Roma locuta,
causa finita?

Os temores de um teólogo brasileiro frente à grande assembléia de bispos do continente em Roma, neste e no próximo mês.

 José Oscar Beozzo De 16 de novembro a 12 de dezembro, cerca de trezentos delegados - bispos, cardeais, religiosos, religiosas, sacerdotes e uns poucos leigos do continente americano - participam em Roma do Sínodo para a América, com o tema: "Encontro com Jesus Cristo vivo, caminho para a conversão, a comunhão e a solidariedade na América".

A idéia veio do papa João Paulo II. Num discurso durante a Quarta Conferência dos bispos católicos latino-americanos em Santo Domingo, em 1992, ele manifestou o desejo de realizar um grande encontro com os bispos do continente antes do ano 2000.

Muita coisa rolou de lá para cá. Lançado em outubro do ano passado, o documento preliminar da Secretaria do Sínodo, em Roma, foi alvo de duras críticas, principalmente por parte de teólogos latino-americanos. O primeiro a apontar os vazios e limites dos Lineamenta foi o sacerdote e teólogo brasileiro José Oscar Beozzo, 56 anos, coordenador do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep) de São Paulo.

Beozzo teme que o sínodo se transforme apenas num encontro em que Roma divulga suas orientações para os bispos, em vez de uma assembléia em que o episcopado manifesta livremente o seu pensamento.

Um esforço de centralização na Igreja católica, que retira o espaço de decisão das conferências episcopais do continente? Roma locuta, causa finita? (Roma falou, e o assunto está encerrado?)

Em entrevista a SEM FRONTEIRAS, tendo em mãos o Documento de Trabalho que servirá de base para a reflexão e o debate durante o sínodo, Beozzo retoma as críticas. Ele diz por que acha que o evento tende a ser muito diferente das conferências dos bispos latino-americanos em Medellín e Puebla, que representaram momentos decisivos no esforço de colocar a Igreja em dia com as grandes questões do continente.


SEM FRONTEIRAS - Para que serve um sínodo?

Oscar Beozzo - Trata-se de uma prática bastante comum na Igreja, em determinadas épocas. Um sínodo reunia representantes de dioceses de um mesmo país ou de uma região, conforme as necessidades.

Essa prática, que caiu em desuso com o tempo, foi retomada pelo Concílio Vaticano II, com um grande sonho: fazer a passagem de um modo centralizado de exercício do poder na Igreja para outro, mais participativo.

Paulo VI queria que as grandes decisões da Igreja não fossem tomadas exclusivamente pelo papa, e sim em conjunto com bispos de todo o mundo. É um assunto espinhoso esse da reforma da Cúria Romana e do exercício do poder pelo papa.


E esse sonho se realizou?

- Na verdade, até o momento, o sínodo ficou aquém do que se queria inicialmente. Nos últimos tempos, a Cúria Romana - composta basicamente de burocratas, gente de gabinetes - ganhou mais força enquanto órgão permanente de governo.

A idéia era que o sínodo fosse um órgão deliberativo, isto é, que o papa e os bispos decidissem juntos por onde a Igreja deve caminhar. Não é assim, pois o sínodo tem apenas caráter consultivo. Desse modo, ele perde um pouco essa força de instaurar um novo tipo de exercício do poder na Igreja.


O Sínodo para a América traz algo de novo?

- Sim. A perspectiva é diferente, pois ele se enquadra no contexto dos sínodos regionais em preparação ao terceiro milênio. É uma região do mundo que se debruça sobre os seus problemas e busca possíveis soluções. A mesma coisa já aconteceu para a África, em 1994, e vai acontecer para a Oceania, Ásia e Europa, sempre em Roma, até o ano 2000. Representa, assim, uma ocasião para a Igreja fazer uma espécie de exame de consciência sobre o seu papel na história do continente.


Muitos disseram que seria melhor falar de "Sínodo para as Américas", e não de "Sínodo para a América", no singular. Isso faz alguma diferença?

- Claro que sim. Não é justo dizer simplesmente que somos um continente, como a Europa e a África, por exemplo. Temos algo de diferente dentro do mesmo continente, que é uma contradição profunda entre Norte e Sul. De um lado está a ponta avançada do capitalismo (Estados Unidos e Canadá) e, do outro, alguns dos países mais pobres do mundo, como o Haiti e o Paraguai.

Falar de América, no singular, leva a supor que não existe essa contradição gritante, ou que não é tão evidente. Já quando se fala em Américas, no plural, aumentam as chances de se fazer um diálogo sério entre os países mais ricos e os mais pobres do continente. Os conflitos históricos e a dominação vêm mais facilmente à tona.


Isso pode influenciar negativamente os resultados do sínodo?

- Vai depender muito de como a assembléia trabalha. Os bispos terão que fazer uma análise séria da realidade, ressaltando as tensões entre dominantes e dominados. Isso aconteceu, por exemplo, com o documento de preparação à conferência dos bispos latino-americanos em Medellín (1968): houve uma denúncia do neocolonialismo e da responsabilidade dos Estados Unidos por parte dos problemas da América Latina.

Nada dessa análise mais realista dos conflitos no continente apareceu no documento de preparação a esse sínodo, os Lineamenta. A impressão é que se queria jogar debaixo do tapete questões dessa natureza. Como é possível fazer uma assembléia desse tipo sem afrontar questões econômicas e culturais?


Havia outras questões que corriam o risco de ficar debaixo do tapete?

