Fixai bem: não posso viver senão pela África e para o que com ela se relaciona. Assim, quebrado pelas fadigas, o meu espírito sente a força de um leão, e mais do que nunca estou firme e inabalável, a despeito de todos os obstáculos do universo, no meu inseparável grito de guerra: África ou morte! | |
Daniel Comboni |
Num mundo controlado pelas nações ricas e poderosas, a África tornou-se
praticamente um apêndice sem importância, muitas vezes esquecida e abandonada por
todos, disseram os bispos africanos durante o Sínodo para a África, em maio de 1994. |
Oito países africanos lideram o ranking dos mais pobres do mundo: Guiné, Burkina Fasso,
Serra Leoa, Níger, Chade, Mali, Gâmbia e Somália.
Outros, que ocupam lugares menos desconfortáveis nas estatísticas que medem o nível de
vida da população mundial, exibem igualmente dados que causam espanto. Moçambique, por
exemplo, tem uma renda anual per capita de 73 dólares, quinhentas vezes inferior à da Suíça
e quarenta vezes à do Brasil.
Não é um caso isolado. De norte a sul do continente, que já conheceu as mais antigas e
prósperas civilizações, miséria e sofrimento não têm tamanho. Um continente à deriva,
como já foi chamado. Visto de longe, parece um barco prestes a afundar, submergido pelas
ondas de lutas tribais, de ditadores sem escrúpulos, de uma corrupção incontrolável.
Dos 18 milhões de refugiados que a Organização das Nações Unidas (ONU) registra, mais
de 12 milhões são africanos. Em todo lugar, com raríssimas exceções, o quadro é o mesmo:
economias quebradas, governos incapazes de lidar com os problemas de seus países, povos
se arrastando sem perspectivas.
Cálculos aproximativos dão conta de que em algumas regiões da África Central metade da
população está contaminada pelo vírus da Aids. É um dado sintomático: mostra o tamanho
do abandono que atingiu o continente.
Algum castigo divino estaria por detrás de tudo isso? Ou algum problema crônico, que faz da
África um continente diferente dos outros e, por isso, destinado a ir a reboque do resto da
humanidade?
Não é assim. Um olhar atento revela que o paradoxo África, com seus dramas e
contradições, pode ser tudo, menos o resultado do acaso ou de um destino inexorável.
Só para construir o Brasil, calcula-se que Portugal tenha caçado mais de 5 milhões de
africanos. Com a bênção do pontífice. Cálculos estimativos - e nesse campo, infelizmente, só
é possível trabalhar com estimativas - falam em cerca de 100 milhões de negros sacrificados
no altar de um modo de produção que, desde as suas origens até hoje, faz a mercadoria valer
infinitamente mais do que a pessoa humana.
A África foi o único continente que não cresceu durante mais de quatro séculos. Isso para
que a elite européia ganhasse fortunas nos disputadíssimos mercados de Lisboa, Madri e,
sobretudo, Paris e Londres.
A Europa do século 19 viu a superação definitiva dos resquícios medievais e a arrancada em
direção ao novo mundo da industrialização, urbanização e democracia, da formação de
Estados nacionais com uma língua única, uma cultura oficial, uma religião e uma bandeira.
Era a febre de progresso que varria o passado e renovava todas as dimensões da vida
humana. Para a África, mais um século perdido.
A partir de 1830, o norte do continente começou a ser tomado de assalto pela França, que
invadiu a Argélia com a perspectiva de estender o seu controle sobre toda a região e, aos
poucos, alcançar as riquezas escondidas da África Central.
Portugal não queria ficar atrás e cobiçava a parte centro-meridional do continente, enquanto
a Inglaterra avançava Nilo adentro até o Lago Vitória, na divisa entre Uganda, Quênia e
Tanzânia atuais. A Alemanha havia optado pelo sul, a Itália, pelas regiões banhadas pelo Mar
Vermelho, a Espanha, pela costa ocidental, a Bélgica, pela imensa região do rio Congo...
