"É fundamental acabar com a mistificação de que não existe escravidão e de que, se existe, trata-se de casos isolados", afirma o entrevistado, que é membro de uma comissão da ONU para assuntos de escravidão contemporânea.
"Slavery is not dead."
A escravidão não morreu.
"O tráfico e a venda de seres humanos florescem no mundo de hoje. As redes internacionais de prostituição se tornam mais fortes, e a exploração de trabalhadores mantidos em regime de servidão por causa de dívidas se organiza e amplia." |
"O que é particularmente alarmante é o fato de que as novas formas de escravidão atingem cada vez mais crianças - crianças em serviços domésticos, crianças prostituídas, crianças soldados, crianças usadas como provedoras de órgãos para transplantes, crianças colocadas muito cedo para trabalhar, freqüentemente em condições desumanas."
São conclusões de uma comissão da Organização das Nações Unidas (ONU) - a Comissão Executiva do Fundo Voluntário contra as Formas Contemporâneas de Escravidão -, criada em 1991 para servir de suporte ao grupo de trabalho que há vinte anos cuida do problema da escravidão.
O professor José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, doutor em Sociologia, faz parte dessa comissão, junto com quatro outros integrantes, da Índia, Mauritânia, Rússia e Inglaterra. O trabalho o pôs em contato com o drama da escravidão contemporânea nos quatro cantos do mundo.
Martins se diz um indignado com o que vê, sente e combate. Porque "se você não sente indignação, acaba numa discussão conceitual. Acaba se tornando conivente".
O Fundo Voluntário acompanha casos, leva denúncias e militantes até a ONU, apóia vítimas e programas contra a escravidão contemporânea. Um Fundo sem fundo, trabalhando mais na base da boa vontade e da criatividade, fazendo milagres para sobreviver. Nos seis anos de existência do Fundo, um único país de todo o continente americano, o Chile, ofereceu uma contribuição: de 2,5 mil dólares.
De sacolinha na mão, os membros da comissão apelam a grupos, organizações, empresas, particulares, todo mundo. Até mesmo crianças pobres, de uma favela qualquer, podem ajudar no combate à escravidão contemporânea. "Quem sabe desse modo os governos criem vergonha e se disponham a contribuir?", sugere Martins.
Filho de uma família de imigrantes pobres - pai português e mãe espanhola - das fazendas de café do interior de São Paulo, Martins começou muito cedo a dar duro na vida. Trabalhou na roça, puxando enxada. Trabalhou em fábricas. "Não tive infância, não lembro de nada que não seja trabalho. Toda a minha memória é memória de trabalho", ele revela.
Talvez isso explique um pouco de sua longa história de compromisso, estudo e pesquisa de questões rurais no Brasil, os livros que escreveu, as muitas horas de assessoria a bispos e agentes pastorais, o acompanhamento do trabalho da Comissão Pastoral da Terra, as preocupações com a escravidão contemporânea e com outras questões quentes do mundo atual.
SEM FRONTEIRAS - Formas contemporâneas de escravidão: o que isso quer dizer?
José de Souza Martins - A escravidão tem muitas caras, não só aquela que o brasileiro conhece pelos livros de história: a escravidão negra, até 1888.
É bom levar em conta que no Brasil, durante o período colonial, tivemos dois tipos juridicamente diferentes de escravidão - a negra e a indígena -, regulados por estatutos diferentes.
O negro podia ser comprado e vendido como mercadoria, como se compra ou vende um par de sapatos. O mesmo não acontecia com o escravo indígena. Em 1611, uma resolução do rei de Portugal proibiu o comércio de indígenas.
O índio podia ser caçado e escravizado em determinadas condições, mas não comprado e vendido. Virava "índio administrado", como se dizia. Ficava sob a tutela de alguém, que podia dispor arbitrariamente de seus serviços. Não tinha nenhum direito.
Ou seja: era escravo de verdade, apesar de não ter um preço comercial...
- Exato. Na história contemporânea, que se abre com as grandes descobertas do século 16, há um conjunto bastante variado de formas de escravidão.
Quando terminou formalmente a escravidão indígena no Brasil, em 1750 (embora tenha continuado nos casos da chamada "guerra justa"), a população indígena não foi efetivamente incorporada à sociedade nacional. Ficou à margem e continuou a ser dependente dos grandes proprietários de terra, num regime de servilismo.
É por isso que há até hoje no Brasil essa forma de escravidão que é a servidão. Uma pessoa é submetida a outra porque não tem alternativa econômica e social, não tem para onde ir. É obrigada a prestar serviços a alguém, freqüentemente até sem nenhuma remuneração. Ou com uma remuneração muito abaixo daquilo de que necessitaria para sobreviver.
