Jornal mensal da diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti-RJ. |
Editorial
Vítimas e cúmplices
- A violência entrou definitivamente no cotidiano de nossas vidas: às vezes pela porta da frente, ceifando pessoas que faziam parte do nosso convívio, ou pela porta dos fundos, não nos atacando diretamente mas injetando em nossas veias o vírus do medo, da desconfiança, da impotência e da insegurança.
- Crimes como o de Ana Carolina, em Laranjeiras, nos emocionam profundamente. No momento gritamos, junto com os outros, no embalo da comoção. Mas depois, quando a razão volta a dirigir as nossas ações, nós também voltamos às nossas tarefas diárias, infelizmente todas elas regadas também a indiferença.
- Nas grandes metrópoles do mundo, aprende-se a conviver com a violência. Quando seus estilhaços nos atingem, temos uma reação de revolta momentânea, mas nada que vare o dia seguinte. Assim, ela pode continuar tranqüila o seu curso.
- O que assusta não é que os crimes aconteçam - sempre aconteceram - nem que estejam aumentando - tudo, hoje, tem dimensões maiores que no passado -. O problema é que os crimes ocorrem numa sociedade inerte, já anestesiada, sem reação, que em última instância parece curtir o medo e aceitar sem qualquer trauma curvar-se ao crime e sua lógica perversa.
- Um bispo da África do Norte, dom Piroird, de Hipona, terra de Santo Agostinho, publicou recentemente um pequeno texto no qual analisa a situação de seu país, a Argélia, também refém de uma escalada de violência sem precedentes. Ele resolveu tomar posição porque descobriu que a violência sempre nos faz, ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices. Resolveu olhá-la de frente, analisá-la por dentro, para ver onde ela deita suas raízes, como ela se alimenta, onde se reproduz. Diz que é esta a chave para poder ter contra ela uma ação eficaz.
- Sigo a reflexão do bispo.
- Há no mundo de hoje 4 grandes responsáveis pela violência:
- O liberalismo econômico. É o ar que se respira. Hoje o mundo gira em torno dele, sem questionamentos e nem alternativas. Ele ensina que na vida o dinheiro vem em primeiro lugar, que as mais importantes leis a serem cumpridas são as de mercado e que a pessoa humana tem que se ajeitar no mundo organizado pela economia. Onde o liberalismo foi implantado, diz o bispo, a sociedade sempre conheceu a sua degradação mais profunda. Os pobres ficaram cada vez mais pobres e mesquinhos e os ricos cada vez mais fechados e insensíveis. A vida se mercantilizou e com isso tudo ficou banal.
- A corrupção. É uma nova forma de viver ou se ajeitar na sociedade. Procura-a desesperadamente o pequeno que não tem outro meio de chegar ao dia seguinte, procura-a o funcionário público que precisa arredondar seus vencimentos, o intelectual, o empresário, o político. Eleita a regra de comportamento, a corrupção é a aparente saída dos problemas mas o micróbio que contamina as consciências e as torna incapazes de pensar num bem que seja para todos.
- A desconfiança. Quem vive num ambiente hostil aprende desde cedo a não confiar em ninguém. Todo mundo é suspeito porque todo mundo é sujo: o vizinho, o desconhecido, até o amigo sempre tem um lado escondido. A qualquer momento a vítima pode ser você. A desconfiança leva a esconder a verdade e a alimentar-se com a mentira. Ora, a mentira é a mãe da violência.
- Por fim, os traumas do passado. É o mundo visto a partir das vítimas. Quem sofreu em sua carne a violência e se familiarizou com a brutalidade, dificilmente consegue alimentar dentro de si sentimentos de sadia convivência com os demais. Para ele o mundo virou uma selva onde até a justiça sempre tem um certo gosto de vingança.
- Quatro elementos. Percebe-se que poderiam ser mais porque a violência não nasce do acaso e nem pode ser combatida com retórica. Ela tem raízes profundas, que descem até o coração das pessoas e da sociedade. É lá, diz o sábio bispo africano, que é preciso intervir se se quer que a violência dê vez à paz e à fraternidade.
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