Mudar a situação da infância no país e, assim, garantir um futuro mais humano e melhor para todos não é coisa do outro mundo. O presidente da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança acredita nisso.
Das coisas que Oded Grajew lembra de sua infância em Israel, antes de a família vir para o Brasil quando ele tinha 11 anos de idade, uma lhe ficou muito bem gravada na memória: "Para as crianças, não pode faltar nada". Não tem dificuldade, não tem crise, não tem nada que possa desculpar o descaso, porque as crianças são o presente e o futuro da sociedade.
Essa idéia, junto com uma outra, a de que "dá para resolver", estão na base da mobilização que a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, oficializada em 1990, vem promovendo no país, articulando empresários capazes de pensar em algo mais do que no simples lucro e firmando parcerias com organizações, sindicatos, governos e entidades preocupadas com o destino das nossas crianças.
São muitos os projetos e programas, e é muita a briga da Fundação, em diferentes setores, por acreditar que "é necessário e possível agir imediatamente para reverter esse quadro perverso do ponto de vista social e inconseqüente do ponto de vista econômico e político". O endereço, para maiores informações: Rua Alberto Faria, 473 - Alto de Pinheiros - 05459-000 São Paulo/SP - Fone/fax: (011)814.9500.
Ex-empresário do ramo de brinquedos, fundador e presidente da Fundação Abrinq, de Oded Grajew já se disse que ele só tem um defeito: pensa diferente, é da oposição. Ligado ao Partido dos Trabalhadores e amigo pessoal de Luís Inácio Lula da Silva, o "chato que funciona" - na definição da Veja - vive de pensar nas crianças e num futuro melhor para o Brasil.
Sente-se bem com o que faz. É possível viver no Brasil, ver essa situação e ficar sem fazer nada?, ele pergunta, durante a entrevista a SEM FRONTEIRAS, da qual reproduzimos os trechos principais.
Sem Fronteiras - São sete anos de Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança. Nesse período, o que pode ser considerado avanço na batalha pela cidadania das crianças brasileiras?
ODED GRAJEW - A criança está muito mais presente na agenda nacional do que alguns anos atrás. Há muito mais mobilização da sociedade civil. A criança não é ainda prioridade nacional, mas é hoje muito mais prioritária do que antes.
Cresceu o número de organizações não-governamentais que trabalham pela criança. Há mais consciência da população e é maior a presença da criança nos meios de comunicação. Há diversos projetos da iniciativa privada. O tema é cada vez mais discutido em conferências, reuniões e congressos. Vários aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990, viraram realidade em diversas regiões. Ou seja: há muito mais pessoas trabalhando e muito mais crianças sendo beneficiadas. Isso tem que ser comemorado.
Que motivações o levaram a entrar nessa luta?
- É preciso começar absolutamente pelas crianças, se queremos mudar o Brasil, esse país onde a desigualdade social é a maior do mundo e onde você vê a miséria e a pobreza em cada esquina. Qualquer tipo de esforço para mudar essa situação de nada adianta, se você não começa a cuidar das crianças. Elas são os cidadãos de hoje e de amanhã. Por isso, vêm em primeiro lugar.
A situação das crianças brasileiras é uma das piores do mundo, como mostra, por indicativos muito precisos, o último relatório do Unicef. Por esse mesmo relatório, você também percebe que melhorar a situação das crianças não é uma tarefa sobre-humana, nem depende de muitos recursos. Países muito mais pobres e com muito menos recursos que o Brasil têm uma situação das crianças muito melhor. Depende, porém, de dois fatores: vontade política e competência.
A mobilização tem de ser de toda a sociedade, de todos os setores sociais e governamentais. Tem de ser realmente um mutirão, devido à gravidade da situação.
O que a Fundação Abrinq mostra de original no trabalho em favor das crianças brasileiras?
- A Fundação Abrinq nasceu no meio empresarial, dentro de uma entidade empresarial, que é a Abrinq (Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos). Sua missão é mobilizar a sociedade, especialmente a classe empresarial, em favor dos direitos da criança, através da ação política e do gerenciamento de projetos exemplares.
A Fundação Abrinq ocupa um espaço específico na sociedade, com um acento mais forte na área empresarial. Ao mesmo tempo, tenta fazer alianças e parcerias com diversos setores da sociedade, como organizações não-governamentais e populares, sindicatos, governos municipais, estaduais e federal.
Não existe aí o risco de se desconsiderar, digamos, as causas estruturais dessa situação deplorável?
- Temos sempre tentado atuar sobre causas e efeitos. Sobre os efeitos, por exemplo, promovendo o apoio a crianças que têm necessidades imediatas: quem tem fome quer comer.
Mas também temos tentado atuar sobre as causas que, no caso, levam as crianças a passar fome. Nesse sentido, insistimos na necessidade de uma mudança das políticas públicas, para que se dê prioridade às questões sociais. Quando falo de criança, falo de tudo: saúde, emprego, educação, saneamento básico, orçamento...
Se você não questiona as causas, fica enxugando o chão enquanto o teto está aberto, furado. Não fazemos projetos assistencialistas. Nossos projetos sempre programam o desenvolvimento e a cidadania das crianças.
