Indonésia

Castelo de areia

A ditadura balança sob o peso da crise econômica. Quem mais tem coragem de elogiar o modelo indonésio?


José Ramos-Horta

Em junho de 1995, na primeira reunião "intratimorense" promovida pela ONU, num castelo da Áustria, fiz uma breve intervenção de improviso.

Falei do desmantelamento do Muro de Berlim e do império soviético, da libertação dos países da Europa Central e do Leste, dos Estados bálticos. A pequena grande Armênia, povo humilhado e perseguido por séculos, reconstituiu-se num país livre e soberano. Os impérios e os regimes não são eternos.

Fiz uma avaliação crítica do chamado "milagre econômico" indonésio, assente em empréstimos públicos e privados excessivos, megaprojetos, destruição do meio ambiente e um vasto "pólo" de mão-de-obra semi-escrava.


Vivas à Indonésia – No tempo da abundância, todos emprestavam dinheiro ao regime de Suharto, apesar de ser sobejamente conhecida sua natureza repressiva e corrupta. Afirmei que, dali a dois ou três anos, alguém teria de pagar a fatura.

Apelei para a unidade dos timorenses, para que não perdêssemos o comboio, como em 1974-75. Nessa época, a resistência timorense estava desunida e se bateu numa guerra civil breve, violenta e sem nenhum sentido. Portugal abandonou o território, e a Indonésia invadiu Timor poucos meses depois.

Em 1995, poucos partilhavam a minha análise. Perante as estatísticas esmagadoras de um crescimento anual de 7%, minhas palavras soavam como propaganda sem fundamento.


Mito desmorona – Em outubro de 1997, voltamos a nos reunir, noutro castelo austríaco. O otimismo dos servidores do regime indonésio estava muito mais atenuado. A crise financeira asiática tinha se instalado, mas não atingira a Indonésia. Parecia, porém, inevitável que muitas instituições financeiras e centenas de empresas fechassem as portas em meses.

O ano terminou com o desmoronar de um castelo de areia: o mito do milagre econômico asiático. Mas também com a vitória de Kim Dae Jung, veterano de quarenta anos de luta pelos direitos humanos, na Coréia do Sul.

Ao herdar a 11ª economia do mundo, em bancarrota, Dae Jung culpou a ausência da democracia e do Estado de Direito pela catástrofe econômica do país e desmontou a doutrina de "valores asiáticos", que nega a universalidade dos direitos humanos.

Ditaduras e autocracias geram intolerância e arrogância política, favoritismo econômico e monopólios, acumulação de dívidas e corrupção generalizada.

O Banco Mundial e o FMI não escaparão às suas responsabilidades. Por três décadas, fecharam os olhos à corrupção e ao despotismo do regime de Suharto, com relatórios elogiosos à performance econômica indonésia.

O Itamaraty e alguns empresários brasileiros também foram seduzidos pelo canto de sereia da Indonésia, iludidos pelas estatísticas oficiais.


Futuro incerto – O regime no poder há 32 anos, sem eleições livres e democráticas, tem seus dias contados. Mas, ao contrário de Tailândia, Filipinas e Coréia do Sul, onde a democracia foi instaurada e a sucessão política é uma rotina, o pós-Suharto é uma incerteza preocupante.

Em quase 60 anos de independência, a Indonésia teve só dois presidentes: Sukarno, fundador da República (1945-65), e Suharto (desde 1965).

Este subiu ao poder num banho de sangue que dizimou mais de 1 milhão de militantes comunistas, camponeses, operários, estudantes e comerciantes chineses – os últimos, bodes expiatórios em tempo de crise.

A atual oposição democrática é protagonizada pela filha de Sukarno, Megawati Sukarnoputri, repetindo um fenômeno comum na Ásia: viúvas e filhas de líderes depostos ou assassinados assumem a herança política paterna.

No entanto, a oposição democrática indonésia ainda tem um longo caminho para se afirmar nacionalmente. Por enquanto, não tem podido desenvolver uma estrutura partidária nacional, num país de 200 milhões de pessoas espalhadas em milhares de ilhas.


Panorama sombrio – A luta pela sucessão de Suharto não será convencional. O déspota favorito dos Estados Unidos da América liquidou as instituições partidárias com alguma pretensão de independência. Se o ditador não abandonar o poder pacificamente, a política se fará nas ruas dos grandes centros. O banho de sangue de 1965-66 poderá repetir-se.

O coquetel étnico (trezentos grupos falando quinhentas línguas) e religioso pode levar à desintegração da Indonésia. Esse é, porém, um cenário remoto: nenhum grupo é suficientemente grande e eficaz para conseguir a secessão. Mas uma implosão social provocada pela crise econômica é muito possível.

A economia não crescerá neste ano. Haverá pelo menos mais 10 milhões de desempregados. A inflação vai disparar para mais de 20%. A renda "per capita" deve cair para US$ 600 (era de US$ 1.000 em julho de 1997). Mas o poder real de compra dos pobres na Indonésia será igual ao de 30 anos atrás, quando Suharto roubou o poder.



_____________
José Ramos-Horta, 47, diplomata timorense e especialista em direitos humanos, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1996. A matéria apareceu originalmente na "Folha de S. Paulo" (25/1/97), com o título: "Fim de um mito".


Timor Leste

Timor Leste não tem nada a perder. Perdemos tudo desde 1975, só temos a ganhar. A Indonésia não conseguirá manter seu exército de 30 mil homens e milhares de informantes. A tensão subirá ao ponto de explosão nos próximos meses. A hipocrisia americana e européia permitiu a bárbara ocupação de Timor Leste.

É hora de retificarem sua política e apoiarem a realização de um referendo de autodeterminação no território. Nossa moderação e nossa flexibilidade podem esgotar-se. Nosso povo poderá exigir sua liberdade. Haverá centenas de milhares de timorenses nas ruas. Os indonésios dispararão?

Fazem fogo sobre pequenos grupos por ser covardes. Não terão coragem de fazê-lo contra 500 mil manifestantes.

A bola está agora no campo de Jacarta, Washington e Bruxelas. Já demos muitas provas de flexibilidade.– J. R.-H.