Ceará

Castanhas amargas

O trabalho das mulheres na indústria de beneficiamento da castanha de caju, o principal produto de exportação cearense. Histórias de medo e revolta.


Elizeu de Souza


Ela dedicou dezessete dos seus 58 anos ao beneficiamento da castanha de caju. Viúva e com os sete filhos já casados, trabalha numa fábrica onde sofre perseguição por pertencer ao Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias de Doces e Conservas do Ceará (Sindicast), constituído em sua maioria por castanheiras. Pediu para omitir o seu nome e o da fábrica. Medo de represálias. A maioria das castanheiras tem medo, muito medo de falar.

Veio do interior do Estado, como muitas do ramo. O grau de escolaridade é quase nenhum, como quase 90% das companheiras, que não chegaram à quarta série do primeiro grau. Profissão ingrata, carrega a pecha de indesejável. O cheiro da castanha fica grudado na pele. As queimaduras nas mãos são uma constante ameaça. E as operárias, em troca de um salário de nada, sofrem muitas vezes o diabo.


PROIBIDO RECLAMAR – Luzanira de Oliveira Sousa, 38 anos, não tem papas na língua. Ela conta o que aconteceu quando o marido, Francisco das Chagas de Sousa, de 44 anos, começou a reclamar da falta de equipamentos de proteção para ele e os colegas, na Companhia Industrial de Produtos Alimentícios (Cipa), em Fortaleza. "Tiraram ele da seção, onde tinha contato com os funcionários e o jogaram lá na garagem."

Hoje, com o salário rebaixado, Francisco trabalha no estacionamento de bicicletas, fora da fábrica. Com duas suspensões, foi ameaçado de ser posto para fora. Já está avisado: enquanto estiver em contato com o sindicato, "não vai ter nada dentro da firma".

Diretora sindical e operária da Iracema Indústria de Caju Ltda. – a maior do ramo, com três fábricas em Fortaleza e 3.403 funcionários –, Luzanira se sente discriminada. Mostra as cicatrizes nos braços, deixadas por uma queimadura com soda cáustica. "Peguei várias queimaduras, e eles não queriam que eu registrasse isso aí como acidente de trabalho. Fizeram a doutora da fábrica dizer que era um novo produto de limpeza que eu estava usando em casa, e eu, com dores de cabeça e febre."

Luzanira denuncia também que a fábrica não aceita mais atestados fornecidos por médicos que não sejam da empresa. "Hoje eu estive até conversando sobre isso lá na fábrica, e estou com a impressão maior do mundo que amanhã vou estar suspensa."


HUMILHAÇÃO – Maria da Conceição Viana, 30 anos, hoje empregada doméstica, pediu as contas na fábrica Fontenele, localizada no Jangurussu, periferia de Fortaleza. Já faz tempo, mas ela ainda tem medo de perseguição. Deixou o emprego porque estava grávida e era "constantemente humilhada".

Humilhação é a maior dor experimentada pelas operárias da castanha. Elas esquecem momentaneamente outras mazelas para se queixar de agressões verbais no setor de trabalho. "Eles ficam só massacrando a pessoa, até ela pedir as contas", desabafa Lucineide B. da Silva, 24 anos, casada, uma filha, enquanto aguarda a revisão de suas contas pelo Sindicast, em meio a um grupo de operários recém-demitidos.

Na fila dos novos desempregados encontra-se também José Silva dos Santos, 40 anos, casado, quatro filhos, que trabalhou quatro anos no cozimento de castanhas. Deixou de comparecer ao trabalho para ser mandado embora, porque não agüentava mais a dura jornada e o mísero salário, de 182 reais. As castanheiras, que constituem a quase totalidade da categoria, ganham pouco mais de 120 reais.

José vai somar-se ao contigente de desempregados da capital cearense, que, de acordo com dados oficiais, passa de 80 mil pessoas. Fátima Bezerra, secretária do Sindicast, informa que 2.410 trabalhadores da indústria da castanha foram demitidos no ano passado. O alto índice de desemprego e a constante vinda de mulheres do interior para a capital garantem aos patrões mão-de-obra barata e de sobra.


GRITO DE REVOLTA – "Vocês são umas morta a fome, umas vagabundas!" Isso não era tudo o que o gerente da Irmãos Fontenele S/A Comércio e Indústria Agrícola gritava para as operárias – revela uma testemunha, que também pediu para não ser identificada. Dênis Nunes, 32 anos, um dos diretores do Sindicast, confirma. E acrescenta que o gerente "chegava a bater em mulheres grávidas".

