Gana

Escravas
dos espíritos

Mulheres são obrigadas a se tornar escravas e concubinas de feiticeiros por causa de pecados cometidos por familiares.


Samuel Sarpong
Foto: Comboni Press


Para quem é de fora, o pacato vilarejo de Tefle, a cerca de 300 quilômetros de Acra, a capital do país, vive um dia como qualquer outro. As pessoas se ocupam de suas tarefas no compasso lento do cotidiano, enquanto um bando de rapazes mata o tempo sob a sombra de um enorme baobá, bebericando o vinho típico da região.

Mas hoje, como tem acontecido muitas vezes nos últimos tempos, é um dia diferente. A tranqüilidade desse quadro é quebrada por uma inflamada voz que grita no alto-falante, convocando os moradores a testemunhar um grande acontecimento: a libertação das trohosi, as "escravas dos espíritos".

Surge uma fila de anciãos tradicionais, seguidos por um grupo de jovens garotas e algumas mulheres mais velhas, todas vestidas de branco. Um breve silêncio recai sobre a pequena multidão aglomerada em torno do grupo.

A cena é de causar emoção. Olhares cheios de pavor e pena se concentram sobre as mulheres, cujo destino, até então, estava nas mãos dos deuses feiticeiros.

Seguindo uma antiga tradição, essas mulheres tinham sido mandadas como escravas para centros ou templos de feitiçaria, a fim de pagar pecados cometidos por parentes - geralmente furtos no campo, roubos e dívidas.


OBJETOS SEXUAIS - "Tivemos que obedecer. A gente não cometeu nenhum pecado, e também não sabe o que foi que os nossos parentes fizeram de errado", diz Esi Aboryor, 15 anos, que foi levada para um desses templos quando tinha 4 anos de idade.

O caso de Esi não é único. Muitas de suas companheiras de infortúnio eram muito jovens quando foram parar nos templos dos feiticeiros. Ali, além de escravizadas e de não ter acesso à educação, as moças são vítimas de abuso sexual por parte dos sacerdotes. Os feiticeiros não têm nenhuma obrigação de alimentá-las e nem de reconhecer as crianças que nascem como frutos de tais abusos.

"A gente trabalha na terra deles, mas não tem direito a nada. Para comer, precisamos cultivar um pequeno pedaço de terra à parte. Além disso, quando é de noite, eles fazem o que querem com a gente", acrescenta Esi, que está muito traumatizada pela experiência vivida.

Algumas das mulheres mais velhas foram escravizadas por quase sessenta anos. Tiveram filhas que, depois, engravidaram dos mesmos feiticeiros que as geraram.


O CASO DE AJO - A tradição trohosi, uma cruel e degradante prática predominante em Tefle e em toda região, existe há séculos.

Normalmente, quando acontece alguma desgraça, a família em questão recorre à ajuda de um adivinho. Se ele diz que a causa é algum pecado cometido por um membro da família, não tem jeito. Será preciso buscar a intervenção espiritual do feiticeiro.

Em troca, o feiticeiro exige que uma das filhas lhe seja oferecida, a fim de salvar a família do extermínio completo. A garota escolhida acaba então virando "escrava dos espíritos".

Existe a forte crença de que vários membros da família de um pecador podem realmente morrer se a tradição não for respeitada.

A família de Ajo, 12 anos, é uma das que acreditam nisso. Apenas quatro dias depois de perder um irmão, a irmã de Ajo também morreu em "circunstâncias estranhas" - foi atingida por um raio, numa ensolarada tarde de verão.

O incidente levou os pais de Ajo a consultar o adivinho, que acusou um dos irmãos dela de ter cometido um roubo numa fazenda próxima. Como a família não conseguiu o dinheiro para saldar a dívida, decidiu enviar Ajo, então com 6 anos, para o templo. Era preciso pagar pelo crime.


TRADIÇÃO E MEDO - Para a população de Tefle, a libertação das trohosi é uma ocasião histórica, já que algumas voltam para seus familiares depois de viver longos anos longe deles. Não é de se admirar, portanto, que se toquem os tambores e se dance, que haja arrasta-pé e muita festa acompanhando a cerimônia de libertação.

Explicando as raízes dessa tradição, Togbe Dzifa, um ancião de Tefle, diz que, no passado, a prática servia como mecanismo de controle moral e social, já que não havia o sistema de justiça civil e criminal que existe hoje.

A chegada do cristianismo fez com que se reduzisse bastante a importância até então atribuída à tradição trohosi. Apesar disso, em Tefle como em outros lugares, muitos ainda têm pavor dos feiticeiros. Não gostariam de causar descontentamento ao deus-feiticeiro, Tis. Segundo a tradição, Tis se apropria das trohosi através dos sacerdotes feiticeiros.

