“A nova vida do Evangelho deve chegar à África por obra dos próprios africanos. A árvore do Evangelho não pode nem deve ser exportada e transplantada na África. Deve brotar ali com as peculiaridades, riquezas e falhas dessa parcela da humanidade.” | |
Daniel Comboni |
A “África infeliz” de Daniel Comboni continua a ser infeliz em muitos sentidos. Mas é também a África da vida, da solidariedade e da esperança. Chamada a repetir o gesto do bom samaritano da parábola de Jesus, a Igreja africana busca o seu próprio rosto e tem muito a oferecer e ensinar aos cristãos de outras partes do mundo. |
Para muita gente, essa é a melhor imagem da África contemporânea. Quem nunca ouviu falar das enormes riquezas humanas e materiais do continente, e também da voracidade dos que a invadiram, dominaram e massacraram nos últimos séculos?
Num mapa-múndi feito recentemente, os países são apresentados de acordo com a sua importância em termos de indústria e comércio, exportação e importação de bens. Nesse mapa, os Estados Unidos, a Europa e o Japão dominam a maior parte do espaço, enquanto a África nem sequer aparece. Só existe mar onde deveria estar um continente inteiro.
Como no caso do seu maior deserto, o Saara, que um tempo era área verde, a África foi devastada e espoliada. Como o homem que ia de Jerusalém para Jericó, foi assaltada e abandonada às margens do mundo, ferida e prestes a morrer de vez.
Os que contam nesse mundo nem se dignam a olhar para ela. O continente geme à beira do caminho, à espera de um bom samaritano.
Essa vocação de solidariedade tem sido assumida por muitos setores da Igreja católica na
África. Um esforço que é também de diversas outras Igrejas e forças africanas, no qual se
mostra o rosto escondido de um continente com profundo amor pela vida. Num mapa-múndi
diferente, em que os países fossem apresentados pelo tamanho proporcional às ações de
solidariedade neles existentes, as nações africanas ocupariam certamente um espaço
privilegiado.
Com efeito, a Igreja na África tem carregado sobre si o peso da instrução, do atendimento sanitário e da preocupação com os mais pobres, os milhões de refugiados de guerra ou as vítimas da miséria nas grandes cidades. Pode ser que use pouco a palavra “libertação” em seus pronunciamentos oficiais e nas obras da maioria dos teólogos. Mas seria injusto dizer que os cristãos africanos não estão comprometidos com a justiça e a paz.
Esse compromisso envolve igualmente o trabalho de conscientização política do povo e os esforços de mediação na transição para regimes mais democráticos. Vai da denúncia do tráfico de armas que alimenta guerras infindáveis à preocupação com o futuro dos jovens em Estados falidos econômica e politicamente. Vai da tomada de posição contra a dívida externa e os projetos de reajuste estrutural às freqüentes denúncias de corrupção de muitos governantes.
São numerosos os testemunhos de compromisso libertador e de uma esperança viva.
Não são palavras vazias, pois, as que os bispos africanos pronunciaram por ocasião do
encerramento do Sínodo dos Bispos para a África, em maio de 1994:
“Neste momento em que tantos ódios fratricidas - provocados por interesses políticos -
dilaceram os nossos povos. No momento em que o peso da dívida internacional ou da
desvalorização da moeda os oprimem, nós, bispos da África, queremos pronunciar uma
palavra de esperança e de conforto para ti, Família de Deus que estás na África. Para ti,
Família de Deus espalhada pelo mundo: Cristo, nossa esperança, está vivo, e nós
viveremos!”.
Os leigos assumem a dianteira. Esta é mais uma característica da Igreja africana. Muitas
comunidades e igrejas só subsistem pelo trabalho de numerosos homens e mulheres. São
catequistas, ministros da Palavra e da Eucaristia, visitadores, agentes de saúde, responsáveis
pela economia e até por paróquias, como acontece em Moçambique e no Zaire. São jovens
engajados e são também anciãos que cuidam da reconciliação em caso de brigas ou que
ajudam a decidir o que é melhor para todos. São bons samaritanos que contribuem para uma
Igreja com rosto sempre mais africano.
É verdade que, em alguns casos, o protagonismo dos leigos se deve à escassez de clero e religiosos em países atingidos pela guerra ou de pouca densidade demográfica e vasta extensão. Mas é certo também que, em muitos outros casos, trata-se de uma opção livre e responsável, apoiada nas tradições culturais dos povos africanos, com a importância dada à família, à organização social e política e à solidariedade. Isso tem facilitado o surgimento de pequenas comunidades vivas, bem parecidas com as nossas comunidades eclesiais de base e, às vezes, até mais avançadas em termos de organização e de ministérios leigos.
O papa João Paulo II, na exortação apostólica Ecclesia in África (A Igreja que está na África), de setembro de 1995, destaca esse rosto particular das Igrejas africanas. Nos números 42 e 43 do documento, que retoma as discussões do Sínodo dos Bispos para a África, o papa lembra a riqueza e variedade de valores culturais, as qualidades humanas que o continente possui e que pode oferecer às Igrejas e à humanidade inteira. Entre esses valores encontra-se o profundo sentido religioso, do sagrado, da existência de Deus.
E mais: “Os filhos e filhas da África amam a vida. É precisamente o amor pela vida que os leva a atribuir tão grande importância à veneração dos antepassados”. Os povos da África “respeitam a vida desde que é concebida” e “alegram-se com essa vida”. É muito vivo nas culturas africanas o sentido da solidariedade e da vida comunitária. “Não se concebe uma festa que não seja partilhada por toda a povoação. De fato, a vida comunitária nas sociedades africanas é expressão da família ampliada.”
