Mauritânia

Casa grande...
e senzala

Negros são discriminados. Muitos ainda chamam a si mesmos de escravos.


Diga-me a cor da sua pele que lhe direi quem você é. Na Mauritânia, um país quase todo desértico da costa atlântica africana, não são poucos os de pele escura que chamam a si mesmos de "escravos", enquanto muitos outros, de pele clara, continuam se dizendo "amos", ou "senhores".

Alguma exceção? Sim. Desde outubro de 1996, uma negra, filha de uma casta de escravos, já não tem por que temer o chefe do clã de pele clara de Timbedra, o lugar onde ela nasceu. Fatma Zeina mint Sbaghou, 39 anos, ocupa hoje uma das 79 cadeiras do Parlamento do país.

No dialeto árabe local, a casta à qual pertence Sbaghou é chamada haratan, e são muito poucas as pessoas dessa camada social que, como ela, conseguiram subir na vida. Em se tratando de uma mulher negra, não se conhece nenhum caso semelhante.


Jogada do governo – "Mas nem tudo que brilha é ouro", escreve David Hecht, da agência IPS, de quem SEM FRONTEIRAS obteve grande parte das informações aqui veiculadas. "Essa aparente igualdade, que parece emergir das areias do Saara, pode ser enganosa."

Muitos observadores afirmam que Sbaghou não foi eleita legitimamente. Ela e outros candidatos governistas teriam ganho as eleições graças a um complexo sistema de fraudes e pressões.

No caso particular de Sbaghou, tudo não teria passado de uma jogada do presidente Ould Taya, como resposta aos protestos mundiais contra a escravidão no país. É o que pensa, por exemplo, Hindou mint Ainina, editora-chefe do diário independente Calame.

Nessa mesma linha, em julho do ano passado, o presidente nomeou um negro mauritano para o cargo de ministro das Relações Exteriores.

"Uma escolha que não tem nada de acaso", escreve Mamoudou Sy, em artigo para a revista italiana Nigrizia. "É que o poder mauritano há muito tempo vem sendo acusado e condenado pela prática da escravidão e exclusão dos negros".


Negros sofrem – Tendo assumido o poder em 1984 graças a um golpe de Estado, o coronel Ould Taya não tem boa fama. Tudo o que possa parecer oposição é reprimido.

A minoria negra do país tem sofrido horrores. Há denúncias de encarceramentos e assassinatos nos anos 1989 e 1990. O governo aproveitou um conflito com o vizinho Senegal, em 1989, para expulsar mais de 50 mil negros mauritanos do país.

Mandados para o Senegal e o Mali, tiveram todos os seus bens confiscados. Os partidos de oposição exigem que o governo possibilite a volta deles ao país.

Nos anos 1990 e 1991, mais de quinhentos oficiais e soldados negros foram torturados e mortos, sob a suspeita de apoiarem a oposição.

Grupos internacionais de direitos humanos também acusam o governo de permitir a continuação do regime de escravidão no país. Para o SOS Escravos, da Mauritânia, o governo parece ter muito pouco interesse em mudar as coisas.

"Taya não conta com um mandato popular. Ele recebe apoio dos ricos amos de escravos", manifestou o secretário-executivo do SOS Escravos, Habid ould Nahfoudh.

Africa's Watch, uma organização humanitária com sede em Washington, garante que pelo menos 100 mil haratans continuam levando vida de escravos, a maioria a serviço de mauritanos de pele clara.


Escravos ou não? – Pela lei, é proibido ter escravos na Mauritânia. Mas dezessete anos (a escravidão foi abolida em 1980) representam pouco tempo, quando o objetivo é combater uma tradição de séculos e mais séculos.

Não são poucos os haratans, ou negros africanos da Mauritânia, que trabalham para seus antigos senhores árabes sem receber nada, apenas em troca de roupa e comida. Pode-se chamar isso de escravidão?

O Departamento de Estado e a embaixada dos Estados Unidos argumentam que a escravidão ainda vigente na Mauritânia nunca foi bem compreendida no Ocidente. É outra coisa – como afirma também Mohammed ould Hamady, ex-embaixador da Mauritânia na ONU.

A prova é que sempre teriam existido casamentos mistos. Os negros escravizados, segundo ele, têm sim condições de subir na vida. Além disso, eles não formam a casta mais baixa da sociedade tradicional mauritana.

Esse lugar está reservado aos znaga (pastores), em sua maioria árabes berberes não-negros, que "são mais pobres que os escravos e não têm nenhuma segurança no trabalho", explicou o ex-embaixador.

Um haratan como Messoud ould Bouljeir, líder do partido Ação para a Mudança, não concorda com esse tipo de interpretação. Ele afirma que milhares de pessoas ainda são escravizadas de verdade, sem esperanças de algum dia serem livres.

"Muitos habitantes do deserto nunca nem ouviram dizer que a escravidão foi abolida", destaca Bouljeir.


História antiga – A Mauritânia foi inicialmente povoada por pastores, em sua maioria negros. Estes foram sendo aos poucos impelidos para o sul do território, no vale do rio Senegal, quando chegaram à região as tribos berberes originárias do Norte da África.

