Reforma Agrária e Educação
Seu Anastácio, patriarca de uma família de pescadores e agricultores do litoral de Santa Catarina, não gostou muito de mandar seus filhos para a escola, nem fez questão de que eles prosseguissem os estudos. Tachado de atrasado por seus vizinhos, justifica-se dizendo que as escolas das vizinhanças não estimulavam seus filhos a serem agricultores, a "ter amor pela planta". Mais para o interior de Santa Catarina, e em diversos outros Estados brasileiros, o sonho do velho pescador virou realidade. As famílias que vivem hoje nos assentamentos de trabalhadores rurais espalhados pelo Brasil inteiro mostram que lutar pela conquista da terra não é tudo. É urgente também construir uma escola diferente. Jasse Rossetti, integrante da Comissão de Educação do Assentamento Conquista na Fronteira, no município catarinense de Dionísio Cerqueira, explica essa diferença: o ensino é voltado para os filhos de agricultores. Companheira nessa batalha, mas assentada no município de Calmon, a professora Arcida Godoy considera a escola "o agente que vai ajudar na transformação social". Em suas aulas, ela procura "ir além do ler, do escrever e do contar". Esse "ir além" é o resultado de um esforço conjunto, que une professores e pais nos assentamentos. Querem propiciar aos filhos os conhecimentos escolares e o diploma que lhes foram negados. E, sobretudo, os saberes adquiridos na prática de sua luta pela terra.
Uma nova proposta de ensino nasce nos assentamentos de reforma agrária do país. A principal novidade: as crianças aprendem a ter orgulho de serem filhas de agricultores.
NÃO ANDAR DE JOELHOS - A preocupação com a educação faz parte da história de mais de dez anos de luta do Movimento Sem Terra (MST). Mesmo em condições precárias, é prática corrente manter uma escola na maioria dos acampamentos espalhados pelas beiras das estradas e latifúndios do país. Logo que conquistam a terra, uma das primeiras medidas dos assentados é pressionar para que as administrações municipais construam escolas nas áreas. Não uma escola qualquer. Querem um tipo de ensino que dê condições aos seus filhos de continuarem aperfeiçoando seu saber agricultor, mantendo-se no campo e não deixando de ser camponeses. Margarete Santin, da Direção Estadual do MST de Santa Catarina, conta que o debate sobre o papel das escolas para as crianças dos sem-terra começou em 86, um ano depois das primeiras ocupações de terra organizadas pelo movimento no Estado. Os acampados de então queriam saber se a escola "ia continuar formando crianças para andarem de joelhos a vida inteira ou se ia possibilitar a elas compreender por que os seus pais tiveram que enfrentar o desafio de viver num acampamento". Esse tipo de cobrança não veio à tona só em Santa Catarina, mas nos diversos acampamentos e assentamentos do país. E é daí que nasceu, em 87, o Coletivo Nacional de Educação, responsável pela estruturação, ao longo dos anos, da proposta de educação do MST.
COM AS MÃOS NA TERRA - A proposta baseia-se, sobretudo, na tríade prática-teoria-prática. O conhecimento deve partir da prática, da vivência concreta das crianças, e retornar a ela. É assim que os alunos constroem o seu saber e se tornam sujeitos de seu conhecimento. A idéia é que só a teoria não basta. Todo conteúdo transmitido pelos professores tem que ser vivenciado na prática pelos alunos. Uma prática que tem a ver diretamente com todo o trabalho na terra e que vai além, enfocando, por exemplo, os diversos modos de cooperativismo possíveis. A teoria brota como forma de solucionar os problemas concretos que as crianças encontram na escola, no assentamento ou na comunidade. Assim, o aprender a ler, escrever e calcular está intimamente ligado com a formação da consciência crítica e organizativa. E também com a história que os fez estarem ali, num assentamento de reforma agrária. Essa ligação com a história é evidente nas pró-prias paredes das escolas, onde aparecem invariavelmente cartazes e a bandeira do movimento. O jornal do movimento, que informa sobre a luta pela reforma agrária em todo o país, é utilizado em sala de aula. As datas comemorativas são sempre enfocadas sob a ótica dos trabalhadores.
HISTÓRIA DE UMA LUTA - Tome-se como exemplo o Dia da Independência (7 de setembro). Nos materiais utilizados na Escola Margarida Alves, em Calmon, a "independência" é questionada, porque o Brasil continua pagando a dívida externa e a maioria dos brasileiros não tem comida, trabalho, casa, terra e condições de higiene e saúde. O que se comemora nessa data é o fato de que, em 7 de setembro de 1979, foram realizadas as ocupações nas fazendas Macali e Brilhante, que estão na origem da fundação do MST. Margarida Alves, Padre Josimo e Chico Mendes são alguns dos mártires da luta pela terra homenageados na hora de as escolas serem batizadas. Decidir como a escola vai ser chamada é algo fundamental, que pode gerar muita discussão. Ou até briga, como aconteceu em Dionísio Cerqueira, onde os vereadores tentaram, sem sucesso, impor o nome da escola (veja quadro ao lado). Um aspecto importante da proposta é fazer com que as crianças valorizem a luta de seus pais. "Elas não têm que ter vergonha deles porque eles tiveram que acampar", fala Margarete. É desse jeito que a escola do assentamento tenta amenizar "o choque que as crianças em geral têm que enfrentar quando freqüentam outros espaços". Porque, muitas vezes, os "sem-terra assentados" continuam a ser discriminados pelo pessoal da cidade. Logo, as crianças tendem a se sentir diminuídas por sua pobreza, pela forma como falam e se vestem.