Dá para citar outras formas de escravidão contemporânea?
- Existem muitas. O tipo de escravidão de que eu estava falando é comum no Brasil e, em geral, na América Latina.
Em alguns países africanos, como a Mauritânia, o Chade e o Sudão, a escravidão no sentido tradicional foi abolida recentemente, há dez ou quinze anos. Mas persiste, apesar de não ser mais possível legalmente. É uma escravidão cultural, com raízes históricas muito antigas.
No caso da Mauritânia e do Sudão, populações islâmicas conquistaram e submeteram africanos não-islâmicos, há séculos, e eles são escravos até hoje.
Na Ásia, há formas de escravidão envolvendo a família. Os pais vendem os filhos. Na Índia, a miséria chegou num ponto tal, sobretudo no norte do país, que crianças estão sendo vendidas para a indústria do tapete. Os pais vendem os filhos para poder sobreviver.
Na Tailândia, meninas são vendidas como prostitutas escravas para outros países. Muitas vezes são os próprios pais que as vendem aos traficantes.
E na China?
- Na China, apesar de não ser mais legal, está renascendo a escravidão da esposa, através da compra. O país praticou intensivamente o controle de natalidade e o assassinato de bebês do sexo feminino, e isso ainda continua a existir. O resultado é que há muito poucas mulheres, especialmente para os camponeses.
A mulher, para o camponês, é esposa e serva. Representa mão-de-obra na agricultura. Sem ela, o camponês afunda. No boom econômico que a China está vivendo, cresce a demanda de produtos agrícolas. Com isso, o preço da mulher sobe tremendamente.
Com qual conceito de escravidão trabalha a ONU?
- São pelo menos dois os documentos da ONU que definem o que é escravidão: a Convenção de 1926, de que o Brasil é signatário, e a de 1957.
A Convenção de 1926 é bastante clara. Nela se diz que a principal forma, a mais comum, é a escravidão por dívida. O que a pessoa ganha no trabalho é inferior ao que necessita para sobreviver. Logo, o patrão lhe adianta créditos, que funcionam como fator de subjugação. Muitas vezes, o patrão se sente bastante à vontade para adotar medidas repressivas, como perseguir, torturar, matar.
Uma outra forma contemplada é a da escravidão tradicional, no sentido de que uma pessoa é vendida e comprada por outra pessoa, grupo ou traficante de mão-de-obra.
Num período mais recente, a tendência da ONU é considerar escravidão também a própria servidão doméstica.
Pode explicar melhor?
- É o que está acontecendo na Europa atualmente. Árabes que vivem na Inglaterra, por exemplo, carregam consigo suas "empregadas domésticas". Quando entram no país, eles retiram delas o passaporte, fazendo-as viver numa situação de ilegalidade. Como clandestinas, não podem entrar com nenhuma queixa trabalhista. Se o fazem, são presas e deportadas.
A própria situação ilegal cria mecanismos brutais de exploração econômica. Essas mulheres trabalham dia e noite, não têm horário, ficam à disposição, completamente. São verdadeiras escravas.
Recentemente, a Anti-Slavery, que tem sede em Londres, acompanhou a fundo o caso de uma africana levada para a Inglaterra por uma dessas famílias. A moça já estava há nove anos no país. A entidade conseguiu forçar o governo a não deportá-la. E pôde então entrar com uma ação judicial contra a família africana rica, de origem muçulmana, que se beneficiava com a escravidão da moça.
O que assusta é que os casos de escravidão contemporânea estão aumentando no mundo inteiro, conforme vocês mesmos constatam em seu trabalho...
- No ato de nomeação dos membros da comissão, o secretário-geral da ONU comunicou aos governos que tínhamos sido nomeados, alertando-os para o drama do aumento brutal do número de situações de escravidão no mundo.
Em 1993, o relatório oficial da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconheceu a existência de 6 milhões de trabalhadores escravos no mundo atual.
A Anti-Slavery, com base em informações que recebe diretamente de seus militantes nos vários países, calcula que chega a 200 milhões o número de pessoas escravizadas no mundo inteiro. Esse número está em expansão. Isso inclui também o que a OIT não reconhece como trabalhador. Por exemplo, crianças prostituídas ou mulheres mandadas como prostitutas para outros países.
Quer dizer, a escravidão está muito viva...
- Sem dúvida. Continuamos tendo a escravidão tradicional, característica de países como o Chade, Sudão e Mauritânia, onde as pessoas são escravizadas por tradição. Na China - é mais um exemplo -, renasce uma forma de escravidão que se imaginava superada pelo governo socialista: a escravidão da mulher, como dito antes.