Nos primeiros dias de junho de 95, o clima dentro da fábrica estava pesado, e não era só por causa das agressões do gerente. Beber água ou ir ao banheiro, só com autorização dos fiscais. Para receber o magro salário, as operárias tinham de ficar noite a dentro numa fila que reunia mais de mil pessoas. E o pior é que o pagamento era em cheque – relata a castanheira e diretora sindical Antônia Borges.

Na porta da fábrica, o Sindicast convocava as castanheiras a lutar pelos seus direitos. No interior, o gerente, espezinhando, gritando palavrões, ameaçando quem aderisse ao movimento.

Foi a gota d'água. De uma só vez, no dia 7 de junho, as mais de 1.300 operárias insurgiram-se contra o gerente Ricardo. Quase dava linchamento. Pararam as máquinas. Parou tudo. Por um dia, as castanheiras da Fontenele mostraram aos patrões que, juntas, também têm poder.


MUITO A CONQUISTAR – A greve deu novo impulso à categoria. A creche, principal reivindicação, não saiu, mas hoje a conversa já é outra. O salário é pago durante o expediente de trabalho. Os fiscais foram submetidos a cursos de relações humanas. Toda a categoria teve o pequeno ganho de produtividade garantido – 4% sobre o salário mínimo. Melhoraram também as condições de higiene da fábrica.

Mas falta ainda muito. Salário melhor, vale-transporte para quem tem que pegar condução, vestuário mais amplo e tratamento respeitoso para com as operárias ainda são sonhos. É o que revelam as queixas acanhadas da maioria das castanheiras.

Tem mais. Se na Fontenele houve melhorias, em muitas das mais de trinta fábricas em funcionamento no Estado do Ceará a situação ainda é de desespero e amargura. Operárias são tratadas aos gritos, atestado médico só o da empresa, três suspensões é sinônimo de desemprego, vestuários e banheiros requerem mais higiene..., de vez em quando uma operária enlouquece. Segundo o Sindicast, de 6 a 10% das castanheiras têm problemas psicológicos, provocados em grande parte por má alimentação e maus-tratos no setor de trabalho.

"Se não fosse o nosso sindicato, acho que dentro da fábrica já tinha trabalhador com corrente no pé, sem direito à alimentação, à saúde, nem nada...", argumenta Luzanira.


Ruindade tipo exportação

A indústria de beneficiamento de castanha de caju é a primeira no ranking de exportações do Estado do Ceará, o maior produtor, que divide com Piauí e Rio Grande do Norte a concentração de toda a produção nacional. Em 95, a safra cearense apresentou um dos melhores resultados dos últimos anos, com a exportação de quase 29 mil toneladas, totalizando cerca de 130 milhões de reais. Mas não houve qualquer aumento no ganho das operárias do setor.

Os empresários pagam no máximo 45 centavos de real pelo quilo de castanha em estado bruto e precisam de 5 quilos para produzir um de amêndoa, como declaram ao Ministério da Indústria e Comércio. No final do processo, pagando salários de menos de um mínimo e meio, conseguem exportar o quilo da amêndoa a 4,59 reais, aproximadamente. Isso sem levar em conta que várias empresas têm o seu próprio cultivo, o que barateia em muito os custos de produção.

As vantagens são muitas, mas o operariado, força motriz, ainda é tratado de forma desumana em muitas empresas, denuncia Luciano Ferreira, 27 anos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias de Doces e Conservas do Ceará (Sindicast).

Fundado em 1988, hoje o Sindicast presta serviços a mais de 20 mil operários da indústria da castanha no Estado do Ceará. A maioria, porém, só entra em contato com o sindicato na hora de conferir as contas, em caso de demissão, ou quando o sindicato se faz presente na porta da fábrica. Os poucos operários sindicalizados e atuantes têm sofrido retaliação por parte dos patrões.

Maria Aparecida de Mesquita, 36 anos, é uma dessas forças de resistência em favor da categoria. Delegada sindical, passou quinze dias a serviço do sindicato e retornou ao trabalho na Procaju Industrial Ltda. "Quando voltei, eles já me conheciam e começaram a me perseguir", ela conta. Chamada várias vezes à gerência, foi proposto a ela que escolhesse entre cuidar do banheiro e do vestuário, varrer o pátio ou lavar monoblocos (embalagens plásticas), fora da linha de produção. Aparecida recusou. Disse que não aceitava ser pressionada.

Depois de muita discussão, o caso foi parar na Delegacia Regional do Trabalho, onde ficou resolvido que ela trabalharia no setor de corte, com outras quinze mulheres. Recentemente, acusada de incentivar a paralisação de um grupo de trabalhadores, foi despedida por justa causa. O patrão disse que ela fosse procurar os direitos na Justiça.