Massacre de sem-terra

“Ai de vós
que agora rides!”


O posicionamento oficial da Igreja católica no Brasil
sobre o massacre de sem-terra em Eldorado dos Carajás,
Estado do Pará, ocorrido no dia 17 de abril.



Dos bispos do Brasil


A nação não tolera mais
o adiamento da reforma agrária.


“Este fato nos leva a repudiar novamente a violência e a arbitrariedade, ainda mais quando vindas da parte daqueles que têm por obrigação proteger a vida e preservar a ordem social.

Urgimos a imediata apuração dos fatos e a rigorosa responsabilização dos culpados, para que a impunidade não continue provocando vítimas inocentes...

Proclamamos mais uma vez nossa convicção de que a solução desses conflitos só será encontrada por uma imediata e eficaz reforma agrária, acompanhada de adequada política agrícola, cujo adiamento a nação não mais tolera.”

“Nota sobre o massacre de Eldorado dos Carajás, Estado do Pará.”
Emitida durante a 34ª Assembléia Geral da CNBB,
realizada em Itaici/SP, de 17 a 26 de abril.




Da Comissão Pastoral da Terra

Governos estadual e federal
são responsáveis.


“A Comissão Pastoral da Terra (CPT) repudia e condena mais esse massacre praticado contra os trabalhadores rurais sem terra e responsabiliza diretamente o governador Almir Gabriel e o comando da Polícia Militar pelos crimes cometidos em Eldorado dos Carajás. Anteriormente, o governo do Pará já havia admitido não ter controle sobre a Polícia Militar, que naquele Estado se constitui em um poder paralelo em conluio com os fazendeiros.

A CPT entende que o governo federal também é responsável pelo massacre, porque criou expectativas não realizadas em relação à reforma agrária: reduziu drasticamente os recursos destinados ao assentamento dos sem-terra, mantém no ministério da Agricultura José Eduardo Vieira, que é radicalmente contra a reforma agrária, e sucateou o Incra.”

“Basta de chacinas!”. Nota assinada pelo secretário-executivo da CPT, Írio Luiz Conti.
Em tempo: José Eduardo Vieira pediu demissão do cargo de ministro da Agricultura
logo após o massacre.




Do bispo Luiz Demétrio Valentini

Superar resistências
contra a reforma agrária.


“Por respeito aos mortos de Eldorado dos Carajás, vamos superar as resistências contra a reforma agrária! Que se faça logo o assentamento de todos os acampados. Que se deixe de lado a violência. Que, neste país de tanta miséria, se envergonhem os que gozam de privilégios escandalosos. Que termine a impunidade, que incentiva novos crimes. E que todos colaboremos para a construção de um Brasil justo e fraterno. Para que, de fato, a Justiça e a Paz se abracem verdadeiramente.”


“Homilia de dom Luiz Demétrio Valentini na missa de sétimo dia
pelos mortos de Eldorado dos Carajás”, na 34ª Assembléia Geral.
Luiz Demétrio, bispo de Jales/SP, é responsável pelas pastorais sociais da CNBB.
Participou do enterro dos sem-terra como representante dos bispos do Brasil,
na companhia do bispo José Vieira de Lima, de Marabá/PA,
a diocese onde se deu a chacina.




Deus e o diabo
na terra do latifúndio

Frei Betto

Nos primórdios da Criação, disse o Senhor aos anjos: “Esta terra será batizada Brasil”. E deu ao imenso território um nome ecológico, extraído de árvore perfumada. “Será uma terra sem males. Nela não haverá terremotos ou vulcões, desertos ou furacões, neve ou geleiras. Todo o solo será fértil e seus frutos, abundantes.”

Bilhões de anos mais tarde, as caravelas de Cabral aportaram no litoral do Brasil. E o escrevinhador de bordo, Pero Vaz Caminha, confirmou a promessa divina: “Aqui, em se plantando, dá”.