Não havia um único lugar que não estivesse sendo cobiçado, invadido e tomado por
europeus. Das quarenta unidades políticas em que a África tinha sido dividida até 1913 - em
alguns casos usando-se régua e lápis em Londres, Paris ou Berlim - 36 estavam sob o direto
controle europeu. A França, o país mais beneficiado, controlava quase um terço dos 30,3
milhões de quilômetros quadrados do continente.
À sombra das colônias e a elas atrelados política, econômica e culturalmente, só cresceram
um mercado exportador, geralmente uma monocultura e, em nível social, uma pequena elite
local servil, dependente e submissa. O resto não interessava aos europeus.
Lumumba, o líder da independência congolesa (atual Zaire), dizia em seu discurso no dia da
vitória contra o poder colonial: Nunca esqueceremos que a independência foi conquistada
com lágrimas, fogo e sangue. As feridas estão ainda muito abertas e doloridas. Foram oitenta
anos de colonialismo, e não podemos apagá-lo de nossa memória. Demonstraremos o que
um homem negro é capaz de fazer quando trabalha pela liberdade.
A idéia comum era de que as nações recém-formadas tinham um mesmo destino e de que o
continente devia ser reconstruído sobre novos alicerces. Livre, a África seria outra, e não
apenas economicamente. Para Leopold Sedar Senghor, do Senegal, era necessário, ao lado
da reconstrução econômica, descobrir novos valores culturais, próprios da civilização negro-
africana: emoção e simpatia, ritmo e forma, imagens e mitos, espírito comunitário e
democrático.
Foi o grande sonho africano das décadas de 50 e 60. Um sonho que durou pouco. Em trinta
anos, o fracasso, por causa de disputas internas entre facções rivais, por brigas pelo controle
do Estado, por experiências políticas frustradas.
Os pais da pátria - homens da envergadura de Turé, Kenyatta e Nyerere, só para citar
alguns - viraram mitos de um passado remoto que serviu para lançar no cenário internacional
uma turma de líderes tristemente famosos pela incompetência, corrupção e falta de
escrúpulos. A maioria das vezes, oportunistas que o que fizeram foi levar o continente da
esperança para o abismo.
O professor queniano imagina que recolonização possa ser a palavra-chave do século 21. À
diferença, porém, da colonização passada, propõe que o processo seja conduzido pela
própria África. O conceito é usado para dizer que é necessário reconstruir o continente em
suas bases políticas, econômicas e culturais. Como foi feito pelos europeus, a seu modo, no
século passado, com investimentos maciços de recursos e energias.
O problema é que o colonialismo nunca deixou de existir, mesmo se disfarçado com
roupagem africana, analisam outros. Por motivos óbvios, a palavra recolonizar não é usada
em voz alta na África, assim como, pelos mesmos motivos óbvios, não é pronunciada no
Ocidente, a não ser por alguns nostálgicos periódicos de Londres ou Paris, escreve o
jornalista Christopher Hitchens num jornal do Quênia. Porém, o fato é que em quase todos
os países o Banco Nacional é uma delegação do Banco Mundial, as Forças Armadas são
assessoradas pela ONU, as eleições acontecem sob a vigilância de observadores
internacionais, os cidadãos em situações emergenciais pedem auxílio às organizações de
ajuda internacional e as melhores propriedades são de companhias multinacionais.
Pode estar aí uma chave que ajuda a entender os grandes problemas enfrentados pela África.
O continente ganhou independência política, mas nunca dispôs de autonomia para gerir a sua
história. Continua tutelado, como se fosse incapaz de andar com as próprias pernas.
