Somália

Alá é quem sabe

Viagem a um país que o mundo e a grande imprensa rapidamente esqueceram, depois que as tropas da ONU saíram de lá.


Texto e fotos: Giulio Albanese


Falta pouco para as 11 da manhã quando nosso pequeno avião pousa suavemente sobre a pista de Isaley, a 20 quilômetros de Mogadíscio, capital da Somália.

O aeroporto internacional, o verdadeiro, está fechado há anos por causa da guerra civil. As agências humanitárias conseguiram permissão para utilizar uma faixa de terra de chão batido para o pouso e decolagem de seus aviões.

Assim que desembarcamos, perguntamos onde é o controle de passaportes. Um jovem sorri e responde, num italiano impecável:

Qui siamo senza Stato, quindi niente dogana! ("Aqui, o Estado não funciona. Por isso, não existe alfândega!").


Paz armada


Para chegar à cidade, utilizamos o jipe de uma organização não-governamental italiana. Em cima do veículo vão os "seguranças", feito galinhas no poleiro.

Esses anjos da guarda já viraram uma instituição no país. Alguns os chamam de "soldados por acaso", e outros, de "milicianos". Na verdade, é gente que tenta garantir a sobrevivência oferecendo proteção a estrangeiros e a pessoas importantes do lugar – em troca de dinheiro, é claro.

Começamos a entrar na cidade. Sem exagero, o cenário é de faroeste. Em poucos países do mundo é possível falar de um Estado tão desmantelado como na Somália. Um não-Estado.

Não é por acaso. A ditadura de Siad Barre, a guerra civil, o ódio entre as facções, a desastrada intervenção das Nações Unidas, sob o comando das tropas dos Estados Unidos...

– Pior que assim não podia ficar – comenta um médico, chamado Yosuf.

Um acordo de paz foi assinado em maio de 1997, entre Ali Mahdi (chefe de uma das principais facções) e Hussein Mohammed Aidid (filho do finado general Aidid).

Um sinal positivo, sem dúvida, mas que deve ser visto com cautela.

– É fácil fazer promessas, difícil é mantê-las. Sobretudo quando as pessoas têm um fuzil nas mãos – explica a jovem que nos serve de guia.


Tocando o barco


É lastimável o estado de ruas e estradas, sobretudo para quem conheceu Mogadíscio em tempos melhores. O asfalto desapareceu quase todo. Há buracos por todo canto, verdadeiras crateras.

Os poucos automóveis que circulam – com exceção dos que pertencem às agências humanitárias – mais parecem um monte de sucata sobre quatro rodas. Os mecânicos fazem verdadeiros milagres.

Até o porto está completamente desativado. O cais é pura areia.

– Milhões de dólares desperdiçados – comenta nossa guia.

Um navio mercante encalhado nos arrecifes é o melhor símbolo do abandono.

No meio de tanta desolação, de onde é que se tira força para lutar pela sobrevivência, para ir em frente, de alguma maneira?

Yosuf não tem dúvidas:

– O povo somali é muito religioso. A fé em Deus é que faz a gente tocar o barco.


País islâmico


Na Somália, praticamente toda a população professa o islamismo. A religião chega a fazer parte da tradição cultural do país. Por exemplo, as antigas leis que regulam as relações entre os clãs se fundamentam no livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão.

Até poucos meses atrás, a idéia era que só havia uma solução para o problema do aumento da violência: a aplicação radical da sharia, a lei islâmica.

No setor Norte de Mogadíscio e em localidades como Giohar, amputações e apedrejamentos viraram cenas cotidianas. Era o preço a ser pago pelo criminoso.

A sharia porém começou a ser colocada gradualmente de lado quando o xeque Ali, presidente da corte islâmica da zona Norte de Mogasdíscio, fez as malas e se mandou para a Arábia Saudita.

Dizem até que o próprio Ali Mahdi já não estava suportando o aumento do fundamentalismo. Entretanto, o fundamentalismo sobrevive. E ameaça.

– O islamismo é submissão a Deus, é paz, harmonia, fraternidade – declara um senhor de idade avançada, ex-professor universitário.

Ele discorda da visão dos integralistas. Não consegue suportar a idéia de um islamismo violento. Mas admite que até quem faz a jihad (guerra santa) se proclama muçulmano.


Presença católica


Tentamos fotografar o que sobrou da catedral católica de Mogadíscio. A escolta avisa que é muito perigoso. É que uma organização fundamentalista islâmica, chamada Al-Itihad, toma conta do local, dia e noite.

Toma conta do que um dia foi uma das igrejas mais bonitas da África, construída nos tempos coloniais. Hoje, não passa de um monte de entulhos. Nossos "seguranças" explicam que quem chega perto "é amaldiçoado por Deus".

