CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROJETO DE LEI N.º 266/96 DO SENADOR JOSÉ SERRA


"Estabelece diretrizes para o exercício do poder concedente e para o interrelacionamento entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios em matéria de serviços públicos de saneamento, e dá outras providências".
A PROPOSITURA COLOCA EM RISCO A TITULARIDADE E AUTONOMIA DOS MUNICÍPIOS SOBRE OS SERVIÇOS DE SANEAMENTO

A Federação Nacional dos Urbanitários - FNU/CUT, entidade que congrega 62 sindicatos e representa 350.000 trabalhadores dos setores de saneamento , meio ambiente, de energia elétrica, energia nuclear e gás canalizado, após discussões com a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento - ASSEMAE e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental - ABES, vem respeitosamente apresentar a Vossa Excelência, considerações sobre o Projeto de Lei 266/96, de autoria do nobre Senador José Serra, que "estabelece diretrizes para o exercício do poder concedente e para o inter-relacionamento entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios em matéria de serviços públicos de saneamento".
É no Município que as pessoas vivem, é o município que resolve e delibera as políticas locais de saúde, saneamento, meio ambiente, etc. A Fundação Nacional de Saúde juntamente com a ASSEMAE, produziu um "diagnóstico sobre a situação dos serviços no atendimento à população local". O diagnóstico apresenta dados que confirmam a performance da gestão descentralizada dos serviços de saneamento. Em média os serviços municipais investem 30% de suas receitas em novos investimentos que beneficiam as populações locais. Além disso, 65% dos municípios que operam os serviços de forma descentralizada, atendem mais de 90% da população com redes de água, dentro portanto, dos padrões estabelecidos pela ONU em 1980, década da água, onde 90% da população urbana deveria ser atendida com redes de água e 70% deveria ter atendimento com coleta de esgoto.
o Projeto de Lei 266/96, além de ser extremamente autoritário, ignorando o Município como ente federado, princípio este já devidamente reconhecido pela Constituição Federal, está eivado de inconstitucionalidades.
Entre as justificativas apresentadas na propositura, o Senador José Serra destaca "indefinição constitucional sobre a titularidade dos serviços de saneamento" e a "existência de um vácuo legislativo no que se refere à integração e complementaridade das ações a serem desempenhadas em abastecimento de água, esgotamento sanitário e limpeza urbana".
Em decorrência destes pressupostos, o artigo 1.º do Projeto de Lei estabelece novos conceitos sobre o poder concedente, definindo quem é o "titular dos serviços de saneamento". Segundo O Projeto, a titularidade do poder concedente dos serviços de saneamento será transferida para os Estados quando abrangerem "a realização de serviços que atendam interesses comuns a dois Municípios integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões".
O artigo 30 da Carta Magna dispõe indubitavelmente que para a prestação dos serviços públicos cujo peculiar interesse é de natureza local, a titularidade pertence ao Município. Esse princípio foi resguardado até mesmo durante o regime militar, onde o Estado para explorar os serviços de saneamento teve que obter a outorga dos serviços municipais através de contratos de concessões firmados com o poder concedente, ou seja o Município.
O Projeto de lei prevê, que a titularidade pertença aos municípios, somente quando a realização envolver serviços exclusivamente de interesse local, entendidos como tais os sistemas isolados de saneamento, cujas ações e efeitos se limitem exclusivamente ao território de um Município, sem afetar interesses de outros Municípios. Exemplificando, na região metropolitana de São Paulo, cujo sistema integrado de abastecimento, ou seja, captação de água bruta e tratamento, atendem aos Municípios do ABCD, a titularidade dos serviços de saneamento deixará de ser dos Municípios de Santo André, São Caetano, Diadema, Mauá e passará para o Estado.
A titularidade do poder concedente não está vinculada à metropolização e muito menos a interesses comuns de dois ou mais municípios. Esta se define em razão do peculiar interesse local dos serviços públicos a serem prestados à população. A competência e a responsabilidade sobre a prestação dos serviços de saneamento são do Município, atribuições estas que se caracterizam pelo princípio da indelegabilidade.
É fato que o artigo 23, inciso IX da Constituição Federal estabelece que é de competência da União, Estados e Municípios "promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (grifo nosso)", mas daí a cassar a titularidade do município sobre os serviços locais de saneamento representa uma interferência flagrantemente inconstitucional nas prerrogativas dos Municípios.
Não bastando as violações ao texto constitucional já assinaladas, o § 3.º artigo 1.º do Projeto de Lei, estabelece que "nos casos em que caiba ao Estado exercer o poder concedente, a legislação pertinente deverá prever as formas e os critérios para a participação dos Municípios na definição de diretrizes e na gestão dos respectivos sistemas".