Além disso, a escravidão reaparece, sob novas formas, em muitos outros países. Como no caso da América Latina e também dos Estados Unidos. Nesse país, após o fim da escravidão negra, no século 19, aparece um substituto, o servo endividado. É o chamado fenômeno da peonagem. Até os anos 30, o governo desenvolveu um plano legal para acabar com essa prática, e conseguiu.
Mas agora a peonagem volta a ocorrer, não apenas com os latinos que vão trabalhar clandestinamente nos Estados Unidos. No mês de março, descobriu-se uma fábrica onde só trabalhavam mulheres tailandesas, levadas clandestinamente de seu país por empresários orientais. Ficava mais barato fazer isso do que exportar roupas da Ásia para os Estados Unidos.
E no caso do Brasil?
- Em nosso país, o revigoramento da escravidão por dívida se deu com a expansão capitalista na região amazônica, durante o período militar. A primeira grande denúncia foi feita em 1971 por dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, numa carta pastoral.
A partir daí se montou um esquema de vigilância para acompanhar os casos. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) descobriu então que essa prática estava ocorrendo em toda a região amazônica.
Mais recentemente, os problemas começaram a aparecer em outra áreas. Há um certo número de ocorrências, inclusive, nas regiões metropolitanas de São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Nos cinturões de pobreza das grandes cidades estão as populações mais vulneráveis. As pessoas aceitam trabalhar nessas condições porque não têm nenhuma alternativa. Ou é isso ou é morrer de fome.
Então, você tem a escravidão tradicional e também o nascimento de uma escravidão moderna, geralmente ligada a grandes empresas, ultramodernas, que não têm nada a ver com aquele fazendeiro de mentalidade arcaica.
Na lista das empresas envolvidas estão todos os grandes grupos econômicos do Brasil, como o Bradesco, BCN, Bamerindus... Os nomes desses grupos aparecem nas denúncias feitas nos últimos trinta anos, sobretudo o do Bradesco.
Há casos que ficaram famosos, como o da Volkswagem, que tinha quinhentos escravos na Fazenda Vale do Rio Cristalino, no Pará, no final dos anos 80. Depois de comprovadas as denúncias, a empresa vendeu a fazenda.
Há denúncias mais recentes contra grandes empresas?
- Não. Em parte porque a abertura de novas fazendas na região amazônica entrou em declínio. A fase mais importante da ocupação já passou.
E também não há casos recentes muito graves por causa desse programa que o governo adotou, a partir do ano passado. Trata-se do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, o Gertraf.
Antes, a Polícia Federal apurava as denúncias e encaminhava ao Ministério do Trabalho. Este, por sua vez, encaminhava aos delegados regionais do trabalho. Acontece que esses últimos são atrelados aos políticos e fazendeiros da região.
Por isso, dificilmente tomavam providências. A escravidão acabava não sendo constatada, porque, na cabeça deles, escravidão é ter um negro amarrado no tronco e apanhando, como no passado. Isso sem contar que, muitas vezes, funcionários da Delegacia Regional do Trabalho avisavam os fazendeiros dias antes da inspeção.
Como funciona o Gertraf?
- É um grupo executivo ligado diretamente ao presidente e aos ministérios da Justiça e do Trabalho, com poder de intervenção em qualquer parte do território nacional.
A legislação brasileira sobre o assunto é confusa e insuficiente. Oficialmente, não existe escravidão.
Uma coisa importante que aconteceu foi o pronunciamento do presidente no rádio reconhecendo que existe escravidão no país. Porque é fundamental acabar com a mistificação de que não existe escravidão e de que, se existe, trata-se de casos isolados.
Quando a denúncia vai parar no Gertraf, entram em ação conjunta a Polícia Federal, o Ministério do Trabalho, os vários profissionais que compõem o grupo e alguém da área de Justiça, para já iniciar um processo judicial.
O Gertraf é formado por pessoas indignadas com a situação. Atua em regime de emergência, de modo fulminante. No geral tem dado certo.
Qual a região onde esse grupo mais atua?
- No Brasil inteiro. As denúncias mais freqüentes ainda vêm da região amazônica, mas também do Mato Grosso do Sul, de Minas Gerais e de outros estados.
O Gertraf tem recorrido à assessoria de juristas, porque a legislação, nesses casos, é muito benevolente com o explorador. É preciso alargar o conceito de trabalho escravo.
E a quantas anda o termômetro da indignação, em seu caso pessoal?
- Está muito alto. Inclusive na ONU, os colegas de trabalho são comprometidos e também indignados. Se você não sente indignação, acaba numa discussão conceitual. Acaba se tornando conivente.
Para maiores informações, ou para receber os textos completos, faça contato com:
Colaboração da:
Biblioteca Comboniana Afro-brasileira. E-mail: comboni@ongba.org.br |