- Os Lineamenta não citavam uma única vez os documentos das conferências episcopais latino-americanas, nem falavam das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da Libertação. Pode-se discordar da Teologia da Libertação, mas não se pode ignorar o fato de que, nos últimos trinta anos, emergiu uma reflexão teológica latino-americana. Essa reflexão incomodou tanto que mereceu dois documentos da Igreja, para o mundo inteiro. O Vaticano não pode negar que a Teologia da Libertação desempenha um papel importante para a vida da Igreja.

Por outro lado, nos Lineamenta só se falava de cultura moderna, em geral. Não havia nada sobre culturas indígenas e afro, por exemplo.


O Documento de Trabalho, elaborado depois, trouxe mudanças?

- Sim, porque muitas conferências episcopais bateram duro e criticaram o documento inicial. O Documento de Trabalho incorpora algumas dessas críticas. Por exemplo, reconhece a importância das conferências dos bispos, que são vistas como "unidades de comunhão". Fala das CEBs e não dá nenhuma paulada na Teologia da Libertação.

Fiquei até surpreso com esse salto de qualidade. Negros e indígenas chegaram a ganhar um capítulo inteiro. Colocaram também o problema da justiça e das relações econômicas internacionais entre as nações das Américas, levando em conta as enormes desigualdades existentes.


Até onde os cristãos do continente puderam participar da preparação ao sínodo?

- O sínodo teve poucos meses de preparação, ao contrário do que aconteceu com as conferências de Medellín, Puebla e, em parte, Santo Domingo. Na época, houve encontros nas dioceses, envolvendo comunidades, grupos e movimentos, camponeses e indígenas.

O sínodo chegou na contramão, pois todas as atenções estavam voltadas para as iniciativas em torno do terceiro milênio. Além disso, o documento de preparação enviado às dioceses era fraco e ruim. No caso do Brasil, a participação foi muito pouca. Das 255 dioceses, apenas dezesseis responderam ao questionário que veio de Roma. Uma porcentagem extremamente baixa.


O mesmo se pode dizer dos outros países?

- A Secretaria do Sínodo informou que, das 24 conferências episcopais do continente, apenas uma não respondeu ao questionário. Alega ser a maior porcentagem de respostas da história recente dos sínodos. Porém, se a gente vai atrás, percebe que esse sínodo, em termos de participação, perde de longe para as conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo.


Isso não se deve também um pouco ao fato de o sínodo se realizar em Roma, e não no continente?

- Sem dúvida, e isso me preocupa muito. Até então, nós da América Latina fomos os únicos a seguir a intuição de sínodo deliberativo - e não apenas consultivo -, de acordo com a proposta vinda do Concílio Vaticano II. Em nossas assembléias episcopais, fizemos os documentos e ficamos com a última palavra. Não foram documentos romanos. Nesse sentido, esse sínodo representa um perigo.


Como assim?

- O meu medo é que se queira matar a tradição latino-americana, que vai contra uma tradição de Igreja mais centralizadora e conservadora. Essa prática de deliberação só existe na América Latina. Nenhuma outra Igreja pôde fazer isso, nem na África nem na Europa.

Se o sínodo funcionar como substitutivo para as conferências episcopais, será uma perda imensa para a América Latina e para toda a Igreja. Infelizmente, os fatos dão motivos de sobra para acreditar nisso: o documento de preparação, como já citei, foi muito autoritário e excluiu a América Latina. Essa mesma tendência de exclusão está presente, de certo modo, também nas nomeações para a direção do sínodo.


De que forma?

- Desde a conferência de Santo Domingo, em 1992, assistimos a um certo desvio de rota na hora de se escolher a presidência da assembléia. Para este sínodo, acho que o desvio de rota foi total. Jogaram a Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam) para escanteio, não escolhendo o seu presidente para a direção do sínodo.

Do Brasil, o escolhido foi o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Eugênio Sales, e não o presidente da CNBB. Com isso, Roma também joga para escanteio a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Em geral foi escolhido para a direção quem está em Roma, e não quem trabalha no continente. Não se sabe ao certo que critério foram adotados.


Que falhas você identifica no Documento de Trabalho?

- Faltam coisas clamorosas, como a questão da luta pela terra. Como é possível falar dos problemas sociais da América Latina deixando escapar um problema tão crucial? Outra questão negligenciada é a da participação da mulher na vida da Igreja. Falta tratar a questão feminina de forma mais positiva.


O que se pode esperar de concreto do sínodo?

- Ainda que sem uma participação intensa das bases, tudo vai depender de como os bispos trabalham em Roma. Eles podem levar teólogos e especialistas dos seus países para ajudá-los na reflexão e no debate. Se sair um documento final fraco, vai ser uma perda para a Igreja e para a caminhada do povo. Seria bom que desse sínodo resultasse uma maneira mais permanente de diálogo entre Norte e Sul do continente.


Que sugestões você daria aos bispos que participam?

- Espero que façam uma reflexão séria em cima das questões fundamentais para a libertação dos empobrecidos, sobre a exclusão, a corrida armamentista. Deveriam ter um punho mais forte para exigir o cancelamento da dívida externa, a demarcação das terras indígenas, etc.

No que se refere à vida interna da Igreja, é preciso democratizar as estruturas e rever a participação da mulher, permitindo a ela o acesso ao ministério ordenado. Se as mulheres reivindicam isso, é porque falta uma profunda consciência e prática de igualdade dentro da Igreja.

O apóstolo Paulo dizia que, na Igreja, não há mais judeus e gregos, escravos e homens livres, homem e mulher. Temos que saber tirar as conseqüências dessa novidade do cristianismo.