Trabalho infantil (2/2)

O Brasil não gosta deles


João Ripper – Imagens da Terra

<<< 1ª parte <<<


O gosto amargo da cana-de-açúcar


Volta e meia, o suor fica vermelho quando a folha da cana corta a pele infantil. Sorte da criança: a dor faz parte do ofício, ela se acostuma. Pior é quando a foice escapa e fere. Aí, dói muito, o corte é profundo e às vezes mutila. Se isso ocorre, a criança perde parte do corpo e perde também o emprego.

Quando a criança pode crescer canavieira, quase sempre sofre de desnutrição e excesso de cansaço físico. Muitas adquirem hipertrofia cardíaca, artrose e efisema pulmonar. Após doze anos de profissão, um canavieiro pode ficar inutilizado para o mercado de trabalho.

Para cada adulto existe uma criança ou adolescente trabalhando nos canaviais brasileiros. Em São Paulo são 60 mil crianças. Em Alagoas, 50 mil canavieiros têm entre 6 e 13 anos, e só no município de Campos, no Rio de Janeiro, 4 mil crianças trabalham como bóias-frias do açúcar.

No período da safra, as crianças trabalham no corte, na formação dos feixes e no transporte da cana para o engenho ou do bagaço para o terreiro, numa jornada que vai das 5 da manhã às 5 da tarde para ganhar, no máximo, 3 reais por semana. Outras tarefas exercidas pelas crianças das 6 e meia da manhã às 11 da noite em troca de 6 reais por semana são as de tombador, bagaceiro e caldeireiro, dentro das usinas. O trabalho, sob um calor de até 60 graus, provoca rachadura e inchaço nas pernas. Na entresafra, os pequenos canavieiros preparam tocos, num trabalho conhecido por rebrota. Capinam, limpam o terreno e cuidam do solo, em funções denominadas encoifação e preparo do aceiro. Por esse trabalho recebem, no máximo, 1 real por semana. Entretanto, segundo a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), 41% das crianças não recebem nada, porque ajudam os pais, e 59% não podem ir à escola por causa da jornada de trabalho. Mesmo as que conseguem estudar têm um rendimento muito baixo, devido ao cansaço e à má alimentação. Cerca de 24% dessas crianças abandonam a escola.

Grande parte da produção das usinas de cana-de-açúcar (cerca de 70%) vira álcool, com subsídios da Petrobrás, o que faz do governo brasileiro parceiro da escravidão e da exploração da mão-de-obra infantil. Em Campos/RJ, recentemente, doze usinas foram autuadas pela Procuradoria do Trabalho. Todas eram subsidiadas pela Petrobrás.

Luciano Nogueira da Silva, de 11 anos, corta duas toneladas de cana por dia para a usina Sapucaia, no Rio de Janeiro. São doze horas de trabalho por dia. No fim do mês, sua produção, transformada em litros de álcool, dá para abastecer o tanque de noventa fuscas. O trabalho de um adulto daria para encher 270 tanques de quarenta litros de álcool.

No Brasil, aproximadamente 3,5 milhões de crianças com menos de 14 anos trabalham. Quase a metade não recebe remuneração alguma. O número de trabalhadores entre 10 e 17 anos é de 7,5 milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), representando 12% da população economicamente ativa. Desse total, 1,2 milhão trabalham na agricultura.


A laranja e terceirização da miséria


Planura, cidade guardada como segredo no colo do Triângulo Mineiro. São 6 da tarde, o sol ameaça dormir e estica um bocejo vermelho sobre a terra coberta de pés de laranja e de batatinhas. Aqui e ali, plantações de cebola. Os velhos ônibus da fazenda Bagage, do vice-prefeito Alcides Tomala, vão despejando os bóias-frias que retornam da colheita da batatinha. Até 94, quase todos colhiam laranja ou cortavam cana. Hoje, as condições de vida pioraram.

