México

Ainda não foi
dessa vez

Bispos da diocese de San Cristóbal de Las Casas, em Chiapas, escapam de atentado.


No dia 4 de novembro passado, o bispo de San Cristóbal de Las Casas, Samuel Ruiz, e seu ajudante, Raúl Vera López, conseguiram escapar ilesos de um ataque ao veículo em que viajavam, durante uma visita pastoral a comunidades do norte do estado de Chiapas.

Os dois bispos regressavam a Tila (na fronteira entre os estados de Chiapas e Tabasco), depois de celebrarem a eucaristia e a crisma na comunidade de Guadalupe. Estavam acompanhados por umas sessenta pessoas, em vários veículos: o pároco de Tila, duas religiosas, catequistas e outros, inclusive um médico.

Quando passavam pela localidade de El Crucero, os veículos foram alvejados por vários disparos. Não houve mortos. Dois catequistas e o zelador do santuário de Nosso Senhor de Tila ficaram feridos.


Paramilitares suspeitos – A autoria do atentado está sendo atribuída ao grupo paramilitar "Paz y Justicia", que opera na região. Semanas antes, assim que a viagem tinha sido anunciada, seus integrantes ameaçaram bloquear as estradas para impedir a visita dos bispos às comunidades.

Os paramilitares fizeram ameaças semelhantes em maio de 96, durante visita de Vera López à comunidade de El Limar, no município de Tila.

O "Paz y Justicia" foi fundado pelo deputado Samuel Sánchez, de Chiapas, logo após o levantamento indígena de 1º de janeiro de 1994. Sánchez pertence ao PRI do presidente Ernesto Zedillo, partido que governa o México há quase sete décadas.

O grupo afirma defender os interesses de camponeses cujas terras estariam sendo invadidas por gente do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o responsável pelo levantamento indígena. Pouca gente acredita nisso.

Sánchez rebateu as acusações e negou que tenha algo a ver com a emboscada. Os bispos de San Cristóbal de Las Casas têm outra opinião. Numa carta de protesto, eles afirmam que o "Paz y Justicia" pode atuar impunemente "porque conta com apoio do governo".


Parte de um plano – A Comissão Nacional de Intermediação (Conai) viu no atentado mais uma manifestação do que é capaz o grupo "Paz y Justicia", depois de repetir as mesmas ameaças feitas a Vera López quando de sua visita à região, em maio de 96.

A Conai lembrou que as agressões às comunidades visitadas "deixaram casas e centros de saúde destruídos, cooperativas saqueadas e igrejas profanadas, além do que 4.120 pessoas tiveram que fugir".

"Chegamos à conclusão de que isso faz parte de uma série de ataques contra a Igreja católica", assinalou o padre Gonzalo Ituarte, secretário-executivo da Conai.

"Contrariando o desejo da maioria das comunidades, algumas autoridades proíbem a visita e a passagem dos padres e agentes de pastoral católicos, cujos igrejas se encontram arbitrariamente fechadas."

A Conai foi estabelecida com o objetivo de promover o diálogo e as negociações de paz entre o governo do presidente Zedillo e o EZLN. Samuel Ruiz é o presidente da comissão. Ele goza da confiança dos indígenas, que constituem 85% da população de sua diocese.


Amor e ódio – Samuel Ruiz, 73 anos, chegou a Chiapas em 1960, quando foi nomeado bispo de San Cristóbal de Las Casas. A vida e o trabalho no mais pobre estado mexicano, no sul do país, o transformaram num firme defensor dos direitos da população indígena.

"Dom Samuel é um 'convertido'", expressou Ituarte, que além de secretário-executivo da Conai é vigário episcopal da Comissão Justiça e Paz da diocese.

"Quando chegou, tinha o perfil típico de um bispo tradicional. Ao entrar em contato com os pobres, foi tocado pela miséria. Teve início um processo de identificação e de defesa dos mais pobres."

Hoje, Samuel Ruiz desperta amores de um lado e ódio do outro. Já foi acusado de ser o verdadeiro responsável pela revolta indígena de Chiapas, ao mesmo tempo em que teve seu nome indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

Identificado com uma pastoral libertadora, mais de uma vez teve problemas com o Vaticano, tendo sido acusado de "graves erros doutrinais".

Recebeu como bispo-coadjutor, em 1995, o dominicano Raúl Vera López – e a opinião geral é de que este foi enviado à diocese com o claro objetivo de conter os "excessos" do "progressista" Samuel Ruiz (veja quadro ).

Governo, políticos de direita e latifundiários de Chiapas adorariam vê-lo bem longe – até mesmo morto, por que não? "Os latifundiários de Chiapas, habituados a um tipo bem diferente de bispo, ficam indignados, o atacam e ameaçam", sublinha Ituarte.

"Eles dividem essa indignação com o Partido Revolucionário Institucional (PRI), um partido corrupto e guiado por homens sem escrúpulos. Dom Samuel é visto por todos eles como uma ameaça."


