Bemba e Karamojong

Com quantas tradições
se faz um casamento

Noivado e casamento segundo as tradições de dois povos africanos, os Bemba, de Zâmbia, e os Karamojong, de Uganda.


TUDO COMO
MANDA A TRADIÇÃO

JOSÉ GUEDES

Peggy, uma moça pequena, simples e pacata, traz sempre um sorriso nos lábios. E, o que é bem pouco comum entre os zambianos, sente-se à vontade para falar com a mãe e o pai sobre os próprios sonhos e receios.

Não pensava em se casar, porque tinha medo de ser maltratada como tantas outras. Foi o que ela disse muitas vezes para a mãe. Mas mudou de idéia, assim que encontrou o homem dos seus sonhos, chamado Félix.

Félix e Peggy querem fazer as coisas como devem ser, no respeito pela tradição. Com uma diferença: em outros tempos, os pais é que escolhiam a noiva ou o noivo para os filhos. Mas isso já é coisa do passado, conta Peggy.

Depois de alguns meses de namoro, Félix escolhe o senhor Chisanga para seu intermediário (shibukombe). É ele quem leva o insalamu (um pequeno presente em dinheiro) à casa dos pais de Peggy, pedindo a mão dela em casamento.


O insalamu, sem o qual não há casamento, deve ser levado à noitinha ou de madrugada. É importante encontrar todo mundo em casa, pois todos precisam dizer se aceitam ou não o presente.

A resposta definitiva, porém, só é dada daí a alguns dias, depois de uma reunião familiar em que se discutem as qualidades do rapaz e da sua família. Querem saber se ele é trabalhador, se é homem de respeito e se será capaz de manter a mulher e os filhos. Quando a conclusão é negativa, o insalamu é devolvido.

No caso de Félix não há dúvidas. O insalamu é recebido, e ele fica noivo de Peggy. Como noivos, devem mostrar respeito e temor para com os futuros sogros, evitando falar com eles. Os contatos necessários para o casamento têm de ser feitos através do intermediário, o shibukombe.


Uns meses antes do casamento, a mãe de Peggy decide preparar a cerimônia do ukulanga umulilo, que significa "mostrar o fogo". Para isso, escolhe a senhora Chishimba para nacimbusa mukalamba, ou seja, a educadora-chefe, que vai ser responsável por preparar a noiva para a vida de casada.

A nacimbusa, as suas ajudantes e um grupo de mulheres amigas ajudam então a mãe a preparar todo gênero de comida e bebida.

Em seguida, de potes à cabeça, com ar festivo, de tambor nas mãos e cantigas nos lábios, lá vão elas à casa do noivo. A mãe fica em casa, pois não deve ver nem falar com Félix, o futuro genro.

Félix encontra-se na casa da senhora Muleba, irmã dele, juntamente com familiares e amigos. Sentado, muito sério, como convém a um noivo de respeito, ele tem ao seu lado o seu intermediário.

O senhor Chisanga deve explicar tudo direitinho ao noivo, pois só sabe o que acontece quem já passou pela experiência. A moça e o rapaz solteiros não têm nada a saber do que se passa no casamento ou na preparação para ele.


Finalmente chega o grupo das mulheres. A senhora Chishimba entra de joelhos, cantando e dançando. Depois, quando todas já estão dentro de casa, com uma das suas ajudantes, ela pega uma bacia e coloca água quente dentro dela.

Lava as mãos e depois os pés do noivo, cantando o samba umulume, we cinangwa. Isso quer dizer: "Lava o teu marido, ó menina".

Terminado o ritual, deitam-se de lado no chão e batem palmas, em sinal de respeito, tal como se faz para um chefe.

Em seguida, uma a uma, as comidas são apresentadas ao noivo, enquanto todas cantam o mulangileni, que significa: "Mostrem-lhe".

Com isso, querem dizer ao noivo: "Você vai entrar em nossa casa, e esse é o tipo de comida que vai encontrar. Haverá dias, poucos, em que comerá galinha, mas haverá muitos outros em que não terá mais do que folha de mandioca. Mostrem-lhe, pois, o que nós comemos! Que não venha a se queixar depois".


Terminada essa parte, a festa continua por algum tempo. Os grupos das duas famílias cantam e dançam ao som das cantigas tradicionais de casamento. Cada uma dessas cantigas inclui uma pitada de sabedoria sobre o que faz um casamento ser duradouro e feliz.

Finalmente, a senhora Chishimba se despede, rindo e cantando, junto com as companheiras. Para trás ficam Félix, a família e os amigos dele, que agora já podem saborear a comida e a bebida que lhes foram trazidas.

A cerimônia tem por finalidade mostrar publicamente que os pais de Peggy aceitam Félix como genro e que estão dispostos a preparar o casamento.

