Índia

A revolução das latrinas

Gandhi os chamava "filhos de Deus", mas a realidade mostra que é como se fossem filhos de um Deus menor. Para os 600 mil párias que cuidam da limpeza pública, porém, algo começa a mudar.


José Kalapura

Por mais de vinte anos e toda santa manhã, a senhora Malati Devi, 46 anos, de Patna, na Índia oriental, carregou sobre a cabeça as fezes e urinas acumuladas durante a noite. Herdou esse trabalho desde que nasceu, por causa de sua posição social. Foi obrigada a viver como escrava no meio do lixo dos ricos apenas pelo fato de pertencer à classe dos "intocáveis" do hinduísmo.

Há mais de sete anos, porém, a vida de Malati mudou. Ela abandonou baldes e vassouras assim que foi contratada como responsável por uma rede de sanitários públicos administrados pela Sulabh Shauchalaya Sansthan (SSS), uma organização de voluntários que oferece esse tipo de serviço nas principais cidades do país.

Malati ganha 700 rúpias por mês, 400 a mais do que antes. Viúva, faz milagres com o salário, conseguindo pagar a escola para seus três filhos, o que não deixa de ser um verdadeiro luxo para os empobrecidos da sociedade indiana. Acontece que Malati é hoje uma "faxineira libertada".


Espírito de Gandhi

Os banghi, como são chamados na Índia, constituem uma faixa da população condenada desde o nascimento a cuidar dos serviços mais repugnantes da sociedade. Somam cerca de 600 mil, e sua principal tarefa é cuidar da limpeza de estradas e latrinas.

Marginalizados do ponto de vista social, econômico e religioso, levam a vida mais miserável possível. O serviço de limpeza - que inclui a tarefa de esvaziar latrinas e transportar as fezes e urinas sobre a cabeça - foi imposto a essa gente na noite dos tempos. Faz parte de seu dharma, ou obrigação religiosa, segundo se acredita.

Como Malati, mais de 30 mil faxineiros de 22 estados indianos, mulheres e homens, foram libertados de sua condição indigna, graças à iniciativa da SSS. A organização administra aproximadamente 2 mil banheiros públicos em mais de seiscentas cidades do país, freqüentados diariamente por nada menos que 6 milhões de usuários.

O sistema utilizado pela Sulabh custa pouco e foi idealizado em 1970 pelo sociólogo Bindeshwar Pathak. "Apenas introduzimos um jato d'água e descarga nos vasos sanitários", conta Pathak. "Uma inovação simples, mas que melhorou muito o trabalho de quem faz a limpeza."

A idéia foi concebida por ocasião do centenário de nascimento do Mahatma Gandhi, pai da nação indiana (veja quadro). "Resolvi aceitar o desafio que ele lançou durante sua vida: a promoção social dos 'intocáveis'."

Segundo conta, ele percebeu "que os pobres queriam resultados concretos, em vez de sermões sobre os ideais de Gandhi".


Criar alternativas

"O projeto não tem nada de muito especial", diz um engenheiro e técnico da SSS. "A novidade é o sucesso alcançado. Através dessa iniciativa, milhares de párias executam hoje um trabalho mais decente."

Com os banheiros da SSS, melhoraram também as condições de higiene para milhões de trabalhadores que deles se utilizam diariamente. Pagam alguns centavos, mas vale a pena.

Em oito anos de atividades, a organização modernizou nada menos que 10 mil banheiros em toda a Índia, dotando-lhes de água corrente. Em Nova Délhi, a capital, foram abertos 130 novos banheiros públicos, que são freqüentados diariamente por mais de 360 mil pessoas. A iniciativa contribuiu para a criação de mais de 30 mil novos empregos.

Os projetos da SSS não prevêem apenas a construção e administração de sanitários públicos. São levados adiante também, entre outras atividades, cursos de mecânica, carpintaria, eletrônica, corte e costura e outros.

Em geral, quem freqüenta um desses cursos sai em condições de trabalhar em algum projeto da organização ou de levar adiante o seu próprio negócio. Quase 5 mil párias conseguiram se firmar no mundo do trabalho desse modo.