Uma única igreja ficou de pé em Mogadíscio, a da paróquia do Sagrado Coração. Pelo menos os muros, porque o telhado desabou, sob o efeito dos bombardeamentos.

Os católicos praticamente desapareceram, desde o início da guerra civil, em 1990. Locais de culto, escolas e hospitais administrados pela Igreja foram destruídos.

Não conseguimos encontrar nenhum cristão na capital. Dizem que uns poucos batizados ainda vivem na cidade, espalhados aqui e ali, mas quem se aventura a mostrar a cara? Seria colocar em risco a própria vida.

Não existe um único padre no país. Quatro religiosas da Consolata trabalham na Zona Sul de Mogadíscio, num projeto da "Aldeia SOS", uma organização austríaca. São as únicas no país.

Por motivo de segurança, o administrador apostólico da diocese de Mogadíscio vive em Nairóbi, capital do Quênia. Uma de suas estreitas colaboradoras, a doutora Gabriella Fumagalli, que cuidava de um hospital da Cáritas, foi morta pelos fundamentalistas em 1995.


Três repúblicas


Ninguém pense que a Somália é só pobreza e miséria. Muitos lembram que o país é dividido em "três repúblicas": a dos camelos, a das lagostas e a das bananas. São as principais riquezas desta terra, localizada no chamado Chifre da África.

Observadores internacionais falam da Somália como de uma imensa Zona Franca sem Estado, cujo centro nevrálgico é Mogadíscio.

Os comerciantes são os que mais tiram proveito dessa situação. Aqui se compra e se vende de tudo quanto é mercadoria, inclusive armas e drogas.

Mercadorias – é preciso deixar claro – que freqüentemente vão parar nos mercados de países vizinhos, como Tanzânia, Etiópia e Quênia... Tudo clandestinamente, como se sabe.

Para onde caminha essa terra de contradições? É forte a tentação de achar que tudo está perdido nesse país de 9,5 milhões de habitantes do leste africano.

Quando a pergunta é feita a alguém em Mogadíscio, geralmente a pessoa levanta os olhos para o céu e diz: "Alá é quem sabe".


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Giulio Albanese, missionário comboniano, é diretor da Misna, agência missionária de notícias com sede em Roma.


Para entender melhor

Nome oficial: República Democrática Somali
Capital: Mogadíscio
Nacionalidade: somali
Idioma: árabe e somali (oficiais), inglês, italiano
Religião: islamismo
Localização: leste da África
Área: 637.657 quilômetros quadrados
População: 9,5 milhões (1996)

Fatos recentes

Ex-colônia italiana e britânica, a Somália obtém a independência em 1960.

  • Um golpe militar leva ao poder o general Siad Barre, em 1969. Ele governa ditatorialmente até 1991, quando foge do país, ao ser derrotado por uma coligação de grupos rebeldes.
  • Diversos clãs armados guerreiam entre si, e a Somália vira um país sem governo.
  • Em 1992, tropas dos Estados Unidos, com autorização da ONU, invadem o país. A operação é um fracasso. Os Estados Unidos se retiram em 1994, mas as forças da ONU permanecem até o ano seguinte.
  • Em 1994, Mohammed Aidid, líder de um dos clãs, autoproclama-se presidente da Somália. Não é reconhecido pelos seus principais rivais, Ali Mahdi e Ali Ato.
  • Em agosto de 1996, o presidente Aidid morre em combate. O filho Hussein Mohammed Aidid o substitui.
  • Nos meses de novembro e dezembro de 1996, as forças em conflito se encontram em Soderé, na Etiópia. Um acordo de paz é assinado por Ali Mahdi e Hussein Mohammed Aidid em maio de 1997. - FONTE: ALMANAQUE ABRIL 97

  • Agência missionária

    Quem navega pelos mares da Internet, a rede mundial de computadores, agora tem à disposição uma nova agência alternativa de notícias, que enfoca sobretudo a África. É a Missionary Service News Agency (Misna), em atividade desde dezembro de 1997, com sede em Roma.
    Pequenas e grandes reportagens abordam temas ligados à paz, justiça e solidariedade entre os povos, explica Giulio Albanese, o diretor, da congregação dos Missionários Combonianos.
    Na base da iniciativa está a Federação de Revistas Missionárias Italianas. A idéia, para começar, é nutrir a grande mídia com informações de primeira mão, fornecidas por missionários, organizações não-governamentais e associações de voluntariado internacional que atuam nos quatro cantos do mundo.
    "A grande mídia fala pouco e mal do Sul do mundo", afirma Albanese. Ele acredita que os missionários constituem uma rica rede de informações sobre os países onde atuam. Durante a crise na região dos Grandes Lagos, na África, por exemplo, as únicas informações confiáveis vinham dos missionários e de gente ligada a organizações não-governamentais. Albanese reclama que muito pouco dessas informações foram aproveitadas pela imprensa internacional.