Acredita-se que milhares de garotas estão sendo mantidas nesse tipo de cativeiro. Os números não são exatos, já que tudo é mantido em segredo. Também tem o fato de que muitas pessoas se recusam a revelar o que sabem, temendo vingança.


NEGOCIAÇÃO DIFÍCIL - Uma organização cristã, a International Needs (IN), vem dando um corajoso passo na tentativa de acabar de vez com essa prática. A iniciativa nasceu do esforço pessoal da antropóloga canadense Sharon Titian, com o apoio dos missionários combonianos que atuam na região.

A organização trabalha em dois níveis: negocia com os sacerdotes a libertação das mulheres e, em seguida, as acompanha na difícil tarefa de reabilitação.

Os acordos com os feiticeiros estão dando resultados. Até agora, a organização foi capaz de negociar a libertação de 265 trohosi de sete templos espalhados pelo país, inclusive de Tefle.

Cada templo recebe seis vacas e cerca de 2 mil dólares como pagamento para libertar as trohosi da escravidão física e espiritual. Mas nem todos os proprietários de templos estão dispostos a negociar. Alguns afirmam com veemência que jamais aceitarão qualquer acordo.

As negociações são complicadas. É que, de acordo com a tradição, as trohosi estão obrigadas a cumprir sua "sina" até o fim. Por outro lado, o fato de muitos feiticeiros, por dinheiro, estarem dispostos a correr o risco de ser amaldiçoados pelo seu deus, Tis, demonstra que o costume, hoje, já não é tão forte como no passado.

Oferecer dinheiro aos sacerdotes pode ainda acarretar outro risco. Isso poderia encorajá-los a escravizar mais garotas para ganhar mais dinheiro.

Apesar disso, Walter Pimpong, diretor executivo da IN, garante que a organização continua conversando com os donos dos templos que insistem em manter a tradição ao pé da letra. O objetivo é convencê-los a mudar de idéia.

Outro sério contratempo é o fato de muitos templos estarem localizados bem no interior do país, em locais de difícil acesso. Pimpong informa que a IN vai fazer uma pesquisa para saber a localização exata de cada templo. Isso é fundamental para o processo de negociação com seus donos.


PROJETO DE LEI - Quando a IN começou a se envolver na questão das trohosi, em 1990, muitos ganenses, conscientes do poder que a prática tem nos locais onde predomina, consideravam a tarefa praticamente impossível. "Mas nós conseguimos provar o contrário", orgulha-se Pimpong.

Mas o trabalho da IN não termina quando as trohosi são colocadas em liberdade. Uma vez devolvidas ao seio de suas famílias, elas terão também a chance de aprender uma profissão, num centro de formação montado especialmente para acompanhar o processo de reintegração social das ex-escravas.

Esi, a garota de 15 anos que há onze era escravizada, não tem palavras para exprimir sua emoção. Ela balança a cabeça, como quem ainda não acredita no que está acontecendo, abre um largo sorriso e desabafa: "Graças a Deus! Está tudo acabado".

Depois de participar do culto de libertação realizado pelos próprios sacerdotes feiticeiros, ela grita, com lágrimas nos olhos, enquanto é levada de volta para casa por um parente: "Finalmente livre!".

Recentemente, um projeto de lei que visa a acabar com a prática foi encaminhado ao Parlamento. Mas Ken Dzirasah, um representante de Tefle no Parlamento, adverte que isso não é o bastante. "Um consenso construído na base de negociações pode surtir bem mais efeitos do que proibições provenientes de leis", ele afirma.

Segundo Dzirasah, basear-se na lei para aplicar punições não vai levar a nada. Inclusive, essa atitude poderia gerar indesejáveis revoltas sociais.

O secretário de Direitos Humanos e Administração da Justiça, Emile Short, discorda. Em sua opinião, a República de Gana não pode mais admitir esse tipo de negociação. "Ou os sacerdotes feiticeiros param com isso ou nós vamos entrar com processos contra eles", diz Short. - NPfs

(Samuel Sarpong, p. 36)


O país

Nome oficial: República de Gana
Capital: Acra (949.100 habitantes)
Nacionalidade: ganense
Idioma: inglês (oficial) e línguas locais
Localização: oeste da África
Área: 238.538 km2
População: 18 milhões (1996)
Religião: cristianismo 62% (protestantes 27,9%, católicos 18,7%, Igrejas africanas 16%), religiões tradicionais 21,4%, islamismo 15,7%, outros 0,3% (dados de 1980)

História: país com forte tradição tribal, cultural e religiosa, dali foi arrancada a maioria dos escravos negros destinados, principalmente, aos Estados Unidos. Ex-colônia britânica, a terra do cacau, ouro, manganês e diamantes conquistou a independência em 1957. Golpes de Estado e repressão política tornaram-se uma constante na história recente do país, que hoje segue os ditames do Fundo Monetário Internacional em sua economia.

FONTE: ALMANAQUE ABRIL 97