Mal sabia ele que, ao criar Deus o mar, defronte o diabo abrira um bar. E as terras do Brasil foram retalhadas pela única reforma agrária havida em toda a história do país: sua divisão em capitanias hereditárias.

Herdeiro das capitanias, o latifúndio massacrou índios, importou escravos, expulsou posseiros e impôs, sobre 600 milhões de hectares, o privilégio da propriedade de uns poucos sobre o direito à vida de milhões.

Deus, no entanto, não passara escritura de latifúndio. Criara a terra para todos. Desta consciência nasceu a indignação e, dela, a reação. Expulsos da terra, os agricultores se recusaram a engrossar o cinturão de favelas que cerca as cidades. Postaram-se em acampamentos, promoveram ocupações, plantaram assentamentos.

O diabo viu crescer seus chifres. Tornou-se grileiro, corrompeu juízes, sonegou impostos, elegeu deputados, arrancou subvenções, armou pistoleiros, jogou policiais contra os sem-terra, os sem-teto, os sem-liberdade.

Então, a terra chamada Brasil tornou-se Santa Cruz. De tantas cruzes cravadas em seu corpo esplêndido: Palmares, Vila Rica, Canudos, Carandiru, Corumbiara, Eldorado dos Carajás...

Terra onde se enterra quem quer terra. Vale de lágrimas para a maioria, montanha paradisíaca de prosperidade para os latifundiários e seus sócios.

Do alto de suas riquezas, eles contemplam o panorama pelo monóculo da globalização. Descobrem, aterrorizados, que vivem numa ilha de opulência cercada de sangue por todos os lados.

Ao longe, um pequeno bote navega em sua direção. Gravado em seu casco, um nome: Justiça.


Frei Betto é escritor, autor de Cotidiano & Mistério,
que a editora Olho D'Água fez chegar em maio às livrarias.


MASSACRE SEM ARRANHÃO


Como era de se esperar, passadas as emoções dos primeiros dias, o massacre dos sem-terra no Pará vai sendo “normalizado” pelos comandantes
da política e economia nacional.

Sim, foi tudo muito horrível – eles dizem. – Mas a culpa não foi só dos policiais. Com bom senso de ambos os lados, teria dado para resolver o problema
sem maiores traumas... Etc., etc., etc.

Resumindo: o governo, mais uma vez, é quem está certo, e tudo funcionaria às mil maravilhas
se todos obedecessem.

Ah, você também concorda?
Então, preparemo-nos para o próximo massacre!

O importante é que ninguém venha à televisão com a conversa de que essas coisas arranham a imagem do Brasil lá fora, uma imagem tão pacientemente trabalhada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em suas numerosas viagens ao exterior.

Não entendo uma coisa: que imagem é essa que poderia ser arranhada? Alguma vez o presidente disse lá fora que a questão da reforma agrária já tinha sido resolvida no Brasil? Que os lavradores tinham terra e que o povo em geral, agora, tinha trabalho, salário, comida, educação? Que os crimes seriam punidos? Ou que a polícia, de ora em diante, se colocaria do lado da população?

As informações são outras. O que o presidente faz lá fora é convidar os empresários a investir no Brasil, com a garantia de lucros certos, mais do que em outros países do mundo, e, inclusive, com a defesa das leis
e das forças de segurança.

Aliás, o governador do Pará, do mesmo partido do presidente, mostrou que aprendeu muito bem essa lição quando autorizou a operação policial que provocou a matança dos sem-terra. Afinal de contas,
uma estrada é uma estrada,
e o fluxo do capital não pode
ser interrompido!

Também entenderam muito bem a lição os ferozes policiais, cãos de guarda do capital. E, mais que todos, o ex-ministro banqueiro da Agricultura, que, ao deixar o cargo, declarou que os próprios sem-terra
eram culpados pela chacina.


PODEM FICAR TRANQÜILOS!
A IMAGEM OFICIAL DO BRASIL
NO EXTERIOR CONTINUA INTACTA,
SEM ARRANHÕES!


Veja mais sobre o Massacre do Pará