Caminhos trilhados pelas pastorais sociais da Igreja católica no ano que passou. Parceria com outras forças que também querem um Brasil diferente.
É no mínimo uma viagem por semana e são mil ou mais quilômetros em média, de carro, ônibus ou avião. Nesse ritmo, o gaúcho Luiz Bassegio tenta dar conta de uma tarefa exigente: acompanhar um sem-número de iniciativas das chamadas pastorais sociais da Igreja católica pelos quatro cantos do Brasil.
A lista das pastorais: da terra, da criança, do menor, da mulher marginalizada, da saúde, dos migrantes, dos nômades, dos pescadores, operária e carcerária. É trabalho e é movimento de não acabar mais. SEM FRONTEIRAS, Bassegio faz um balanço da atuação da Igreja em 97. A ótica é a das pastorais sociais, a linha avançada da militância social e política católica no país.
Bassegio, porém, não se queixa de cansaço. Ele contempla com alegria o surgimento de muito trabalho em comum entre pastorais, movimentos populares e sindicatos. Uma Igreja aberta. Uma rede de solidariedade que une cada vez mais gente acostumada a sonhar e a lutar por dias melhores.
Exemplos dessa parceria, ele tem na ponta da língua. Lembra dois, de nível nacional, que mobilizaram multidões: a Marcha dos Sem-terra a Brasília, nos meses de fevereiro a abril de 97, e o Grito dos Excluídos, em setembro.
O que é melhor nesse trabalho em conjunto, segundo o sacerdote carlista, é que não se vê ninguém reivindicando ser o pai da criança. Ele afirma, sobre o Grito dos Excluídos: "Queremos que seja de todos, e não apenas da Igreja católica. Ninguém está brigando para ter a marca registrada dessa ou daquela manifestação".
Além de secretário-executivo da Pastoral dos Migrantes, Bassegio, há cinco anos, é também um dos coordenadores do Setor Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O mandato se estende até 1999, quando estará cruzando fronteiras para ajudar a organizar o Grito dos Excluídos em nível de América Latina e Caribe.
Na entrevista a
Como foi a atuação da Igreja católica ao longo de 97, tendo em vista os grandes problemas nacionais?
Luiz Bassegio – Não dá para falar do que a Igreja fez no ano passado sem se referir ao Projeto Rumo ao Novo Milênio. Esse projeto, além de dar mais unidade ao trabalho da Igreja no Brasil, a tem levado a rever o modo de estar junto com o povo e a buscar parceria com outros segmentos da sociedade que também querem melhorar o país.
De modo especial, a Igreja marcou presença através da Campanha da Fraternidade, que suscitou um amplo debate sobre uma das principais chagas do país: o sistema penitenciário. A campanha penetrou fundo na sociedade, com boa repercussão na mídia. Foi um ponto alto, talvez uma das melhores campanhas dos últimos anos.
Que outras iniciativas poderiam ser lembradas?
– Sem dúvida nenhuma, a terceira edição do Grito dos Excluídos. Houve um salto de qualidade: a parceria foi ampliada. O primeiro Grito dos Excluídos, em 95, foi puxado praticamente pelas pastorais sociais. Em 97, contamos com a participação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Movimentos Populares (CMP) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Esse salto de qualidade se traduz em números: passamos de trezentas cidades que aderiram à iniciativa, no primeiro ano, para mais de mil, no ano passado. Antes, tínhamos cada sindicato, movimento popular ou pastoral social fazendo sozinho sua mobilização. Hoje, muita coisa é feita em comum. Inclusive, há três anos, as pastorais sociais, a CUT, a CMP e o MST têm um calendário comum de eventos.
Isso não gera ciúmes?
– Não. Ninguém reivindica ser o pai da criança. Na organização do Grito, isso ficou muito claro. É nosso, é de todo mundo. Queremos que o Grito seja de todos, e não apenas da Igreja católica. Ninguém está brigando para ter a marca registrada dessa ou daquela manifestação.
Essas iniciativas ajudam a Igreja a se preparar de forma mais concreta e realista para o novo milênio, você não acha?
– Exatamente. Além da Campanha da Fraternidade e do Grito dos Excluídos, temos também a Terceira Semana Social Brasileira, que começou em 96 e vai até 99, tendo como tema o resgate das dívidas sociais. A idéia é dar à celebração do jubileu uma dimensão mais social. É preciso celebrar o jubileu de forma comprometida com as lutas do povo. É preciso resgatar essas dívidas.
Que dívidas são essas?
– A bíblia, no livro do Levítico, diz que a cada cinqüenta anos era para o povo celebrar a libertação dos escravos e o perdão das dívidas contraídas. É disso que o Brasil precisa: resgatar as dívidas sociais e econômicas. São dívidas contraídas ao longo dos quinhentos anos de história oficial do país e agravadas com a atual política neoliberal do governo Fernando Henrique.
Na questão agrária, por exemplo, a dívida com os lavradores, sem-terra, assalariados rurais, indígenas e remanescentes de quilombos. Particularmente em relação a negros e índios, a Igreja e a sociedade têm muito a pedir perdão e a fazer.
E quem são, digamos, os devedores?