O aparecimento do camelo na região, nos primeiros séculos da era cristã, possibilitou a travessia do deserto, e a Mauritânia se tornou o elo de ligação entre a África do Norte e a África Negra.

Com a invasão árabe da África do Norte, no século VII, o islamismo é levado até os berberes. No século XI, surge entre os berberes mauritanos a dinastia muçulmana dos almorávidas, que conquistam o Gana, o Marrocos e, depois, a região da Andaluzia, na Espanha.

Novas tribos árabes invadem o Norte da África no século XI, atingindo a Mauritânia três séculos mais tarde. Entram em guerra com os berberes e os derrotam, no final do século XVII.

É então introduzido um sistema de castas no país, cujos traços ainda se conservam na estrutura social da Mauritânia. Os árabes, a casta dos hassanes (guerreiros), exigiram que os berberes derrotados se dedicassem exclusivamente a atividades pacíficas, como o ensino e o comércio.

Na escala social, abaixo dos hassanes e dos berberes, vinham os servos, ou haratans (pastores negros ou mestiços), e duas castas párias (ferreiros e músicos).


Ameaça de boicote – As eleições parlamentares de outubro de 1996, que elegeram a deputada negra Fatma Sbaghou, mostraram um elemento novo: pela primeira vez desde que Taya subiu ao poder, em 1984, não houve boicote por parte de todos os partidos de oposição.

Em 1998 termina o mandato do presidente, que foi eleito em 1992 em circunstâncias confusas. O primeiro turno das eleições presidenciais estava marcado para o dia 12 do mês de dezembro passado (depois do fechamento desta matéria).

Unidos pela primeira vez numa Frente Única, os partidos de oposição mandaram dizer ao presidente que boicotariam as eleições, caso julgassem que o processo não estava sendo transparente.

Na Carta da Frente das Oposições, os partidos exigiam, entre outras coisas, o fim da escravidão.

"A Carta denuncia a escravidão com veemência", escreve Mamoudou Sy para Nigrizia. "Pois ainda hoje existem cidadãos submetidos ao trabalho escravo e são reportados casos de compra e venda, apesar da abolição oficial da escravidão."



O País

Nome oficial: República Islâmica da Mauritânia
Capital: Nuakchott (500.000 habitantes)
Localização: noroeste da África
Área: 1.030.700 quilômetros quadrados
População: 2,3 milhões (1996)
Língua: árabe (oficial), línguas nativas e francês
Religião: islamismo (religião oficial) 99,4%; cristianismo e outros.

Ex-colônia da França, independente em 1960, a Mauritânia tem quase todo o seu território tomado pelo deserto do Saara. A única parte fértil está no sul. Ali, em cerca de 7% da área do país, concentram-se 80% da população, a maior parte às margens do rio Senegal. Certas áreas do país são praticamente desabitadas.
A extração e exportação de ferro é a principal fonte de renda. A pesca marítima, com processamento moderno, também é importante. A produção de conservas se destina quase que totalmente à exportação.
Historicamente, o país é um elo de ligação entre o mundo árabe, no norte do continente, e a chamada África Negra, ao sul do Saara. Muito contribuiu para isso o aparecimento do camelo, nos primeiros séculos da era cristã, que tornou possível a travessia do deserto.
Os negros são minoria na Mauritânia. Árabes e berberes formam as camadas sociais mais importantes.



Com alegria e prazer

Irmã Redina Pucuhuayla, do Peru,
conta o que faz na Mauritânia.

Recordo, com muita alegria e prazer, o dia em que deixei Paris rumo à Mauritânia: a emoção, o amor pelas pessoas que iria encontrar...

Depois de um vôo de seis horas, cheguei a Nuakchott, a capital do país. Um calor intenso, ao descer do avião. E continuou assim nos meses seguintes, com temperaturas de até 45 graus.

Sentiria, depois, um outro tipo de calor: o calor humano e cristão de minha comunidade.

Alguns dias após a chegada, fui visitar os dispensários e centros de promoção feminina. A messe é tão grande, e as necessidades são tantas, que parece impossível anunciar o Evangelho apenas com a presença no meio do povo.

Por isso, estamos neste trabalho, formando monitoras que levam em frente o que aqui aprendem. São multiplicadoras.

As mulheres mauritanas parecem acostumadas ao sofrimento. São solidárias, abertas e muito alegres.

Promovemos cursos de cozinha, higiene e limpeza, corte e costura, cuidados com as crianças, etc., além de alfabetização. O programa completo dura três anos, e é feito em colaboração com os ministérios da Saúde e da Educação.

No que se refere ao anúncio da mensagem cristã, é preciso prestar atenção. O país é muçulmano, e não se pode falar abertamente do Evangelho. Os cristãos são menos de 1% da população.

Sinto hoje uma alegria profunda ao perceber que despertei para uma cultura diferente da minha. Amo tudo o que é peruano, mas descobri que Deus, através de vários meios, se comunica com todas as culturas. Estou convencida de que Deus está trabalhando em mim.