"Os programas da Sulabh levaram a opinião pública e o próprio governo a tomar consciência das condições desumanas de trabalho a que eram submetidos os garis", explica Pathak, que em 1991 foi condecorado com o Padma Bhushan, uma menção honrosa por serviços prestados à nação.

O governo, denuncia Pathak, tenta desestimular os párias de continuar na profissão tradicional de garis, mas não toma iniciativas no sentido de criar alternativas de trabalho para toda essa gente. É o que faz a SSS: oferece trabalho, contribuindo desse modo para a inserção social e a promoção humana dos mais pobres da sociedade indiana.

"O nosso projeto é semente de transformação social. Muitas mudanças vão acontecendo automaticamente, com o tempo. Nossa associação quer atuar diretamente nessa transformação."


Quebrando tabus

Uma vez ou outra, o movimento foi mais longe, promovendo manifestações públicas em defesa da dignidade dos párias. Foi assim, por exemplo, quando Pathak certa vez liderou a marcha de um grupo de "intocáveis" ao templo de Nathawara, em Rajasthan, cerca de 700 quilômetros a sudoeste de Nova Délhi, onde eram proibidos de entrar.

As novidades não param por aí. Desafiando os tabus tradicionais da sociedade indiana, todo dia por volta das 10 da manhã, antes de iniciar o trabalho no complexo de banheiros da vila de Palam, a sudoeste de Nova Délhi, uma centena de trabalhadores de diversas castas se reúne para rezar e cantar.

"Brâmanes ou intocáveis, somos todos irmãos", é o refrão que se ouve. E parece de verdade que a cada dia que passa uma revolução social esteja tomando corpo por aqui.

Desde 1980, o ministério para Assuntos Sociais do governo indiano começou a se interessar pela questão dos párias garis e também a valorizar o trabalho desenvolvido pela SSS.

Além disso, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) passou a incentivar o uso do modelo e dos equipamentos desenvolvidos pela associação em várias partes do mundo, sobretudo na Ásia. Um desses equipamentos extrai gás e eletricidade das fezes humanas.

Em 1992, Bindeshwar Pathak recebeu o famoso Prêmio Internacional São Francisco de Assis, e seu trabalho foi elogiado pelo papa João Paulo II.


Um começo apenas

Pathak não costuma falar muito sobre seu engajamento em favor dos "intocáveis". Embora consciente de que a associação não irá resolver sozinha o problema de todos os 600 mil garis da Índia, está satisfeito. Pelo menos indicou um caminho a seguir.

Mas será que os párias conseguem de fato subir na vida, uma vez resgatados da situação desumana em que se encontram?

"O trabalho está apenas começando", considera Pathak. Algum tipo de melhoria acontece, com certeza. Além disso, em sua opinião, a promoção de contatos e de diálogo entre pessoas de várias castas contribui para uma quebra da idéia de hierarquia social.

Nesse sentido, a SSS leva a cabo também uma espécie de programa de adoção: uma família de párias para cada funcionário público, político ou dirigente. "O objetivo é favorecer relações sociais entre os estratos altos e baixos da sociedade."

O programa prevê a realização de visitas recíprocas e um compromisso de assistência nos campos da educação e do trabalho.

Uma outra iniciativa foi a criação de uma escola particular em língua inglesa para os filhos dos párias. O objetivo, neste caso, é combater a idéia de que os "intocáveis" não reúnem condições de receber uma instrução adequada.

Na avaliação de Pathak, "eles conseguem aprender em pé de igualdade com os outros, e até competir com estudantes das castas superiores". Isso ajuda a vencer a falta de estima que os párias sentem por si mesmos.

"Nesses anos todos, a Sulabh atuou sobretudo nos campos do trabalho e da educação, e tem feito isso com competência", afirma Gyan Chand, um empresário simpatizante da associação. Ele lembra, porém, os problemas enfrentados por Pathak e seus colaboradores.

Pathak, com efeito, foi acusado muitas vezes de tirar proveito do projeto. No entanto, ele se defende: "As críticas fazem parte do trabalho. Visto que sou um brâmane, muitos me acusam de tratar os párias com paternalismo. Mas não é culpa minha se nasci brâmane".