– São todos os que sempre se beneficiaram da concentração da terra e da renda, das oportunidades e das decisões políticas, muitas vezes às custas da corrupção e sob o manto da impunidade. O desemprego e a falta de moradia, educação e saúde também são dívidas que estão na pauta de discussão dos eventos em torno da Semana Social em todo o país até o ano 2000.
Além de grupos e comunidades de base católicas, participam desse grande mutirão representantes de outras Igrejas cristãs, movimentos populares, centrais sindicais e Movimento Sem Terra.
Todo esse debate tem apontado para alguma saída?
– Estamos descobrindo que não basta identificar as dívidas. É necessário apresentar um projeto político capaz de garantir cidadania para todos. É preciso pensar em um novo modelo de sociedade, onde o trabalho, por exemplo, não seja visto apenas como emprego. A gente não pode viver só para o trabalho. Temos que cuidar também de nosso crescimento cultural e espiritual, do lazer e do convívio familiar. As pessoas tem que ter, digamos, o direito à preguiça, isto é, a viver a vida por viver.
O que tem mesmo de concreto nesse sentido?
– Há muitas ações concretas de cobrança, sobretudo nos municípios, por meio do acompanhamento às Câmaras de Vereadores e da participação nos movimentos populares. Além disso, estamos colocando à disposição dos partidos políticos, Igrejas e sindicatos um manifesto político pela cidadania: o Projeto Brasil. Esse documento é também fruto de um trabalho em conjunto entre pastorais sociais e movimentos populares.
De que trata esse projeto?
– É um programa de trabalho de quase cem páginas, abordando temas como terra, ética, democracia, judiciário, enfim, tudo o que tem a ver com os direitos sociais da pessoa. Foi discutido na base, em vários estados, durante os meses de outubro e novembro, e acaba de ser publicado.
Que tipo de lição as pastorais sociais estão tirando dessa experiência de parceria?
– As pastorais sociais estão convencidas de que não adianta trabalhar sozinhas. Elas precisam se unir a outras forças sociais e religiosas que também lutam pela cidadania. Isso vem acontecendo em nível nacional. Por exemplo, na Marcha dos Sem-terra e na Caravana da Moradia a Brasília, bem como no Grito dos Excluídos.
Como anda a proposta de celebrar um Grito dos Excluídos em nível latino-americano?
– A idéia surgiu e foi amadurecendo ao longo desses três anos, desde que o Grito começou a ser celebrado. Durante o Nono Encontro Intereclesial de Comunidades de Base (em São Luís/MA, no mês de julho do ano passado), lançamos essa proposta aos participantes latino-americanos. Dezoito países do continente já toparam a idéia de fazer o Grito do continente em 1999. O Paraguai já prepara o seu primeiro Grito para este ano.
Para este ano também está prevista uma reunião de preparação, com representantes de vários países latino-americanos. Ela vai acontecer por ocasião de um simpósio internacional sobre a dívida externa, que estamos organizando com o apoio da CUT, a CMP e o MST, no mês de julho, em Brasília. Inclusive, esperamos contar com a participação de representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial nesse evento.
Como as pastorais sociais avaliam os três anos de governo Fernando Henrique?
– É clara a opção por uma política de tipo neoliberal. O Estado deve ficar ausente de áreas como educação e saúde. É também uma política voltada para a redução de postos de trabalho. Numa entrevista à imprensa, o próprio presidente chegou a reconhecer que seu projeto de governo torna os empresários mais competitivos e abre a economia para o mercado internacional, mas não inclui os excluídos.
Ora, o receituário que ele segue é exatamente o da cartilha do FMI. Essa política econômica é uma bomba de efeito retardado. Não tem um fôlego muito grande. Qualquer dia desses, vai explodir. Queremos uma política econômica voltada para o atendimento das necessidades básicas da população, que priorize o social e seja regulada pela ética.
O que você espera das próximas eleições?
– Acho que em outros anos já tivemos perspectivas mais positivas em relação às eleições. No entanto, as pastorais sociais vão se envolver e acompanhar os candidatos comprometidos com as causas populares. Mas não se espera que a eleição como tal vá resolver os problemas do Brasil.
Mesmo ganhando um candidato das esquerdas para a presidência?
– Mesmo assim. Um presidente de esquerda pode ajudar a avançar toda essa idéia de mudança da sociedade, de organização dos movimentos sociais e populares. Mas não podemos confiar só nisso. Adianta pouca coisa chegar ao poder, se continua uma mentalidade de corrupção nos quadros intermediários. É preciso mudar a mentalidade das pessoas, e a organização popular deve continuar sempre fiscalizando.
O que diria a um católico que não acompanha o ritmo das pastorais sociais?
– Que ele procure viver o evangelho na sua radicalidade. Viver a religião é estar com um pé na bíblia e outro na realidade.
Um bom ponto de partida é perguntar que problemas atingem a comunidade e o bairro, identificar esses problemas, convocar os vizinhos, a população.
Iluminados pela bíblia, vamos lutar para construir sinais do Reino de Deus onde moramos. Assim, vamos dar esperança ao povo que sofre e apontar para uma mudança global da sociedade em que vivemos.
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