Conflitos no campo

As feras estão soltas

Comissão Pastoral da Terra divulga relatório sobre a violência rural no ano que passou.


Malu Maranhão


O massacre de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril, marcou definitivamente 1996 como um ano de muitos conflitos e violência no campo. Nada de novo, a não ser o fato de que se engana quem pensa que a situação foi menos ruim que nos anos anteriores.

A data virou Dia Internacional de Luta Camponesa, e o Movimento Sem Terra teve amplo apoio da sociedade em sua marcha a Brasília, encerrada no primeiro aniversário do massacre.

Mas nem por isso o governo mostrou qualquer empenho especial na realização da reforma agrária ampla e massiva que o país espera.


VISÃO DO GOVERNO - A reforma agrária é ainda vista pelo presidente Fernando Henrique Cardoso como política compensatória, para "ajudar os miseráveis". E também como forma de combater conflitos localizados, já que os sem-terra não cabem em seu plano de modernização.

Assim, também não existe nada de novo no fato de que violência, assassinatos e impunidade continuam sendo usados à vontade pelas elites arcaicas como forma de deixar tudo como está. Em 95 ocorreu o massacre de Corumbiara e, em 96, o de Eldorado dos Carajás. Nos dois casos, impunidade total.

No entanto, na atual situação, é difícil não lembrar o que afirmou o bispo de Campanha, em Minas Gerais, Inocêncio Engelke, numa histórica manifestação da Igreja católica em 1950, então preocupada com o que imaginava ser o avanço do comunismo: "Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma agrária".


CONFLITOS AUMENTARAM - Como faz todos os anos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou em julho o relatório com o registro dos dados sobre conflitos e violência na área rural no ano que passou, intitulado "Conflitos no campo/Brasil 96".

A primeira constatação assusta: foram 750 conflitos, o maior número já registrado nos onze anos em que a entidade faz esse tipo de levantamento. Isso representa 196 conflitos a mais que no ano anterior. O crescimento foi de 26% em relação a 95 e de 34% em relação à média anual de 91 a 94.

Foram 653 conflitos de terra, 19 casos de trabalho escravo e 78 outros (trabalhistas, sindicais, de política agrícola e de garimpo), numa média de dois conflitos por dia.

A região Nordeste ocupa o primeiro lugar da lista, em termos de quantidade de conflitos: 256 (58 a mais que em 95), seguida pelas regiões Centro-Oeste, Sudeste, Norte e Sul.Os estados com maior número de conflitos em cada região foram o Pará (72), Minas Gerais (70), Goiás (67), Bahia (60) e Paraná (53).

Os dados revelam o que já tinha sido constatado em 95: o deslocamento dos conflitos para áreas mais modernizadas, ainda que não tenham diminuído nas áreas de expansão amazônicas.

Os conflitos de terra também bateram um recorde em termos de pessoas envolvidas: 653.213, o que representa 32,6% a mais que em 95.

O número de ocupações de terra (398) é o maior registrado desde 85, tendo aumentado em todas as regiões e estados do país. As famílias de ocupantes foram 63.080, mais que o dobro de 95.


RESULTADOS POSITIVOS - Uma boa notícia em meio a tantas desgraças: os casos documentados de trabalho escravo sofreram uma pequena queda, passando de 21 em 95 para 19 em 96. Já o número de vítimas teve uma queda extraordinária: foram 2.478, contra 26.047 no ano anterior.

O motivo é que não mais se constatou a existência de trabalhadores nessas condições, principalmente nas carvoarias do Mato Grosso e de Minas Gerais.

No Mato Grosso está sendo realizado um trabalho constante de monitoramento por parte da Comissão Permanente de Fiscalização do Trabalho, formada por órgãos do governo e entidades da sociedade civil, a CPT entra elas. Já em Minas Gerais, a Assembléia Legislativa criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o assunto.

Porém, uma ressalva precisa ser feita: embora não tenham sido registrados casos de trabalho escravo nas carvoarias, nem por isso o quadro mudou da água para o vinho. Desumanas e degradantes, as condições de trabalho permanecem incomodamente próximas ao que se considera trabalho escravo.


ASSASSINATOS - Cinqüenta e quatro lavradores foram assassinados no ano que passou, 13 a mais que no ano anterior e 6 acima da média anual de 91 a 95. Os principais autores das mortes foram a PM do Pará, no caso do massacre de Eldorado dos Carajás, e 13 pistoleiros em outros casos. As tentativas de assassinato aumentaram de 43 para 71.

A violência contra a posse e propriedade cresceu em todas as modalidades, menos no que diz respeito às expulsões. Nesse último caso, houve porém um aumento significativo de despejos judiciais: 17.595 famílias despejadas, 4.763 a mais que em 95.

Isso confirma uma tendência, observada nos últimos anos: utiliza-se cada vez menos o recurso da expulsão por pistoleiros. O Judiciário, através das liminares de despejo, tem cumprido muito bem o papel de defender o latifúndio.


META INSIGNIFICANTE - O Setor de Documentação da CPT também registra que, de 85 a 96, aconteceram 976 assassinatos e 891 tentativas de assassinato. No mesmo período, somaram 2.500 as pessoas ameaçadas de morte em conflitos rurais no Brasil.

Nos dois primeiros anos do governo Fernando Henrique ocorreram 1.304 conflitos rurais, envolvendo 1.316.220 pessoas, com 95 lavradores assassinados, quase um por semana.

A meta do governo de assentar 280 mil famílias em quatro anos, se concretizada, estará a anos-luz de resolver o problema.

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima o público preferencial da reforma agrária em 2,5 milhões de famílias, pouco mais da metade do que calculam os movimentos sociais (4,8 milhões).

O critério da FAO para um programa de reforma agrária é que sejam atingidos anualmente 5% do público potencial. Essa meta mínima representaria, se considerada a estimativa dessa organização, o assentamento de 125 mil famílias por ano (contra 240 mil, se fosse levado em conta o cálculo dos movimentos sociais).


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Malu Maranhão é assessora de comunicação da CPT Nacional.



MAIS DADOS DO RELATÓRIO DA CPT

  • Ocupações de terra em 96: 398, envolvendo 63.080 famílias.
  • Lavradores assassinados: 54 (13 a mais que em 95).
  • Estados com maior número de assassinatos: Pará (33), Amazonas (5), Maranhão, Mato Grosso e Bahia (4 cada).
  • Assassinatos entre 85 e 96: 976, com 891 tentativas de assassinato no mesmo período.
  • Foram realizados apenas 57 julgamentos, 15 dos quais envolvendo mandantes. Oito mandantes foram condenados, mas apenas 5 continuam presos.
  • Nos dois primeiros anos do governo Fernando Henrique ocorreram 1.304 conflitos rurais, envolvendo 1.316.220 pessoas, com 95 assassinatos.
  • Pela meta mínima da FAO, 500.000 famílias brasileiras de sem-terra deveriam ser assentadas em quatro anos. A meta do governo Fernando Henrique é de assentar 280.000.

FONTE: SETOR DE DOCUMENTAÇÃO DA CPT NACIONAL