Em que termos a Fundação Abrinq considera o empresariado como parte da solução do problema?
- O empresariado, como toda classe social, não é uniforme. Há empresários que pensam e atuam de formas diferentes. O que queremos é criar consciência na classe empresarial, para ter mais empresários pensando diferentemente.
O empresariado é um setor poderoso, com muitos recursos financeiros e infra-estrutura de conhecimentos e informação. Esse setor precisa ter muita responsabilidade. Uma parte desses recursos tem que ser mobilizada para o investimento na comunidade. O Brasil não é um país pobre, mas injusto. Você tem, de um lado, a concentração e, do outro, a carência de recursos. O que estamos tentando fazer é abrir canais para que os recursos possam fluir de onde eles estão concentrados para onde há carência.
O que os empresários lucram com a conquista da cidadania das crianças?
- Primeiro, lucram como cidadãos: melhorando as condições de vida das crianças do Brasil, você vai viver num país melhor, com mais segurança, qualidade de vida, educação, igualdade - um país mais humano. Segundo, lucram como empresários, porque as pessoas terão melhores condições de vida, uma renda melhor, mais informações, e isso significa também que irão poder consumir, serão trabalhadores qualificados, tornando as empresas mais competitivas.
Evidentemente, nem todos os empresários ganharão com isso, porque há os que vivem da miséria, da ignorância e da corrupção, que lucram com isso, como também existem políticos que lucram com essa situação. Você tem mais poder sobre massas fragilizadas. Esses só têm a perder, mas são a minoria.
O nosso país está nessa situação não é porque Deus quis assim. Tem gente que ganha com isso. Mas a maioria perde. E percebe que precisa reagir.
O governo tem feito muito pouco para melhorar as condições de vida das crianças, e mais na base da pressão social, não é verdade?
- Não acho que o governo queira prejudicar as crianças, mas o fato é que elas não são uma prioridade. As ações não correspondem ao discurso. Vou citar um caso: num evento contra o trabalho infantil, o presidente disse que iria fazer uma emenda constitucional proibindo definitivamente o trabalho entre 12 e 14 anos - porque o Estatuto da Criança e do Adolescente abre uma brecha perigosa, ao permitir que crianças nessa idade possam trabalhar na função de aprendiz. Até agora não aconteceu nada, e a emenda continua na gaveta.
Se o governo tivesse o mesmo empenho na aprovação dessa emenda constitucional como o que teve no caso da emenda da reeleição, seria diferente. Então, nas suas ações, o governo tem demonstrado que a criança não é uma prioridade. Governos que se comprometeram com essa causa, não importa se de direita ou de esquerda, mudaram num espaço de tempo não muito longo a situação das crianças, baixando rapidamente a mortalidade infantil e a evasão escolar.
Algum exemplo?
- Tem o caso do governo do estado do Ceará, que em quatro anos conseguiu baixar em 35% a mortalidade infantil. Na cidade cearense de Icapuí, a prefeitura resolveu colocar todas as crianças na escola, e conseguiu. Existem hoje várias cidades no Brasil em que não há crianças fora da escola. Como já disse, depende muito de vontade política e de competência.
O que lhe causa maior indignação diante da situação em que se encontra a maioria das crianças brasileiras?
- É a fragilidade de alguém que sofre devido ao descaso dos que detêm o poder. Você vê a quantidade enorme de recursos indo de um lugar para outro e depois percebe quanto ganha um professor, um médico público. É a coisa que mais revolta.
Hoje, no Brasil, segundo o Unicef, 300 mil crianças abaixo de 5 anos morrem anualmente por descaso e razões absolutamente evitáveis. É um assassinato em massa. São mortes de inocentes. É revoltante. O direito à vida está sendo negado a essas crianças.
Já falei várias vezes que uma das formas de solucionar o problema seria obrigar o presidente, deputados, senadores, governadores, prefeitos, vereadores e juízes a pôr os seus filhos numa escola pública ou a levá-los para serem atendidos num hospital público. Logo essas áreas teriam uma prioridade maior. Disso eu tenho certeza absoluta.
A situação das crianças tende a se agravar com essa onda de globalização e neoliberalismo?
- Por causa da globalização em si, não. Mas do jeito que está sendo feita, no neoliberalismo, sim. Porque você pode globalizar tanto a solidariedade quanto a miséria. Você pode globalizar muita coisa boa, ajuda, fraternidade, valores humanos. O que é ruim, no neoliberalismo, é que ele globaliza uma ideologia, que é a do fortalecimento do mais forte e da exclusão da grande massa desprotegida.
É um processo injusto, que tende a aumentar a desigualdade entre ricos e pobres, que tende a aumentar a massa de excluídos. É a volta à barbárie. É a destruição da solidariedade, da idéia de comunidade e democracia. Não entram em consideração outros valores. Tudo é submetido ao valor do mercado. Tudo está à venda, depende do preço, até mesmo a vinda do papa ao Brasil, como noticiou a imprensa. Esse valor de mercado tende a excluir outros tipos de valores, tanto na vida pessoal como social.
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