Com determinação, Malati intervém na conversa: "Sempre fomos considerados as fezes da sociedade. Não quero que meus filhos cresçam carregando essa pesada herança sobre os ombros". - "POPOLI"


O País

Nome oficial: República da Índia
Capital: Nova Délhi
Nacionalidade: indiana
Idiomas: indi, inglês e línguas regionais
População: 953 milhões (1996)
Área: 3.287.782 quilômetros quadrados
Religião: hinduísmo, 83%; islamismo, 11%; 
          cristianismo, 2,4% e outras.

História - Segundo país mais populoso do mundo (depois da China), a Índia conquistou sua independência do domínio britânico em 1947. No processo, os líderes muçulmanos indianos decidem formar um Estado independente, o Paquistão. A partilha, baseada em critérios religiosos, provoca o deslocamento de mais de 12 milhões de pessoas.

Em dezembro de 1971, depois de mais uma das muitas guerras entre as duas nações, com a derrota do Paquistão, é fundado um novo país, o Bangladesh, no antigo Paquistão Oriental.

Na década de 80, irrompem conflitos étnicos em todo o país. Os sikhs (cerca de 2% da população), grupo étnico cuja religião mistura o hinduísmo e o islamismo, lutam pela independência do Punjab, um dos mais ricos estados indianos. Em 1984, assassinam a primeira-ministra Indira Gandhi, que um mês antes tinha ordenado a invasão do Templo Dourado de Amritsar, o principal santuário sikh.

Cresce também o fundamentalismo hindu, capitaneado pelo partido Bharatiya Janata, responsável, nos últimos anos, por sangrentos conflitos entre hinduístas e muçulmanos e por desentendimentos e ataques contra os cristãos.


FONTE: ALMANAQUE ABRIL



Grande Alma


Mohandas Karamchand Gandhi, nascido em 1869 - o pai da nação indiana -, é mundialmente conhecido pelo título de Mahatma, que significa "grande alma".

Advogado formado em Londres em 1891, volta à Índia para praticar a profissão. Dois anos depois, vai para a África do Sul, na época colônia britânica como a Índia. Ali inicia um movimento pacifista em defesa dos direitos de seus compatriotas que vivem no país.

Em 1914, está de novo na Índia, difundindo seu movimento de resistência pacífica. Nega a colaboração com o regime britânico e prega a não-violência como forma de luta.

Em 1922, é detido e condenado a seis anos de prisão por liderar uma greve contra o aumento de impostos. Libertado dois anos depois, reforça o movimento de desobediência civil, promovendo o boicote aos produtos ingleses e a recusa ao pagamento de impostos.

Em 1930, lidera a famosa marcha para o mar. Uma multidão de indianos anda mais de trezentos quilômetros a pé para protestar contra os impostos sobre o sal.

Quando foi proclamada a independência da Índia, em 1947, Gandhi tenta sem sucesso evitar a luta entre hinduístas e muçulmanos, que acabou gerando a criação do Paquistão. Tendo depois aceitado a divisão do país, atrai o ódio dos nacionalistas e é assassinado no ano seguinte.

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Quem são os "intocáveis"


Pelas leis indianas, desde 1950, o sistema de castas é coisa do passado. Mas na realidade não é assim. Há muito o que fazer para mudar uma mentalidade religiosa com mais de 4 mil anos de existência.

Considerado a mais antiga das religiões vivas - "sem começo nem idade" -, o hinduísmo, em sua forma original, reserva a cada pessoa ou grupo de pessoas um lugar e tarefas específicas na sociedade.

Esse tipo de organização social foi estabelecido por Deus, defendem os brâmanes, a casta dos sacerdotes que, segundo a crença, teria tido sua origem da boca da divindade.

Abaixo dos brâmanes encontra-se a casta dos dirigentes. Depois vêm a dos agricultores e comerciantes e a dos artesãos.

Os chamados "intocáveis", ou párias, estão fora das castas e constituem o mais numeroso, pobre e marginalizado grupo social do país. Sua única consolação é a de, eventualmente, poderem renascer dentro de alguma casta, numa segunda ou terceira existência. Enquanto isso não acontece, por obrigação religiosa, devem servir às castas superiores.

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