A terceirização (sistema de trabalho sem carteira assinada explorado por empreiteiros intermediários) chegou a Planura e atingiu também as cidades vizinhas de Frutal e Conceição das Alagoas. A terceirização já atinge 80% dos trabalhadores da laranja no Triângulo Mineiro. Corre de boca em boca que para cada dois sucos exportados um é da Cutrale (Suco Cítrico Cutrale Ltda.), uma das maiores fabricantes de sucos de laranja do país.

Até há pouco mais de um ano, a Cutrale tinha aproximadamente 2.300 trabalhadores, contratados diretamente ou através de suas diversas fazendas. Trinta e cinco por cento dos catadores de laranja eram crianças que os pais levavam para o trabalho, uma vez que recebiam em carteira mas por produção. Cada trabalhador ganhava em média de 7 a 8 reais por dia para uma produção de setenta a cem caixas de laranja. Hoje, tudo é feito através da Cooperativa dos Trabalhadores Rurais do Triângulo Mineiro, que, segundo o seu presidente, José Silva, tem mil associados. Como dá para ver, na mudança da carteira de trabalho para a terceirização, como explica um bóia-fria, “muita gente ficou só com o bagaço”. Mil e trezentos trabalhadores largaram a laranja e foram trabalhar na colheita da batata e da cebola. Nessas culturas, ainda podem burlar a lei e levar os filhos para trabalhar.

Cidade de poucas ruas, a maioria de terra batida. Por uma dessas vêm Francisco Welder, Maria Aparecida e Francisco Augusto Collares. Roupas sujas, rostos cansados, andar cadenciado e despretensioso, como de quem não exige muito da vida. O primeiro tem só 11 anos, e os outros, 27. Todos retornam da colheita das batatinhas do vice-prefeito, meio tingidos de marrom.

“É cor de burro quando foge”, se adianta Francisco. O olhar é mais esperto que o dos adultos, menos assustado. Trabalha desde os 7 anos, ele e o irmão Eudino, de 10 anos. As irmãs, Eudinete, de 6 anos, e Rosinete, de 2, são muito pequenas para ajudar o pai, Francisco Áries, na panha da laranja para a cooperativa, ou a mãe, Margarida Oliveira, que antes tinha carteira assinada, mas que, com a terceirização, passou da laranja para a batata.

Junto com o irmão, o pequeno Francisco também ajudava a engordar a diária dos pais nos laranjais. “Papai e mamãe ganhavam melhor antes da cooperativa. Agora ficou mais difícil.” Ele estuda de manhã na Escola Estadual João Alves de Paiva e é uma exceção, pois, apesar das faltas, não foi reprovado. Está na quarta série.

Maria Aparecida reclama da sorte. Queria ir para a laranja, mas está difícil conseguir trabalho na cooperativa. A batata também paga pouco, menos de 10 reais por dia. Quando o mês é muito bom, consegue trabalhar de quinze a vinte dias.

Francisco Collares vive a mesma realidade. Demitido da laranja depois de trabalhar por dois anos com carteira assinada para a Cutrale, onde às vezes tirava até dois salários, diz que a laranja não vale mais a pena. Prefere a batata, mas se pergunta: “Se agora está ruim, imagina quando a safra acabar? Mas deixa pra lá que Deus resolve!”. Solteiro, cabelo entre louro e o marrom da batata, engole entre os dentes brancos a amargura, ensaia um sorriso e se despede. Só resta rezar...


DO SUOR AO SUCO

O último acordo coletivo de trabalho assinado entre os catadores de laranja de Minas Gerais e os patrões é o mesmo de São Paulo: para cada caixa de laranja (que tem em média 180 laranjas e pesa cerca de 40 quilos), um trabalhador deve receber R$ 0,0737. Na prática, hoje esse valor está ultrapassado e chega-se a pagar R$ 0,18 por caixa. Segundo estudos do economista Émerson Carvalho da Silva, do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais, de março de 88 a março de 95, os catadores de laranja amargaram uma perda de 115,73%.