"Em vez de um,
temos dois profetas"

Quem é o bispo Raúl Vera López, na opinião do padre Gonzalo Ituarte, da Comissão Justiça e Paz da diocese de San Cristóbal de Las Casas e secretário-executivo da Comissão Nacional de Intermediação (Conai):

– Dom Raúl é um dominicano como eu. Ficamos juntos um ano, e depois o mandaram estudar em Bolonha, na Itália, numa comunidade naquele tempo muito conservadora.
É um homem formado na escola de São Tomás de Aquino, com forte acento no papel mariano na Igreja, fiel a Roma, ao papa, às instituições eclesiásticas.
É um homem de fé. Foi mestre de noviços por oito anos. Tem segurança teológica e uma piedade ardente. Foi nomeado bispo exatamente por causa dessas suas qualidades.
Em 1988, foi enviado a uma diocese muito problemática, em Ciudad Altamirano, no estado de Guerrero, onde é grande a violência por parte dos narcotraficantes, e extrema a miséria. Uma diocese difícil, com fortes tensões entre os padres. Uma situação complicada, por causa da renúncia do bispo anterior.
Dom Raúl se aproxima das pessoas, promove a espiritualidade entre o clero e leva uma vida simples. Faz um bom trabalho e adquire fama de bispo forte, claro, seguro, conservador.
É exatamente o tipo que o núncio apostólico, dom Prigione, buscava para abrandar a ação de dom Samuel. Foi nomeado coadjutor com a tarefa de corrigir os "erros" da diocese de San Cristóbal e com todas as prerrogativas episcopais.
Ele chega com um pouco de pavor e uma boa dose de ceticismo, por causa das falsas informações que lhe tinham sido transmitidas. Prudente, observa. Os inimigos de dom Samuel o procuram para falar mal do bispo. Para isso, se servem inclusive de um sacerdote, Luís Mijangos.
Dom Raúl vai visitar as comunidades indígenas. Participa das reuniões dos catequistas e agentes de pastoral e das assembléias. Entra na selva, atravessa as matas, fica nas comunidades e acaba descobrindo o verdadeiro rosto da diocese de San Cristóbal e a personalidade de dom Samuel.
Há nesse contexto um episódio significativo. Certo dia, alguns indígenas o vêem lavando roupa num riacho e comentam: "Está aprendendo a ser bispo".
Ele vai se sentindo sempre mais ligado ao povo indígena, à história e cultura desse povo, ao seu empenho para viver a fé. Vê a vitalidade da diocese e o trabalho das pessoas empenhadas nos diversos ministérios.
Dom Raúl começa a viver com dom Samuel, escuta o que ele diz em seus sermões, discute com ele. Quando se faz de tudo para destituir dom Samuel, sob pressão dos ricos de Chiapas, dom Raúl fica do lado dele.
A uma certa altura, dom Samuel decide se defender: "Se o papa me manda sair daqui, eu saio. Se são os ricos que querem isso, não saio jamais".
Dom Raúl concorda.
Ele começa a ficar enamorado dessa gente, a sofrer junto, a se interrogar sobre as causas da miséria e da exploração.
Estamos no tempo da guerra dos indígenas contra o poder central. Dom Raúl visita as comunidades assediadas pelo exército mexicano e pelos grupos paramilitares pagos pelos senhores de Chiapas. Fica do lado do povo e entende ainda melhor a luta de dom Samuel em favor dos direitos humanos.
Ele se faz discípulo de dom Samuel e do povo, de tal forma que agora, em vez de um, temos dois profetas.
Temos um dominicano que está se tornando um verdadeiro e digno sucessor de Bartolomeu de Las Casas.

(volta ao texto)




Zapatistas cobram

Se as coisas continuarem como estão hoje, vai ser de fato muito difícil chegar a algum tipo de acordo de paz em Chiapas – e não é por culpa do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).

Da boca para fora, o governo mexicano aceita a negociação com os rebeldes. Na prática, impôs à população indígena uma guerra de baixa intensidade, militarizando o estado de Chiapas (não só) e respaldando a ação de grupos paramilitares na região.

Tem mais: no campo das palavras, oscila entre o silêncio de quem pretende ignorar os fatos e a enganação pura e simples, num jogo muito bem montado de desinformação do país, com o apoio da grande imprensa.

Que diálogo é esse? – perguntam os zapatistas. Três meses atrás, eles organizaram uma marcha à Cidade do México para cobrar do governo duas coisas: o fim das agressões militares às comunidades indígenas e o cumprimento de compromissos assumidos no âmbito do Diálogo de Paz de San Andrés.

Em questão está um acordo, assinado em fevereiro de 1996, sobre cultura e direitos indígenas. O governo até hoje não cumpriu o que prometeu, alegando que o atendimento às exigências indígenas representaria uma ameaça à soberania e à segurança nacional.

"Se Zedillo tem palavra, que a cumpra, e que a lei reconheça os nossos direitos como povos indígenas", mandou dizer o subcomandante Marcos, líder do EZLN.

"Se Zedillo não tem palavra, então que declare guerra contra nós. Saberemos lutar com honra e valentia, porque temos uma arma muito poderosa, que o governo não tem: essa arma se chama dignidade."

Dezenas de milhares de simpatizantes zapatistas, reunidos diante do Palácio Nacional, no centro da capital mexicana, ouviram o recado de Marcos:

"Exigimos que o governo retire os seus soldados das comunidades indígenas de todo o México". Se não cumprir o que prometeu, "que fale claro ao povo mexicano, e que não o engane mais, falando de paz". – Com informações de Tanius Karan/"Vida Nueva"