Nunca paixão alguma criou raízes em meu coração a não ser o amor pelos africanos. Foi o primeiro amor da minha juventude. | |
Daniel Comboni |
A paixão pela África tomou conta de toda a vida do filho de Luís e Dominica. A chama que Daniel recebeu dos companheiros e entregou adiante, no século 19, é hoje carregada por gente que segue acreditando no mesmo sonho. |
Nas últimas semanas, começou a chover sem parar e, com as chuvas, chegou também uma
epidemia de febre que dizima os sobreviventes da seca.
A tragédia se repete desde sempre, mas há algo de novo dessa vez. É que, nos últimos
tempos, apareceu por ali um grupo de homens e mulheres brancos que em nada recordam
outros brancos muito conhecidos, portadores de tantas desgraças para os negros.
Esses são de fato diferentes. Não vieram para assaltar, massacrar idosos e levar os mais
jovens como escravos para onde ninguém sabe. Estão ali, bem junto com as pessoas, na hora
da dor, da doença e da morte. Em nome de um Deus de quem até agora não se tinha ouvido
falar, eles dão provas de que estão do lado dos negros, enfrentando com valentia os
mercadores de seres humanos. Perseguidos, tantas vezes derrotados pela doença e a morte,
teimosamente voltaram em novas expedições.
E, agora, ali está o último grupo deles. Uma dezena de homens e mulheres, liderados pelo
mais corajoso de todos, o abuna (padre) Daniel Comboni. Tudo indica que soou mais uma
vez a hora da derrota. A epidemia os alcança a todos. Quatro deles morrem no espaço de
uma semana, enquanto outros quatro estão de cama, delirando de febre. Só resistem o bispo
Daniel e o padre João. Arrastam-se de um lado para o outro, acudindo os doentes,
sepultando com uma prece os inúmeros mortos.
No dia 4 de outubro, é a vez de o abuna Daniel cair de cama. Na manhã do dia 10, ainda
reúne forças para se levantar e ir à janela ver passar o enterro de mais um missionário. Chega
a noite e, com ela, os sinais muito claros de que está no fim. Ele pressente. Aos sobreviventes
que o rodeiam, deixa o seu testamento: Desta vez, a morte me pegou. Mas a minha obra
não morrerá.
Às 22 horas do dia 10 de outubro de 1881 chega ao fim a existência terrena de um homem
de 50 anos que tinha jurado viver e morrer pelos africanos.
Tamanha sorte não tiveram sete dos oito filhos de Luís e Dominica, irmãos de Daniel
Comboni, que morreram ainda muito jovens. Os pais eram pessoas humildes. Viviam do
arrendamento de um pequeno sítio onde cultivavam oliveiras.
E qual não foi a surpresa dos pais ao notar que Daniel, o único sobrevivente, dava claros
sinais de que sonhava mais longe. Aos 10 anos, manifesta o desejo de se tornar padre. Tem
que sair de casa para estudar em Verona, a grande cidade perto da outra margem do lago. É
acolhido num instituto fundado e dirigido por Nicolau Mazza, um sacerdote velhinho e todo
cheio de bondade que dedica a vida à formação de jovens sem recursos.
Inteligente e sensível, com sólidos princípios religiosos adquiridos na família, Daniel se dá
bem e avança rapidamente no caminho escolhido. Aos 15 anos, empolga-se com a leitura da
história dos mártires do Japão, crucificados em Nagasaki em 1597. Haveria ideal mais
atraente do que pregar o Evangelho e morrer por Cristo?
Três anos mais tarde, sacudido pelo relato de um missionário, o padre Ângelo Vinco, desloca
o seu interesse para a África. Rostos sofridos de lugares nunca vistos conquistam o seu
coração. Um verdadeiro amor à primeira vista. Ou melhor, ao primeiro ouvido.
O resto de sua vida serviu para demonstrar que esse amor nada tinha a ver com entusiasmo
passageiro. Era uma paixão que tinha vindo para ficar. O primeiro amor da sua juventude foi
pela infeliz Nigrícia (os povos do centro da África), confessaria mais tarde. Um amor do
qual ele morreria, como se morre de uma doença incurável.
Os sinais de fracasso aparecem mais cedo do que previsto. Logo na chegada acontece a
primeira baixa na expedição de Nicolau Mazza. Mais alguns meses, morrem outros dois e,
dos três que sobram, dois estão seriamente enfermos. Daniel é um deles.
A expedição franciscana é ainda mais desastrosa. Em poucos meses morrem treze frades.
Mas a fé teimosa dos missionários desafia o clima implacável e os iluminados raciocínios de
Roma.
Não larguem a obra iniciada. Mesmo que tenha que ficar um só de vocês, não desanimem.
O testamento do chefe da expedição ressoa aos ouvidos de Daniel como apelo a um
juramento sagrado. E ele jura, de fato, a si mesmo, à Igreja e à África, que será fiel até à
morte. Sela esse seu compromisso com um lema: África ou morte!.
Com a saúde abalada, ele volta à Itália três anos depois de sua partida. Uma rápida visita ao
pai (nesse meio tempo a mãe tinha morrido), alguns dias de descanso, e Daniel começa a
percorrer toda a Europa, numa ampla campanha em favor da missão africana. Contacta
religiosos, freiras, bispos, o papa, governantes, associações religiosas e humanitárias. A todos
fala dos africanos, a quem chama de as pessoas mais pobres e abandonadas do mundo. A
todos pede colaboração, em pessoal e dinheiro.