Só a Cutrale produz por safra 3 milhões e 700 mil caixas nos seus 1,2 milhão de pés de laranja no Triângulo Mineiro. A Cargil Citrosucos tem 1,3 milhão de pés plantados na região. Com oito laranjas, em média, faz-se um litro de suco nas máquinas automáticas vendidas nos grandes centros urbanos.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o produto chega ao consumidor a um preço que varia enter 1,80 e 2,40 reais. Fazendo as contas, isso quer dizer que um litro de suco comprado no mercado das grandes cidades vale trezentas vezes o valor do trabalho de quem colheu a laranja. A maior parte da produção de sucos de laranja é destinada à exportação, principalmente para os Estados Unidos.


SONHO AZUL


Luís Chagas Antunes mora na bucólica cidade de Planura. Conhecido como mineiro, tem 43 anos e é orgulhoso da família: a mulher, Creuza Moreira da Silva, de 38 anos, muita garra e sorriso sempre alegre; a filha Érica, de 13 anos, bonita, sensual, rosto zombeteiro, cor de jambo como a mãe, e Reinaldo, de 8 anos, cor de batata, rosto lambuzado de comer bolo, dentes bonitos e um desafio ressabiado: “Trabalho sim, pra ajudar meu pai que é sem terra. Se não for na laranja, vou na batatinha”.

A família é um exemplo da situação rural do bóia-fria hoje. Os pais trabalharam por dois anos na destilaria Santo Ângelo. Tinham carteira assinada pelo empreiteiro Geraldo Santana e juntos tiravam dois salários. Quando apertava, levavam os filhos para aumentar a produção. Foram demitidos num final de safra.

Creuza conseguiu carteira assinada na Cercol, subsidiária da Cutrale, produtora de suco de laranja. Com carteira assinada e ganhando por produção, às vezes tirava um salário e meio, com todos os direitos trabalhistas. Às vezes, os filhos a ajudavam na colheita da laranja. Depois foi trabalhar na Cargil Citrosucos, onde ficou sete meses.

Encostada na pia de uma casa que custa 150 reais de aluguel por mês, Creuza lava batatas para o jantar. Estica as costas, franze o rosto e diz que o marido Luís foi para o acampamento de sem-terra em Araxá. “Estamos nessa luta há um ano, tentando um pedaço de terra na fazenda Sonho Azul.” Quando conseguirem – explica Creuza –, vai ser ser um sonho de verdade. “Enquanto isso, dividimos o trabalho com a colheita da cenoura e da batata, pois não dá mais pra trabalhar na laranja. Agora é tudo com a cooperativa, e isso foi mais um golpe. Os donos são os antigos fiscais, os gatos. Lá, não dá nem pra comprar pão pra comer.”

Na cozinha entra sol. É final de tarde. Érica se deixa fotografar depois do banho, bonita. Suja de batata ela não quer. Mãe e filha acham que o trabalho quase não vale a pena. Hoje, a família encheu 87 sacos de batata de 50 quilos, mas não tirou nem 20 reais, pois ganha 20 centavos por saco. O sonho do menino Reinaldo, que trabalha desde os 6 anos e já colheu feijão, milho, batata, cebola, cortou cana e catou laranja, é ser caminhoneiro.

Érica diz que está na terceira série, mas já poderia estar na sétima. Nunca repetiu, mas várias vezes teve que abandonar a escola para ajudar os pais. Também já trabalhou em tudo na roça. “Namorado? Não tenho porque mamãe não deixa”, diz a menina, cujo sonho é ser cantora. Por enquanto, contenta-se com o coral da igreja.

A família é descontraída, bonita e sensual. São muitas histórias e um sonho comum: viver em paz, algum dia, na terrinha do Sonho Azul.


João Ripper – Imagens da Terra


1ª parte: O carvão entrando pelos pulmões