Remanescentes de quilombos

A VIDA
VALE UMA FESTA


Crônica de uma festa de casamento em Caiana dos Crioulos, comunidade de remanescentes de quilombos no interior da Paraíba.


LUIZ ZADRA


O dia amanhece com sabor diferente em Caiana. Hoje tem festa. É o casamento da filha de Seu Manoel.

O povo já está de pé, muita gente desce as ladeiras para buscar água nas cacimbas e nos pequenos açudes. A casa da noiva, recém-pintada de azul, faz bela amostra de si do outro lado da serra, mergulhada no verde das plantas desta terra fértil.

O amanhecer na serra é muito agradável e tem cheiro de vida: bichos e crianças no terreiro, animação na cozinha, carrego de água... Tudo acompanhado pelo rádio, esse companheiro inseparável do povo, sempre ligado naquelas alturas, com suas músicas saudosas e o inesquecível forró, que o povo da roça tanto ama.

A região é um sobe-e-desce de serras, onde as casinhas coloridas sobressaem no brilho do verde renovado pela chuva recente. De muitas moradas sai um fiozinho de fumaça, sinal do café reforçado que está sendo aprontado nos fogões a lenha: beiju, café, farinha, batata-doce, inhame...


Hora de se arrumar


Seu Zé, Dona Lúcia e os filhos se arrumam para o casamento, e o grande espelho da sala é o objeto mais cobiçado na casa. Faz gosto ver o povo se aprontando: a roupa melhor, perfume, batom, tudo conforme manda a regra em dia de festa.

A dona da casa está de vestido rosa, bem passadinho, e o marido, vestido com um toque de cidade: calça jeans e tênis, sinal da recente viagem para o Rio de Janeiro, que ele e muitos outros moradores do lugar já enfrentaram (veja matéria seguinte).

Dá gosto vê-los bem arrumadinhos, se encaminhando com o maior cuidado pelas ladeiras, como os demais da serra, para a casa da noiva. Dali, vão viajar de Kombi para a cidade de Alagoa Grande. O casamento está marcado para lá pelas 10 horas, na igreja, como manda a tradição.

Toda a serra e o vale estão em alvoroço pelo acontecimento. Aqui são todos parentes, ligados pelo mesmo sangue e o mesmo destino.

Hoje, dia de encanto, tudo está em função do casamento, que segue um ritual antigo como a ciranda - a famosa ciranda da Caiana -, compromisso de muitos pais que nessa época do ano casam suas filhas.


Festa para todos


Cada um procura fazer o melhor. A criação da casa é sacrificada: porcos, frangos, bode e, quando possível, até um boi.

Como no caso de Seu Manoel. Tendo conseguido anos atrás uma terrinha do governo, pode se considerar um felizardo. Com 25 hectares de terra, é um pequeno senhor. Umas vaquinhas e um bagulho lhe permitem olhar com sossego para o futuro.

Por isso, pôde aprontar uma festa bonita para a filha e os amigos. E para coroar o tudo, o sagrado forró, até o sol raiar, que deixa todo mundo na expectativa.

Parece que o sanfoneiro é bom, e vale a pena os homens gastarem os 5 reais de cota. Seu Manoel providenciou polícia, para que tudo corra em paz.

Nem as crianças vão dispensar a festa. Forró se aprende cedo. É coisa que corre nas veias, com o sangue.


Afirmação da dignidade


Enquanto visito as famílias, reparo no movimento dos atrasados, que se apressam para chegar à casa da noiva. Todos têm que sair em cortejo, em várias Kombis fretadas.

As moças estão arrumadas que dá gosto, esperançosas de realizar num dia felizardo o sonho acalentado às vezes por muitos anos.

Moças e mulheres feitas não foram tolhidas nos seus sonhos e em sua vaidade, e hoje desfilam com seus trajes bem à moda da cidade grande, bem produzidas.

A dureza da labuta da roça e do dia-a-dia não inibiram a vontade de afirmação de sua dignidade, de se sentir gente. E os homens não tiram por menos!

Mergulho curioso nesta realidade e reparo o ritual da vida.

O cortejo dos noivos já se encaminhou para a cidade, com descontado atraso de duas horas. É mais de hora de ladeiras, bem rodeadas de mata e lavouras.


Noivos retornam


Pelas 3 da tarde, finalmente, os noivos e o cortejo retornam da cidade. Foi luta para arrumar e organizar tudo para a volta. Nas ladeiras da serra, tiveram que descer para maneirar o peso do carro.

Tudo faz parte. Aqui, o imprevisto está sempre de casa e os desacertos não incomodam. O povo tem paciência para tudo. Afinal, a festa é a grande esperada.

Na soleira da latada, um parente recebe os noivos com um copo de guaraná, enquanto na sala de casa a noiva dá a benção aos pais, que estão de joelhos.

Em seguida, sem pressa, as mulheres enchem com muito cuidado os pratos que há tempo estão esperando, como grandes bocas abertas, tamanha a fome do povo que só às 4 e 30 finalmente começa a comer.

