então tudo está resolvido.

Se existem esses três, existirão mais três que não conheço, talvez trinta, e no futuro poderão ser trezentos, porque isso é possível. Depois três mil, três milhões, e a Índia estará curada também dessa chaga social.

E os ricos ficarão aflitos, enquanto os pobres cantarão o Magnificat, dizendo:

- A minha alma engrandece o Senhor, porque fez grandes coisas por mim. Ele derruba de seus tronos reis poderosos e eleva os humildes. Dá fartura aos que têm fome e despede os ricos de mãos vazias (Lucas 1,46-55).


Renato Rosso, 52 anos, missionário italiano, trabalha há mais de três décadas com o povo cigano. Viveu no Brasil, de 1984 a 1992, e atualmente acompanha os ciganos no Bangladesh e na Índia.



O PAÍS

Nome oficial: República da Índia
Capital: Nova Délhi
Localização: centro-sul da Ásia
Área: 3.287.782 quilômetros quadrados
População: 953 milhões (1996)
Idioma: hindi e inglês, além de inúmeros idiomas regionais.
Religião: hinduísmo (80,3%), islamismo (11%), cristianismo (2,4%), sikhs (2%), budismo, jainismo e outras.

FONTE: ALMANAQUE ABRIL 97