Ora, a propositura, coloca claramente o Município, em segundo plano. Qual a legislação pertinente que refere-se o legislador? Ao Município e somente a ele compete legislar sobre assuntos de interesse local, conforme determina o inciso I, do artigo 30, da Constituição Federal. Pretende o legislador, através da lei ordinária, modificar atribuições definidas claramente na Constituição de 1988, o qual não podemos concordar e nem a Justiça, com certeza, concordará.
Salientamos que da forma como a propositura se encontra, até mesmo a autonomia dos Municípios para conceder os serviços de saneamento fica totalmente comprometida, pois se o Estado passar a ser o poder concedente somente a ele caberá licitar as concessões dos serviços.
Portanto, o artigo 1.º, seus respectivos incisos e parágrafos, se revestem de total inconstitucionalidade.
Outra questão importante que nos cabe destacar, é relativa à titularidade supletiva, ou seja, transitória, prevista nos §§ 3.º e 4.º, do artigo 4.º, do referido Projeto de Lei, para o caso de impossibilidade de prestação do serviço por parte do Município. Ora se há titularidade esta não pode ser transitória. A quem caberá ou como será definida a impossibilidade do Município em que prestar os referidos serviços? Após os dois anos previstos para a titularidade transitória, o Estado se retirará do Município impondo quais condições? O Projeto de Lei não esclarece.
O § 3.º do artigo 5.º do projeto estabelece que somente nos casos de comprovada impossibilidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios destinarem recursos para os serviços de saneamento, e obedecida uma ordem de prioridade, haverá a participação financeira da União. O Projeto não indica quem deverá comprovar a impossibilidade financeira e tampouco aponta os critérios para estabelecer a ordem de prioridade para o recebimento de recursos da União. Vale lembrar que os recursos do Orçamento da União propostos pelo governo Federal para a área de saneamento estão longe de serem orientados por critérios técnicos.
A aplicação desta disposição, no limite, representa também um cerceamento nas prerrogativas dos parlamentares apresentarem emendas ao Orçamento da União, na medida em que o processo legislativo estará limitado por dispositivos não explicitados que definirão os Estados e Municípios que poderão receber recursos da União para investimentos no setor de saneamento.
Já o artigo 6.º do referido Projeto de Lei, estabelece que a União formulará a Política Nacional de Saneamento, sem entretanto submeter, pelo menos as diretrizes desta Política à aprovação em Lei.
Esta exclusão do Poder Legislativo na definição das diretrizes da política de saneamento torna-se extremamente grave quando se observa os artigos 7.º e 8.º do Projeto de Lei, que obrigam os Estados e Municípios a formularem suas políticas de saneamento em consonância com as Política Nacional de Saneamento, condição esta imprescindível para a liberação de recursos financeiros dos Estados e da União.
Significa que aqueles Municípios que não adequarem suas políticas locais às estaduais e nacional, sofrerão bloqueio dos repasses de recursos financeiros dos Estados e da União, podendo atingir até mesmo os Fundos de Participação Estaduais e Municipais.
Apesar das discordâncias dos aspectos centrais do Projeto de Lei 266/96 reconhecemos como positivos o parágrafo único do artigo 2.º, que estabelece obrigatoriedade de autorização legislativa para todas as concessões de serviços públicos de saneamento, procedidas ou não de obra pública, assim como os princípios fundamentais elencados no artigo 3.º de orientação de inter-relacionamento da União, Estados e Municípios para a promoção de ações de saneamento.
O eminente autor deste Projeto de Lei, na parte reservada à justificação de sua proposição legislativa, coloca de maneira explícita que o arcabouço institucional proposto destina-se a tornar a execução dos serviços de saneamento atrativa para a iniciativa privada. De acordo com nosso entendimento, encontra-se aí a razão principal que motiva a proposta do autor do projeto. A fim de facilitar as condições para a concessão em bloco do setor para a iniciativa privada, faz-se necessário cassar a titularidade do poder concedente dos Municípios. Dessa maneira, eliminaria-se a descentralização dos serviços de saneamento que diminui e afasta o interesse do setor privado, mediante a transferência dos ativos e do patrimônio municipal para as empresas estaduais, sem previsão de qualquer medida de indenização ou compensação financeira para os Municípios.
O que se coloca como fundamental neste momento é a formulação de uma política nacional de saneamento democrática a partir das contribuições da União, Estados e Municípios que necessariamente passe pelas discussões do Congresso Nacional e não sofra vetos do Presidente da República, como infelizmente ocorreu com o Projeto de Lei 199/89.
O presente documento tem a finalidade de contribuir para a discussão do Projeto de Lei 266/96 e alertar os senhores parlamentares para o fato que o referido Projeto não trará qualquer benefício para as populações quanto à melhoria dos serviços de saneamento, pelo contrário, poderá, como já argumentamos acima, causar sérios problemas e prejuízos às municipalidades.
 
Brasília, 28 de abril de 1997.
 

 

 

Abelardo de Oliveira Filho
Secretário de Saneamento da
Federação Nacional dos Urbanitários

Dieter Wartchow
Presidente Nacional da ASSEMAE

 

 

Clóvis Francisco do Nascimento Filho
Presidente da ABES