O noivo foi tomar benção na casa da mãe, do outro lado do vale. O pai está no Rio.


Brilho e nobreza


Assim é o ritual, que há anos se repete com cuidado e sempre acrescido pelo novo que pode pintar. As meninas casam moças, de véu e grinalda, como manda a tradição.

A noiva, sem tirar o grande vestido branco e as luvas, passeia com charme no meio dos convivas. Só depois da meia-noite, quando o bolo for repartido, vai poder tirar o vestido de casamento.

O véu será tirado pelo marido quando ela chegar em casa, lá pelas 6 da manhã, acompanhada pelos convidados. Estes cumprirão essa última missão antes de subir a derradeira ladeira, rumando para casa para o sono merecido. Tudo é nobre e cheio de brilho.

Os mais de cinqüenta pratos são preenchidos numa seqüência de ritual: farofa, arroz, macarrão, alface, batata cozida, tomate, cebola, cabedela (molho de sangue de peru com vinagre), carne de gado, galinha, porco e peru.

Uma montanha de comida, que todos recebem com o mesmo direito e gosto. Muitos outros vão esperar pela próxima rodada, o tudo temperado pelas conversas que colocam todo mundo em dia.

Seu Manoel e a esposa Edite arrumam, reparam, agasalham. Na cozinha improvisada no quintal, uma legião de mulheres que desde o dia anterior dá vida ao local.

E assim vai a tarde no serviço da comida, para que todos possam se fartar neste dia que até para os cachorros é de muita fartura.


Muitas Margaridas


Observo este povo, não quero perder detalhes de um seguir de pequenos momentos e passos, onde tudo é estabelecido e marcado pelo lento desenrolar do tempo. A pressa faz defeito neste lugar, onde soberana é a vida.

Aqui foi terra de liberdade, foi quilombo de negros valentes, que reconstruíram a vida distante dos olhares e da ganância de um poder que os queria perenemente escravos.

Mas o cativeiro continua, no dizer do povo, porque a terra ficou cativa, e ex-quilombola sem terra é futuro sem endereço e sem destino.

Nestas terras do Brejo paraibano viveu e atuou Margarida Alves, apagada à queima-roupa na frente de casa pelo latifúndio assassino. Margarida é lembrada por todos com carinho e orgulho, mas com ela se foi a coragem e a esperança de muita gente.

Até parece pesadelo a lembrança dessa mulher, símbolo de luta para tantos sem-terra. Mas muitas Margaridas estão espalhadas por estas terras, mulheres corajosas que tocam a vida sem queixa e sem mágoa, de enxada nas mãos. Mãos que afagam a vida e a terra e que acalentam sonhos.


Festa da vida


Deixo para trás e com pesar este momento, que foi também meu, e desço a serra contra a vontade, voltando o olhar de vez em quando para roubar ainda alguns instantes de um ritual que vai se perdendo no tempo.

Infelizmente, o futuro aqui é muito incerto e o presente, sem descanso. Mas amanhã será outro dia! As luzes da gambiarra enfeitam e iluminam o lugar e a noite que se preanuncia animada.

Devagar, as primeiras sombras baixam na serra e no vale. Uma doce calmaria de fim de tarde alivia o duro subir da ladeira. Olho para o alto e, no horizonte, umas pinceladas de vermelho, último sinal do dia que se mistura com a noite, botam em relevo as silhuetas das copas das árvores no topo da serra.

É moldura perfeita para este pedaço de mundo onde uma humanidade sofrida, teimosa e alegre se prepara para a forró, o ponto mais esperado da festa. Forró quente que vai noite adentro, até o sol raiar.

Um dia de festa amansa muita mágoa e motiva este povo no continuar de sua vida.

Você sabia?

Quilombolas é a designação comum aos habitantes dos quilombos - palavra africana que quer dizer acampamento -, comunidades livres em lugares escondidos, distantes das fazendas e do chicote, formadas por negros fugidos da escravidão.

Existiram quilombos nos quatro cantos do Brasil. O mais famoso deles foi o de Palmares, nos limites dos atuais estados de Alagoas e Pernambuco. Na realidade, Palmares era formado por uma rede de povoados, com uma população de mais de 20 mil habitantes. A República Negra do grande líder Zumbi (1655-1695) resistiu por quase um século (1600-1695) às investidas do poder colonial.

O artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988 diz que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos".

Incluído na Carta Magna por pressão do movimento negro organizado, o artigo 68, porém, é pouco explícito, e a sua aplicação esbarra em fortes interesses econômicos e políticos. Dois projetos de regulamentação desse artigo, que tramitam no Congresso Nacional desde 1985, continuam encalhados.

Segundo levantamentos feitos em vários estados brasileiros por universidades e organizações negras, passa de quinhentos o número de comunidades remanescentes de quilombos. Com a exigência de demarcação dessas terras, essas comunidades podem se transformar em atores de peso no cenário agrário nacional, ao lado de indígenas e sem-terra.