O teólogo tanzaniano Laurent Magesa vai na mesma linha quando afirma que a saída não é
recolonizar. Segundo ele, é preciso sacudir dos ombros séculos de dominação e inércia, com
o que de pior elas introduziram na mente das pessoas e nas estruturas de poder. Inclusive na
Igreja, que entrou no continente como parte de todo esse processo. As semelhanças são
evidentes, diz o teólogo, referindo-se à maneira como as questões eclesiais são
encaminhadas no interior da Igreja africana.
(João Munari, p. 31)
Em primeiro lugar, há guerras que duram décadas, e nenhum país do mundo se desenvolve
aplicando uma economia de guerra. Em Moçambique, a guerra de quase vinte anos
consumiu 15 bilhões de dólares, uma fortuna para um país de economia pobre. Há colossos
do ponto de vista econômico que estão agonizando, como é o caso do Sudão, de Angola e do
Zaire. Ninguém se sente estimulado a investir em regiões que não tenham alcançado uma
certa estabilidade política e social.
As lutas tribais representam um complicador a mais. A tragédia de Ruanda revelou ao
Ocidente um lado obscuro e ainda pouco conhecido. A estabilidade que se procura passa pela
costura de uma unidade nacional que em muitos lugares é quase impossível. Nação é um
conceito importado para a maioria dos países africanos. Imaginar um povo unido ao redor de
uma língua comum, de uma cultura dominante, uma religião, uma história e uma bandeira
não passa de fantasia em diversas regiões. O Estado moderno, com sua burocracia e seus
serviços, não representa a maneira de a África lidar com os problemas da coletividade. O que
sobra é em geral uma infinidade de faz-de-conta. No máximo, serve para salvaguardar as
aparências, não mais que isso.
Há ainda o problema da corrupção. Muita gente ocupa posições de autoridade apenas para
conseguir dinheiro para si, a famílias e os amigos, revela Pete Henriot, diretor de um centro
de estudos de Lusaka, capital de Zâmbia. Há africanos muito ricos, e freqüentemente são
eles que ocupam cargos políticos importantes. Investimentos estrangeiros e riquezas
nacionais acabam engordando contas bancárias na Suíça e nos chamados paraísos fiscais.
O fato de não conseguir desenvolver economias saudáveis e democracias confiáveis deixa a
África em posição marginal no cenário mundial. Por toda parte, os países se organizam em
blocos econômicos e criam suas redes de trocas (União Econômica Européia, Nafta, Apec,
Mercosul), menos na África. Como imaginar algo semelhante, se apenas 5% das trocas
comerciais que interessam à África se dão no interior do próprio continente?
Acrescente-se a tudo isso o problema da inflação, da falta de infra-estruturas e das dívidas
interna e externa, e dificilmente se consegue vislumbrar saídas a curto prazo, pelo menos
para a grande maioria dos países do continente.
COM RÉGUA E LÁPIS
A Europa tem muita responsabilidade em tudo isso. Desde 1500, um cordão umbilical une os
dois continentes: a riqueza de um foi sendo acumulada às custas da exploração e sangria do
outro - e não só da África. Tudo de forma legal, para deixar tranqüilas as consciências de
papas e reis católicos das cortes espanhola e portuguesa.
SONHO DA GRANDE ÁFRICA
Veio então o período das lutas pela independência, após a Segunda Guerra Mundial, e o
sonho da Grande África, com liberdade e prosperidade.
RECOLONIZAR A ÁFRICA?
Uma tese polêmica, lançada recentemente e que vez ou outra é retomada por intelectuais e
políticos, prega a necessidade de recolonizar a África. Ali Mazrui, um professor do
Quênia, escreveu que a recolonização é necessidade urgente. Pode ser a maior esperança
para a África, chegou a dizer.
Ninguém nega o potencial africano. Mas uma série de entraves costumam ser enumerados
quando o assunto é a inserção da África, a curto e médio prazo, no mercado mundial.
Para maiores informações, ou para receber os textos completos,
faça contato com:
Colaboração da:
Biblioteca Comboniana Afro-brasileira. E-mail: comboni@zumbi.ongba.org.br |