Teologia índia

Deus já morava
aqui antes

Pensar e vivenciar a fé cristã no contexto da cultura e experiência religiosa dos povos indígenas. Temores e simpatias.


Atento a tudo o que julga representar algum tipo de risco para a fé católica, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, usou a temível expressão "desvios doutrinais", no ano passado, no México, ao se referir à teologia índia da América Latina.

Foi em Guadalajara, no mês de maio, ao final de um encontro que reuniu um grupo de bispos responsáveis pelas comissões episcopais para a Doutrina da Fé no continente. "Aqui se falou de um novo modo de manipular os povos indígenas e as suas culturas", afirmou o cardeal, em entrevista à imprensa.

Segundo Ratzinger, existem "antropólogos, pseudo-teólogos e outros personagens", entre os indigenistas, que "querem preservar os índios como se fossem peças de museu e objetos de folclore, para atrair turistas".

O cardeal aponta o dedo na direção de teólogos que, em sua visão, querem ressuscitar ritos, crenças e religiões dos indígenas dos tempos anteriores à chegada dos espanhóis e portugueses ao continente, "como se o Evangelho tivesse sido um instrumento de opressão", e não de "salvação do homem".


"Medo e conservadorismo" – O homem forte do Vaticano sabe que não é o único a alimentar dúvidas e preocupações. Sobre a teologia índia – como, de resto, sobre teologia da libertação, comunidades eclesiais de base e outros temas da linha de frente da pastoral no continente –, os próprios bispos latino-americanos estão longe de ter chegado a algum acordo.

Há os que a condenam expressamente. O bispo Javier Lozano Barragan, da diocese mexicana de Zacatecas, acha que a teologia índia não dispõe de uma sólida base filosófica e científica, capaz de fazê-la merecedora do título de teologia cristã. Pior ainda, ela seria "uma nova forma de reflexão teológica fundada sobre a ideologia marxista".

Outros distinguem. O bispo-auxiliar de Bogotá, Octavio Ruiz Arenas, diz que existe uma "teologia índia cristã" e uma "teologia índia índia". A primeira "pensa o conteúdo da fé cristã a partir da cultura das populações indígenas", enquanto a segunda "não faz qualquer referência à revelação cristã".

Mas há os que vêem a coisa com otimismo. "A teologia índia não será uma porta que Deus está abrindo para a grande evangelização do próprio coração da América Latina?", interroga o bispo Gerardo Flores, da diocese de Vera Paz, na Guatemala.

O verdadeiro perigo, disse o bispo guatemalteco, é o "medo frente àquilo que não se conhece", e também "um conservadorismo fechado da parte de alguns pastores". Incapazes de acolher o "sopro do Espírito" presente na teologia índia, "procuram frear, com os mesmos critérios de quinhentos anos atrás, todo esse movimento, pondo-lhe a etiqueta de diabólico e perverso".


"Vencidos e vencedores" – "Não somos pagãos ou idólatras." O padre católico e indígena mexicano Eleazar López Hernández (veja entrevista) condena um tipo de pensamento cristão que, do alto de sua arrogância, não reconhece aos povos indígenas o valor e a dignidade de sua experiência religiosa antiga e atual.

"Cremos em Deus, no único e verdadeiro Deus que existe", ele afirma. "O Deus que nossos pais chamaram de Totatzin-Tonantzin, Coração do Céu e da Terra, Wiracocha, Paba-Nana, Ankoré: Pai e Mãe de todos os povos e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo."

Eleazar é diretor do Cenami, um dos principais centros de estudo de teologia índia da América Latina, sediado no México. Ele considera o tema particularmente cativante para aqueles que, como é seu caso, "têm a desventura de estarem situados sobre a linha que divide os 'vencidos' dos 'vencedores'".

É possível "beber das duas fontes"? Eleazar não tem dúvida: "Amamos a nossa Igreja, porque é portadora de 'vida em abundância' para todos, mas amamos do mesmo modo os nossos povos, porque são a matriz de nossa identidade original".

Converter-se ao cristianismo, ele lembra, não significa ter que renunciar à própria identidade cultural e religiosa. A Igreja defende isso, quando ensina que o Evangelho não chega para destruir, e sim para "levar à plenitude" o que existe de bom e autêntico em cada povo.


Raízes sólidas – O primeiro a utilizar o termo "teologia índia", no sentido em que esta é hoje entendida, foi o sacerdote indígena guatemalteco Tomás García, no início dos anos 70. "Teologia índia", produzida por sacerdotes e comunidades cristãs herdeiros dos povos originários do continente, e não "teologia indígena", produzida por outros "para os índios".

Daí em diante, o termo se difundiu por toda a América Latina, significando o esforço de colocar a fé e os ensinamentos cristãos em dia com a cultura e os valores religiosos dos povos indígenas. Os principais representantes dessa corrente teológica são sacerdotes católicos indígenas.

Buscam inspiração em documentos do Concílio Vaticano II e das conferências do episcopado latino-americano em Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992).

Contam com energias liberadas pela luta do movimento indígena em favor do resgate de sua dignidade e identidade, sobretudo nos últimos anos.

Têm o respaldo de conferências episcopais de países como Guatemala, Panamá, Brasil, Equador e Colômbia, de dioceses onde a presença indígena é majoritária (como San Cristóbal de Las Casas, em Chiapas, no México), de ordens religiosas e de instituições eclesiais como o Cimi (no Brasil), o Cenami (no México) e o Conapi (na Guatemala e no Panamá).