INTELIGENTES E PARTICIPATIVOS - É difícil apagar o preconceito social que persegue os sem-terra, mesmo depois de assentados. Quando, dois anos atrás, as crianças dos assentamentos de Calmon, implantados há dez anos, conseguiram começar a freqüentar a quinta série, a escola do município decidiu criar uma espécie de classe especial para elas. Imaginava-se que deviam ser alunos ignorantes, já que os sem-terra são vistos normalmente como "uma cambada de vadios". Foi então que os professores de fora do município, menos vulneráveis a tanto preconceito, começaram a chamar a atenção para o fato de que aquela turma tinha os melhores alunos, os mais inteligentes e participativos. Hoje, a secretária de educação do município de Calmon é Sônia Dal Magro, uma assentada. Chegou a essa posição como resultado de uma batalha que ela e mais onze mulheres encamparam para dar escola às crianças dos assentamentos. A maioria das professoras só estudou até a quarta série. Mas elas têm conseguido muito bem dar conta do recado, além de contribuir para manter acesa a chama da luta pela terra no meio da sua gente. Porque não se trata apenas de romper com a exclusão do analfabetismo a que grande parte da população rural está submetida. A professora Erodite dos Passos, de uma das sete escolas do assentamento, volta e meia faz conta com a terceira e quarta séries utilizando o valor atual do salário mínimo. Propõe que as crianças subtraiam desse valor os gastos normais que os trabalhadores das cidades têm para viver. "Sempre falta dinheiro", ela diz. A preocupação de Erodite com o assunto tem a ver com sua realidade próxima. Os assentamentos 5 de Maio e 25 de Junho, que congregam 330 famílias assentadas, passam freqüentemente por dificuldades. A terra é ruim, e uma estrada de chão de 27 quilômetros os distancia da cidadezinha de Calmon, município emancipado em 92. Oriundos do oeste catarinense, onde estavam acostumados a plantar e colher de tudo, até hoje não conseguiram acertar os ponteiros produtivos. Tiveram dificuldade em enxergar na erva-mate uma saída rentável economicamente. Depois de experiências fracassadas de cooperativismo, hoje apostam novamente na proposta. Recentemente, fundaram uma cooperativa de comercialização.
TEMAS GERADORES - O assentamento em Dionísio Cerqueira é um dos cartões postais do MST. Nele, sessenta famílias trabalham coletivamente. Sua cooperativa de produção tem até uma fábrica de calças jeans. Lá, na hora de escolher os "temas geradores" que serão trabalhados pelos alunos durante o ano, reúnem-se todos, pais e professores. Este ano, escolheram a erva-mate, algo bastante presente no cotidiano das crianças. A partir desse tema, os professores trabalham com os alunos questões de ciências, matemática e português. É assim que, depois de trabalhar e confeccionar o metro em aula, as crianças vão medir o viveiro de erva-mate. Iraci Chiqueleiro, uma das professoras, explica que, a partir disso, coloca diversos problemas matemáticos para os alunos. Como, por exemplo, calcular o perímetro dos canteiros e ver quantos pés de erva-mate cabem em um metro quadrado. O objetivo final do tema gerador não é só facilitar o aprendizado dos alunos. Depois de estudarem, as crianças vão aprender na prática a produzir erva-mate, do mesmo modo como construíram a horta de ervas medicinais no ano passado. Outra professora do assentamento, Marinês Brunetto, acha essa proposta de educação popular mais difícil de ser trabalhada, pois exige bem mais: "Se você trabalha com a proposta tradicional, simplesmente pega os livros didáticos, o currículo da prefeitura, ou mesmo as aulas preparadas no ano anterior. Segue sempre fazendo a mesma coisa". Já na escola do assentamento, o professor tem que trabalhar com os temas geradores mais a prática do dia-a-dia das crianças. "Isso exige que o professor sempre prepare uma nova aula."
"ESCOLA DE DENTRO" - O esforço das professoras tem dado bons resultados. O diretor e os professores do "colégio de fora", em Dionísio Cerqueira, são quase unânimes em reconhecer que os alunos do assentamento se destacam por sua participação e facilidade para estudar e aprender. Na opinião dos alunos que estão no "colégio de fora", como é o caso de Cézar, que freqüenta a sexta série, "estudar no MST é bem melhor, porque a gente aprende na prática. Lá fora, você fica mais em cima dos livros, só na teoria". Ozéias, que está na oitava série, concorda. Para ele, com a prática, "o aluno aprende bem mais do que só ficando na teoria". Freqüentar a "escola de fora" também significa, para as crianças, deixar de lado todo o estímulo organizativo que recebem na "escola de dentro". Nesta, além de trabalharem todas as matérias da escola de forma coletiva, as crianças estão organizadas de uma forma que reproduz o sistema de cooperativa. Há as equipes de higiene, de subsistência e de serviços gerais, o coordenador da sala, o conselho, as assembléias. Com essa organização, as crianças ajudam na manutenção da escola e resolvem seus problemas internos. Tatiane, da quarta série, é coordenadora da equipe de limpeza. Ela acha boa a organização, porque senão "todos fazem como querem, daí não dá certo". Maria, coordenadora dos serviços gerais, também gosta, pois acha que é uma forma de "viver tudo junto, ser todos amigos". Assim, quando as brincadeiras descambam em briga, o assunto prontamente vai parar nas reuniões de conselho, de equipe e, depois, na assembléia. Na opinião de Anderson, que está na terceira série, assim fica "mais divertido". Mesmo porque, como lembra Tatiana, na "escola de fora", eles vão poder brincar "pouco", pois o tempo de recreio, lá, é só de quinze minutos, enquanto na "de dentro" é de meia hora. (Debora Lerrer, p. 12)
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