Para convencer as pessoas e juntar as forças, sente a necessidade de um plano. É preciso
racionalizar os recursos disponíveis e garantir resultados. Há tempo pensa nisso.
Em setembro de 1864, a idéia amadurece. Daniel Comboni encontra-se em oração junto ao
túmulo de São Pedro, em Roma, quando é tomado por uma intuição. Senta à mesa e, por
sessenta horas ininterruptas, tenta fixar no papel a tempestade de idéias que se amontoam em
sua cabeça. O resultado é um manuscrito de 24 páginas, intitulado Plano para a regeneração
da África.
Um programa de ação que irá nortear o resto da vida de Daniel. Um documento estratégico,
que ele propõe a todas as forças da Igreja dispostas a colaborar para que o Evangelho finque
raízes no continente africano.
A longa experiência mostra que o clima africano derruba os missionários. Da mesma forma,
os africanos levados para a Europa não resistem, física e psicologicamente. É preciso, pois,
mudar de estratégia. Em lugar do assalto, usar o assédio, escolhendo áreas periféricas do
continente onde seja possível viver e trabalhar, tanto para os missionários quanto para os
próprios africanos de outras regiões. Ali seria implantado todo tipo de estabelecimentos para
a formação de profissionais e líderes cristãos africanos: artesãos, professores, médicos,
catequistas, padres, irmãs... Seriam os apóstolos de seus próprios irmãos.
Salvar a África por meio dos próprios africanos - eis o segredo da missão africana. Sem
dúvida, trata-se de uma intuição altamente profética para a época. Nem o próprio Daniel
vislumbrou as implicações nela contidas. Estava presente a preocupação com as culturas, um
assunto hoje prioritário na reflexão sobre a atividade missionária da Igreja.
Só mesmo a fé de um santo para não perceber que as resistências dentro da Igreja seriam
fortes, maiores até que as dificuldades encontradas na própria África. A proposta de uma
missão assim tão difícil amedrontava. O convite à cooperação ameaçava os pequenos
interesses de grupo.
Daniel não espera. Volta à África com uma nova expedição, que inclui também irmãs
missionárias, as primeiras a penetrar na África. Uma tropa de elite que consegue reconquistar
a confiança de Roma e manter abertas as portas da missão africana.
Seguindo as diretrizes do seu plano, Daniel abriu colégios para homens e mulheres, os
futuros apóstolos da sua própria gente. A maior alegria foi poder ordenar um padre africano.
Em 1877, reconhecendo as capacidades missionárias de Daniel Comboni, o papa o nomeia
bispo de toda a África Central.
O zelo pelas almas não foi maior que a dedicação à causa da libertação dos escravos. O
tráfico de vidas humanas chocava-se violentamente contra todos os princípios humanos e
cristãos de Daniel. Mais ainda, contra o seu profundo sentimento de amor pelos africanos.
Essas duas grandes causas - a da salvação eterna e a da liberdade e dignidade humanas -
impulsionaram sua ação corajosa em repetidas viagens entre a Europa e a África, nas
florestas e nas cortes, nos palácios e nas cabanas.
Quando Daniel tombou, sua obra tinha bases suficientemente sólidas para poder encarar o
futuro. Era só continuar, sem desfalecer diante dos enormes desafios.
Meus filhos, desta vez a morte me pegou. Mas a minha obra não morrerá. Coragem para o
presente e, sobretudo, para o futuro!
Foi o testamento de Daniel Comboni. Uma chama recebida quando ele ainda era jovem, à
cabeceira do leito de morte do missionário da primeira expedição. Agora, ele a passava aos
seus companheiros e seguidores.
Passado mais de um século, a chama continua acesa.
(João Pedro Baresi, p. 4)
DE AMOR TAMBÉM SE MORRE
Daniel Comboni nasceu em 15 de março de 1831 em Limone, pequeno povoado do norte da
Itália, às margens do lago de Garda, o maior do país. Um lugarejo encantador, hoje muito
procurado por turistas. Ainda mais depois que se tornou mundialmente famoso por um fato
curioso: lá, livres de enfartes, as pessoas vivem mais do que em qualquer parte do mundo. O
assunto inclusive mereceu destaque na mídia brasileira. Viver um pouquinho mais até que
seria muito interessante para grande parcela da população nacional.
O JURAMENTO DE DANIEL
Aos 23 anos Daniel se torna padre e, aos 26, pede para integrar um grupo de seis
missionários destinados à África. É o caçula de um expedição decisiva. Roma já não
agüentava mais tantos insucessos e mortes de missionários. Parecia impossível a tentativa de
implantar a missão na África. Nos anos anteriores já tinham morrido cerca de cinqüenta
missionários. Só seriam permitidas mais duas tentativas: a de Nicolau Mazza e uma outra, de
franciscanos. Caso fracassassem, a missão africana seria definitivamente encerrada. Era essa
a decisão de Roma.
ESTRATÉGIA DIFERENTE
Paixão é fundamental, mas não é tudo. Daniel mostra ter maturidade suficiente para entender
isso, sobretudo nos momentos mais difíceis da missão. O amor pelos africanos exige
reflexão, estudo, planejamento. A situação aconselha um recuo tático.
DUAS GRANDES CAUSAS
O plano estava pronto. Faltava conquistar todas as forças da Igreja para a sua realização.
Exatamente todas. Daniel Comboni acreditava nessa utopia. Para torná-la realidade, não
mediu esforços, num gigantesco trabalho de semeadura. Tinha em mente, inclusive, uma
viagem às Américas e a abertura de um seminário no Brasil.
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Colaboração da:
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