Atraem a simpatia de outros teólogos, como o chileno Pablo Richard, um dos notáveis da teologia da libertação. "A questão é como viver o Evangelho na cultura e na tradição indígena", ele diz. "Por exemplo, os índios nos ensinaram a atribuir maior importância à natureza. É interessante o fato de que, para eles, Deus é Pai e Mãe ao mesmo tempo."


"Profundamente religiosos" – Trata-se, segundo Pablo Richard, de "um diálogo": a bíblia é assumida pelas comunidades cristãs indígenas no contexto da cosmovisão, das tradições e categorias próprias desses povos. "Esse diálogo já é hoje uma prática constante em muitos lugares da América Latina, mas devemos ainda esperar bastante tempo para que produza todos os seus frutos."

O novo desafio que se levanta é o de "como inculturar o anúncio do Evangelho" tendo em conta a "experiência religiosa dos povos indígenas", manifestou o bispo de Riobamba, Equador, Víctor Corral, após um encontro que o Conselho Episcopal Latino-Americano promoveu em Bogotá, Colômbia, no mês de abril, para tratar do assunto.

O cerne da teologia índia, segundo ele, é precisamente a presença de Deus. "A teologia índia é, antes de tudo, uma vivência de Deus. Essa vivência constitui o espaço da reflexão teológica, porque os indígenas são profundamente religiosos e contemplativos."

Enquanto reflexão e sistematização da vivência indígena de Deus e dos resultados de encontros sobre o tema, a teologia índia pode ser considerada coisa recente, acredita o sucessor de Proaño, o "bispo dos índios", já falecido. "Porém, se por teologia entendemos a experiência de Deus sobre a qual se constrói a reflexão, então a teologia índia vem de muito longe, e é algo mais antigo do que o próprio saber cristão."

De onde vêm as dificuldades e o medo dos "desvios doutrinais"? "Vêm sobretudo de nós, os agentes evangelizadores, e são preconceitos, temores e medos sem fundamento", responde Corral.

Segundo ele, não é verdade que a teologia índia, cristã, queira ressuscitar as religiões naturais indígenas. "Esse é o mais grave preconceito, que deve ser combatido com toda força." – Com informações de G. Ferró/"Jesus"


Voz profética

Entrevista: Eleazar López

O que é teologia índia?
Eleazar López – A teologia não é propriedade particular de ninguém. Todos os grupos humanos que fazem experiência de Deus produzem teologia. É o caso dos povos originários do chamado Novo Mundo, que por milênios estiveram em comunhão constante com o Criador. Mas sua voz teológica não obtinha reconhecimento por parte da Igreja. Nós, os povos indígenas, somos profundamente religiosos, porque entendemos a existência numa relação de harmonia com a natureza e de vinculação radical com a divindade.

Qual a diferença entre a teologia índia e a teologia tradicional do Ocidente?
– No Ocidente, a razão sempre esteve acima das outras faculdades humanas. Por isso, também na teologia se pretendeu explicar "cientificamente" a fé, como se a ciência teológica tivesse mais a ver com elucubrações abstratas que com a experiência viva de Deus. A teologia índia não é assim. Ela não tenta explicar Deus de forma racional. Ela tem a ver com a sabedoria religiosa dos povos originários da América, com a qual esses povos enfrentavam e continuam a enfrentar os problemas da vida. Mais do que "falar de Deus", os povos indígenas, como os pobres em geral, "falam com Deus". Eles partem do reconhecimento de que não é possível enclausurar o ser e o agir divinos numa lógica humana. Não lhes interessa convencer ninguém da racionalidade do mistério de Deus. Fazem a experiência de Deus e a comunicam a seu modo, que fundamentalmente é o modo mítico-simbólico herdado dos antepassados.

Sabedoria popular indígena, porém, não é ainda o que se entende normalmente por teologia...
– Não, mas é a base. A teologia índia não é coisa de livros, mas de vida. É uma teologia de resistência e de diálogo intercultural e inter-religioso. É a voz profética e propositiva dos "mais pobres entre os pobres", daqueles que não aceitam se submeter ao destino de morte cultural e de aniquilamento que os centros de poder querem nos impor.

A teologia índia desperta simpatia, mas também oposição...
– Sim, há setores da Igreja e da sociedade que não entendem a voz indígena ou que manifestam sérias reservas quanto ao que pode acontecer se essa voz é ouvida. São pessoas que querem frear o caminho da teologia índia. Distorcem as características dessa teologia. Identificam-na com uma forma de teologia da libertação mascarada. Confundem-na com um retorno, de tipo arqueológico, ao mundo pré-hispânico. Partindo de uma tal caricatura, essas pessoas não enfrentam a realidade da nossa gente, e sim os fantasmas criados por seus próprios medos.

Acusam a teologia índia de "desvios teológicos"...
– Infelizmente, os que mais têm falado contra a teologia índia são os que menos a conhecem. Por isso, mais facilmente caem em preconceitos etnocêntricos que não têm nada a ver com a fidelidade ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Igreja hoje é chamada a ser o xochitlalpan, o jardim florido onde possamos cultivar as flores de todos os povos do mundo. A monocultura ocidental deve, pois, dar espaço a uma pluricultura universal. Este é o sonho e a grande utopia dos povos indígenas. E também dos teólogos que nos colocamos a serviço desses povos, a partir do Evangelho de Nosso Senhor.