Reforma agrária

Um não de
todo tamanho
ao latifúndio!

Documento do Vaticano coloca o tema da terra na ótica do jubileu do ano 2000. Condena o latifúndio e sugere: reforma agrária é também questão de sabedoria política.


Antônio Canuto

O Pontifício Conselho Justiça e Paz divulgou, em janeiro, o documento intitulado "Para uma melhor distribuição de terras: o desafio da reforma agrária".

É a primeira vez que o Vaticano lança um documento atacando, direta e claramente, "situações escandalosas no que se refere ao domínio da terra" e propondo a reforma agrária como solução.

A reforma agrária é um "instrumento de desenvolvimento econômico e social". É também "um ato de grande sabedoria política".


Brasil presente – O documento possui destinação universal, mas é fácil sentir nele a presença do Brasil. Presença que chega a ser explícita em duas notas, citando um manifesto da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de 1995, e dois documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de 1996.

Basta lembrar, nesse contexto, as vezes que o papa abordou explicitamente o tema nos últimos anos. Das nove intervenções, todas destinadas à América Latina, quatro se referiam ao Brasil.

"A três presidentes da República brasileira João Paulo II revelou uma preocupação: 'A reforma agrária, no Brasil, não pode fracassar'", lembra o cardeal-arcebispo de Salvador e presidente da CNBB, Lucas Moreira Neves, em artigo para "O Estado de S. Paulo".

Segundo informações do porta-voz da Presidência à imprensa, Sérgio Amaral, o presidente Fernando Henrique Cardoso leu e gostou do documento preparado pelo Vaticano, só discordando de quem pensa que as críticas se referem ao Brasil.

"As críticas não se referem ao Brasil", garantiu Sérgio Amaral. Isso porque, em sua opinião, "possivelmente", o governo brasileiro está realizando "o maior programa de reforma agrária no mundo".


Latifúndio condenado – O documento tem três partes. Fala, na primeira, da concentração da terra e dos empecilhos legais e estruturais que dificultam a reforma agrária. Em seguida, são apresentados os fundamentos bíblicos e da doutrina social da Igreja que dão suporte aos questionamentos e às propostas. Por fim, a terceira parte traz propostas para uma reforma agrária adequada e eficaz.

O latifúndio é condenado, de forma clara e dura, como "escandaloso", sinal de "desordem" e "ilegítimo". Cria "obstáculos ao desenvolvimento econômico".

As "perversas desigualdades" e "os desequilíbrios desumanizantes" provocados pela concentração "são a causa de conflitos que minam as bases da convivência civil e provocam a ruptura do tecido social e a degradação do meio ambiente".

O documento lembra ainda que "a elite fundiária e as grandes empresas" têm muitas vezes instaurado "um clima de terror", com o objetivo de pôr um fim aos protestos dos trabalhadores, para vencer os conflitos com os pequenos agricultores ou para se apropriar das terras indígenas.


Terra de todos – Para defender o direito de todos à propriedade da terra, o Pontifício Conselho Justiça e Paz busca inspiração nos ensinamentos bíblicos e na doutrina social da Igreja.

A Igreja defende a reforma agrária sob o princípio da destinação universal dos bens. "Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, para o uso de todos os homens e povos", ensina o Concílio Vaticano II na "Gaudium et Spes".

"O direito ao uso dos bens terrenos é um direito natural, primário, de valor universal: não pode ser violado por nenhum outro direito de conteúdo econômico", reforça o documento sobre a reforma agrária.

"O latifúndio contrasta nitidamente com o princípio de que 'a terra foi dada a todos e não apenas aos ricos', de tal modo que ninguém tem o direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário."


Ocupações de terras – As ocupações – nunca é utilizado o termo invasões – são analisadas à luz do princípio da destinação universal dos bens. O direito à propriedade particular tem como limite "o direito de cada ser humano ao uso dos bens necessários para viver".

Já na apresentação à imprensa, o Pontifício Conselho adverte que "no que diz respeito a tal delicada e complexa questão, o documento colhe a oportunidade para reafirmar que a ocupação de terras é um sinal urgente para se efetivar velozmente uma reforma agrária eficaz".

A reforma agrária, "é a única resposta eficaz e possível, a resposta da lei, ao problema da ocupação de terras", diz o documento.

"A ocupação de terras continua sendo um ato não conforme aos valores e às regras de uma convivência civil", mas é também, ao mesmo tempo, "um sinal alarmante que exige a atuação, em nível social e político, de soluções eficazes e justas".

O governo que não faz reforma agrária não tem moral para denunciar ou reprimir as ocupações. "O retardamento e adiamento da reforma agrária tiram toda credibilidade às ações de denúncia e de repressão das ocupações de terras."


Sabedoria política – A reforma agrária que o documento do Vaticano propõe é vista como instrumento de desenvolvimento econômico e social. A concentração de terras "obsta gravemente ao desenvolvimento de um país", trazendo consigo "a falta de crescimento da produção agrícola e do emprego".

O objetivo da reforma agrária é garantir "o acesso à terra, o seu uso eficiente e o aumento do número de empregos".

"Uma reforma agrária deste tipo é cada vez mais vista como medida de política de desenvolvimento necessária e inadiável." Além disso, "nos lugares onde subsistem condições iníquas de pobreza, é um ato de grande sabedoria política."

Na análise do documento, a reforma agrária aumenta o rendimento dos agricultores, refreia o impulso migratório em direção às grandes cidades, garante a segurança alimentar da população e contribui para a expansão da indústria e dos serviços.

A reforma agrária não pode se reduzir à mera distribuição de terras. Exige pesquisa, assistência técnica e desenvolvimento de infra-estruturas rurais, como energia, estradas, crédito facilitado e investimentos em saúde e educação.


__________
Antônio Canuto é Secretário de Comunicacão da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Nacional.