El Salvador

Muito cuidado

Quem tem medo da canonização do bispo salvadorenho assassinado há dezoito anos.


Era de se esperar: tem gente que odeia pensar que Romero seja canonizado. Oscar Arnulfo Romero, assasssinado em 24 de março de 1980 enquanto rezava missa em San Salvador, capital de El Salvador, pode ser proclamado santo, oficialmente, pela Igreja católica, assim que for concluído o processo enviado em novembro de 96 para Roma.

A extrema-direita e a facção conservadora da Igreja católica salvadorenha não agüentam ficar sem jogar pedras no bispo-mártir. Em outubro do ano passado, o jornal "El Diario de Hoy" voltou à carga, com duros ataques contra Romero. Houve protestos dentro e fora do país.

Em artigo intitulado "Por que dom Romero não deve ser canonizado", o jornal acusa o bispo de se ter deixado influenciar pelos padres jesuítas, "especialistas em lavagem cerebral". Ele teria virado uma "perfeita marionete" que, em seus sermões na catedral de San Salvador, "confundia o púlpito com uma praça pública".

Nomeado arcebispo em 1977, as homilias dominicais de Romero eram transmitidas pela emissora de rádio da arquidiocese e, durante a guerra civil, se transformaram no programa de maior audiência do país – inclusive as forças de repressão as escutavam, e muito bem.


"Não atrapalhar" – O atual arcebispo de San Salvador, Fernando Sáenz Lacalle, defendeu a honra do seu antecessor. Disse não levar em conta as calúnias, nem se sentir influenciado por "qualquer tipo de afirmação dessa natureza ou de pressão política". Além disso, garantiu que o processo de canonização vai indo bem, "é rigoroso e o mais profissional possível".

O que pode atrapalhar os trabalhos da Congregação para a Causa dos Santos, em Roma, é outra coisa, na visão de Lacalle: "É apresentar a figura de Romero como incentivador de uma teologia contestatória" – leia-se teologia da libertação.

Ou, ainda, "promover atividades de culto público" – numa clara alusão às comunidades cristãs para as quais Romero já é santo há muito tempo, faltando agora a oficialização desse fato por parte do papa João Paulo II.

O recado foi dado diretamente por Lacalle aos bispos participantes do Sínodo para a América, realizado em Roma no final do ano passado. Ele pediu que os bispos cuidem para que não seja desfigurada a imagem do seu "ilustre predecessor", porque a preocupação de Romero com os pobres estava ligada a "uma reta doutrina e a uma sincera piedade".

Segundo Lacalle, seria colocar o carro na frente dos bois, prejudicando "o bom andamento" do processo de canonização de Romero, "atribuir-lhe os títulos de santo ou de mártir antes da esperada declaração pontifícia".


Mártir do século – Enquanto Lacalle, durante o sínodo, expressou publicamente a preocupação de evitar que Romero seja "canonizado" antes que Roma se manifeste oficialmente, seu auxiliar, o bispo Gregorio Rosa Chaves, considerou oportuno realçar o significado sempre atual do testemunho e do martírio de Romero, que é um dos principais símbolos da pastoral libertadora na América Latina.

O discurso foi comovente. Nele, Rosa Chavez informou também que, em julho deste ano, uma estátua de Romero estará sendo colocada na abadia anglicana de Westminster, em Londres (Inglaterra).

"É motivo de alegria e agradecimento constatar que um pastor tão amado e a Igreja que ele procurou construir sirvam de testemunho a tantos homens e mulheres do mundo inteiro, católicos e não-católicos", ele disse.

Na abadia anglicana, Romero estará em boa companhia. Fará parte de um grupo de dez mártires deste século, gente de diferentes continentes e tradições cristãs que deu a vida em defesa da fé, da justiça e da paz. Entre eles, o pastor batista e defensor dos direitos do povo negro dos Estados Unidos, Martin Luther King, assassinado em 1968, e o santo católico polonês Maximiliano Kolbe, que morreu num campo de concentração nazista, em Auschwitz, no ano de 1941.


Dificuldades – Lacalle não considera que a homenagem dos anglicanos ingleses tenha um significado especial para o processo de canonização, embora, segundo ele, "contribua para reconhecer a fama de mártir que Romero tem no mundo".

O arcebispo de San Salvador não pode ser acusado de não se interessar pelo processo de canonização de Romero. Mas são visíveis as dificuldades que sente com as idéias e práticas do bispo-mártir.

Coincidência ou não, Lacalle foi, até não faz muito tempo, bispo dos mesmos quadros militares sobre os quais pesa a grave acusação de terem participado do assassinato de Romero. De terem feito guerra, torturado e matado a torto e a direito, para "defender a ordem, a pátria, a propriedade, a fé cristã", etc., etc.

Fernando Sáenz Lacalle é espanhol e integra os quadros da Opus Dei, um movimento ultraconservador católico, fundado em 1928 na Espanha, que reúne centenas de bispos e cardeais e milhares de leigos em mais de oitenta países.