Na seqüência, o papa recomenda à Igreja na África ser fiel à sua vocação, colocando-se decididamente ao lado dos oprimidos, dos povos sem voz e marginalizados. Encoraja a Igreja a dar o testemunho da opção preferencial pelos pobres, um testemunho que não deixou de existir ao longo de sua história.
A Igreja na África é tantas vezes considerada irmã menor, quase a última das Igrejas, por ser
ainda muito jovem (vários países africanos celebram nesses anos o primeiro centenário de
evangelização). Na realidade, porém, o cristianismo africano tem um passado glorioso (veja quadro).
As tentativas de evangelização nos países ao longo da costa africana, na idade moderna, não foram muito frutuosas, apesar de terem visto nascer Igrejas cristãs no Congo, em Angola e vários outros países. Mas motivações econômicas e o tráfico de escravos deixaram a marca de uma contradição gritante: como conciliar a mensagem cristã libertadora com as práticas da maioria dos que se diziam portadores do Evangelho, e que estavam mais interessados em obter lucro e dominar?
Passou muito tempo até que, no século 19, um novo impulso levasse missionários a pisar novamente em terras africanas. Também desta vez, a presença deles ao lado dos novos poderes coloniais estava carregada de contradições. Mas não foram poucos os missionários que, rompendo essas barreiras, conseguiram dar testemunho de um trabalho cheio de generosidade.
A eles se unirá Daniel Comboni, depois eleito o primeiro bispo de Cartum (Sudão), à frente do grande Vicariato da África Central. O principal mérito do fundador dos missionários combonianos foi o de revitalizar o ânimo e as forças de muitos que já tinham desistido da evangelização nessa região, por causa das dificuldades climáticas e também políticas que custaram a vida de numerosos missionários. Em 1864, ao apresentar o seu “Plano para a regeneração da África”, Daniel Comboni insistia na possibilidade de evangelizar o continente através dos próprios africanos, o que só seria possível se todas as forças se unissem para esse fim.
Não restam dúvidas de que as ambigüidades de uma presença missionária ligada às potências
européias dificultaram - e, de certa forma, dificultam ainda hoje - o surgimento de uma
Igreja com rosto africano. Um sinal disso é que só em 1939 foram eleitos os primeiros bispos
africanos dessa época, Ramarosandratana, de Madagascar, e Kiwanuka, de Uganda. Mas a
dificuldade principal diz respeito à organização eclesiástica, à pastoral e à teologia, fortemente
apoiadas em moldes europeus, chegando em muitos casos a desprezar as culturas, os valores
e a fé tradicional dos povos africanos.
O quadro começou a mudar já no período imediatamente anterior às lutas de independência dos anos 60. Muitos esforços eclesiais foram dirigidos ao resgate das tradições culturais e religiosas desses países. Com palavras como adaptação, indigenização ou inculturação, cristãos africanos, teólogos e bispos têm reivindicado continuamente o direito a uma Igreja com rosto próprio, africano.
As inovações começam pela liturgia, onde o exemplo mais conhecido é o da missa zairense. Mas não param por aí. Busca-se a inculturação dos sacramentos, dos ministérios e até do direito canônico. Também no campo do diálogo ecumênico e com as religiões tradicionais africanas, a Igreja na África tem dado exemplos de que a diversidade e o respeito pelas culturas não implica em separação. Contribui, isso sim, para o resgate da própria dignidade, para a participação e a comunhão.
Há ainda resistências a essas vivências mais inculturadas do cristianismo - e também nisso a Igreja na África se parece com o samaritano da parábola de Jesus. É que os samaritanos eram desprezados enquanto povo, e sua religião era considerada inferior. Nesse sentido, paira ainda no ar um grau maior ou menor de desconfiança, quando não de preconceito e discriminação, frente às expressões de fé das comunidades cristãs africanas. Quem sabe isso seja fruto de antigos racismos e da incapacidade de respeitar as diferenças!?
Resta acreditar na capacidade e boa vontade de toda a Igreja em receber os dons característicos das tradições religiosas e culturais dos povos africanos. Povos ricos de Deus, porque ricos de preocupação pela vida e de solidariedade.
(Heitor Frisotti, p. 35)
Poucos sabem das florescentes Igrejas africanas dos primeiros séculos da era cristã. Tinham
uma reflexão teológica muito rica, davam provas de fidelidade frente às perseguições,
estavam organizadas para prestar assistência aos pobres, mantinham um vivo intercâmbio
com outras Igrejas e participavam ativamente das preocupações de todas elas. Vários sínodos e concílios foram celebrados em terra africana, em Cartago e Alexandria, alguns deles chegando a reunir quase trezentos bispos. No século 5°, a Igreja no norte da África contava com mais de quatrocentos bispos e dela já tinham sido escolhidos três papas: Vítor I (189-199), Melquíades (311-314) e Gelásio I (492-496). Eram também numerosos os santos, mártires e mestres espirituais do deserto. Alguns desses santos têm nomes muito conhecidos, como Cipriano, Agostinho, Mônica, Clemente, Atanásio e Cirilo de Alexandria. Foram vários os motivos, de ordem política e também religiosa, que levaram praticamente ao desaparecimento das comunidades cristãs africanas dos primeiros séculos, incluindo os cismas, a invasão dos vândalos e a difusão do islamismo. Mas é preciso também registrar a força das Igrejas da Etiópia e da Núbia (Sudão), que souberam criar raízes nas culturas africanas e resistir ao islamismo até o século 15. Ainda hoje, a Igreja copta no Egito e na Etiópia cultiva a herança antiga da evangelização dos apóstolos e missionários dos primeiros séculos. (volta ao texto) |
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