A partir desse momento, como manda a tradição, Peggy começa a lavar a roupa de Félix e a lhe levar a comida todos os dias. O noivo, por sua vez, assume a responsabilidade de comprar para a noiva tudo o que ela precisa.



MUITAS VACAS
PARA CARLOS

ENCARNITA C. LIÉBANA

Os Karamojong são um povo ugandense de pastores nômades que vivem tradicionalmente do gado, com o gado e para o gado (veja matéria na edição de setembro).

Não poderia ser diferente no momento de pagar o dote aos pais e familiares da futura esposa. O gado volta a jogar um papel decisivo, e não são poucos os animais oferecidos: de cinqüenta a cem vacas, mais cabras e ovelhas.

Como é possível? Os Karamojong não são precisamente ricos...

Faz alguns meses, o casal Carlos e Maria me convidou para a cerimônia do seu casamento. Já vivem juntos há vários anos e têm um monte de filhos, mas não podem ser considerados casados perante o grupo enquanto não for realizado o casamento tradicional, que inclui o pagamento do dote.

Fiquei muito surpresa com o convite, pois um estranho nunca participa das festas tradicionais desse povo. Há doze anos vivo e trabalho em Uganda, e é a primeira vez que isso acontece.

Carlos me contou que daria 120 vacas à família de Maria.

"Nossa! É muita coisa", pensei. Não sabia que ele fosse tão rico.

"Não sou rico, mas consegui as vacas", ele me respondeu, sorrindo.


Chego ao povoado e encontro muita gente sentada do lado de fora da cabana dos pais de Carlos. Era a família da noiva. O noivo não estava ali, porque era proibido.

Sem entender muito o porquê dessa divisão, entro no recinto onde me disseram que estava Carlos. E fico surpresa ao vê-lo rodeado por um monte de gente, a maioria homens, cada um com suas vacas, cabras e ovelhas.

Seguindo um costume muito arraigado na África, começam as apresentações. Quase todos são familiares e amigos de Carlos.

As pessoas mais importantes são duas: o pai e o tio de Carlos. Os dois "anciãos" se aproximam dos animais e vão selecionando os que serão doados aos familiares de Maria, que se encontram fora do recinto. Só mais tarde entenderia os critérios de eleição.

É o próprio Carlos quem me conta que todos os que estão ali lhe trouxeram os animais. Já antes lhe tinham dito quantas vacas, cabras e ovelhas trariam para a sua festa de casamento.


Cada um diz então com orgulho quantos animais trouxe: "Aqui estão as minhas doze vacas. Me custou bastante sacrifício, mas Carlos merece..."

Chego perto do grupo de mulheres, que ocupa um lugar à parte. Elas são encarregadas de trazer os animais pequenos - ovelhas e cabras -, pois não possuem vacas.

O comentário é sempre o mesmo: Carlos é um moço muito bom, é um sobrinho exemplar, etc., etc. Por isso, tinham se esforçado para trazer o máximo de animais que podiam.

Então compreendi que as relações interpessoais e o caráter do noivo são de fundamental importância na obtenção dos animais para o dote.

Todos repetiam o que eu já sabia: Carlos é um homem bom, que sempre ajuda a família e os amigos em caso de necessidade. Além disso, tem um bom caráter. Não cria problemas e, quando os problemas aparecem, tenta resolvê-los com paciência e tato. Por isso é respeitado e estimado por todos.


Do lado de fora, a família da noiva espera, e nem todos recebem o mesmo número de animais. O pai da noiva se aproxima da porta que separa os dois grupos e grita, por exemplo: "Quatro vacas para a minha irmã mais velha".

Se a família do noivo atende ao pedido, é porque a tia da noiva é estimada pelas duas famílias. Outras pessoas não recebem mais que uma pequena cabra, por exemplo.

A cerimônia prossegue o dia todo. Ao entardecer, as duas famílias se reúnem para beber e concluir a celebração. Enquanto isso, outros levam os animais ao povoado da família da noiva, entre cânticos e danças.

É verdade que também há quem paga o dote com animais conseguidos em roubos e assaltos. Outros, embora ninguém goste deles nem os respeite, obtêm igualmente os animais dos seus familiares, porque o não-pagamento do dote é considerado uma maldição. São exceções. Num e noutro caso, porém, as pessoas não colaboram espontaneamente.

Fica claro que, entre os Karamojong, não é imprescindível ser rico e possuir muito gado para dar conta do dote devido à família da noiva. A idéia do dote não se baseia na riqueza material, e sim nos valores humanos.

Por isso, o dia do casamento é de muito orgulho e muita alegria para todos. A começar pelos próprios noivos e os seus familiares.