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Quilombo dos Kalungas (Goiás)

O modo kalunga de ser


No nordeste de Goiás, numa área de mais de 230 mil hectares, vivem os Kalunga, a maior comunidade de remanescentes de quilombos do Brasil.

Cinara Barbosa – Imagens da Terra


Nem bem clareou o dia, e Almerindo dos Santos, 40 anos, já está de pé. Apanha alguns objetos, dá um gole no café e parte, de viola em punho. Pela frente, tem uma tarefa: acompanhar a cunhada durante treze dias de giro da folia. Coisa de promessa feita por ela a Nossa Senhora das Neves para olhar por sua saúde. Antes de montar o cavalo, preparado na véspera, ainda dá tempo de ver alguns cuidados que a sua terra merece e de saber que muito trabalho o espera na volta.

Assim como Almerindo, aproximadamente 5 mil Kalunga, espalhados numa área equivalente à da cidade de São Paulo, no nordeste de Goiás, têm um apreço dividido entre o cultivo da terra e a manutenção das tradições. Em agosto, assim que termina a folia, ocorre uma das mais significativas festividades de santos dessa que é a maior e mais isolada comunidade de remanescentes de quilombos do Brasil.


Povo em festa


Durante a folia não pode existir cansaço. Afinal, são treze dias girando pela região, passando de casa em casa, cantando, dançando e levando as bençãos de Nossa Senhora das Neves para cada morador. Quando anoitece, já na casa escolhida para o pouso, enquanto uns descansam, outros optam por continuar a diversão nas cantorias que animam a suça e a curraleira (danças típicas locais). E nem bem acontece o "arremate" – quando a festa termina, no dia 5 de agosto – , têm início os preparativos para a grande comemoração em louvor de Nossa Senhora D'Abadia.

Então, o que ocorre é uma verdadeira migração. Moradores de todas as localidades mudam para a 'capela' (chamada assim por abrigar uma das duas únicas igrejas da região). Ali, reformam ou constroem casas de palha temporárias, para onde transferem parte dos utensílios domésticos. O local fica parecendo uma grande aldeia – que bem poderia ser africana – e não pára um só instante de receber gente. A ocasião serve para o reencontro e a confraternização das famílias. E também para manter vivos a cultura e os costumes.

Durante a festa comparecem à região – conhecida como Vão de Almas – pelo menos 2 mil pessoas, entre moradores locais e de cidades vizinhas, como Terezina, Monte Alegre e Cavalcante. A estrutura montada é surpreendente, pelo empenho que exige. Nos Kalunga não há energia elétrica, água encanada ou caminhos facilitados. Quem deixa o conforto da cidade para ir até lá, tem um encontro marcado com a natureza, ofertando-se em beleza e também sacrifícios.

A coragem maior fica por conta dos comerciantes, com os seus refrigerantes, bebidas e barras de gelo transportados serra acima, em lombo de burro ou nas costas. Ou como se possa, com sorte, de barco, através do rio Paranã, pelo menos até certa altura do caminho.

Os próprios Kalunga ajudam a carregar os artigos da festa. Com isso, garantem uns trocados para gastar ali mesmo, nas barracas de forró. A música não pára. Seja em alguma sanfona ou viola perdida, seja no som mecânico, providenciado para funcionar à bateria. Tudo acompanhado de cachaça e muita carne. Nos três dias que antecederam o festejo de Nossa Senhora D'Abadia – 15 de agosto – foram abatidos cerca de vinte bois.


Rainha e imperador


Este ano, as filas não foram só para a carne. Além de vacinação de crianças e adultos, também estavam sendo providenciados documentos de identificação, carteira de trabalho, título de eleitor e certidão de nascimento.

É também essa a única vez em que o padre aparece para realizar casamentos e batizados. Mas, desta vez, só ocorreu desistência. Os dois únicos casais previstos desmancharam o noivado na véspera. Em compensação foram batizadas sessenta crianças.

No dia 15 acontece a coroação da rainha e do imperador. Eles saem em cortejo por toda a 'capela', seguidos pela população. Depois, recepcionam a todos, servindo bebidas, biscoitos e bolos. A expectativa é para saber quem será o responsável pela festa do próximo ano.

Em sua experiência cotidiana, o povo Kalunga demonstra ser bem mais um amálgama de pele negra africana, costumes indígenas e tradições religiosas do branco do que pura herança afro. É por isso que festas como a do Divino e a da folia são encontradas em suas manifestações culturais.

As pesquisas não sabem dizer com precisão a origem dessas comemorações. Há controvérsias. Poderiam ser uma recriação de um ritual religioso branco, incorporado pelos negros já aqui no Brasil. Ou poderiam ter sido trazidas da África, numa representação das festas de coroação dos reis do Congo, por exemplo.


Modo próprio de ser


Foi em 1722 – quando Bartolomeu Bueno, o Anhangüera, e João da Silva Ortiz fecharam o ciclo bandeirante, com a ocupação das terras centrais – que surgiu o Estado de Goiás, em pleno ciclo do ouro e da garimpagem.

Utilizados como mão-de-obra escrava, os negros andavam cansados da submissão e dos castigos sofridos na exploração das "Minas dos Goyazes". Muitos fugiram, escondendo-se na mata, entre serras, num local de difícil acesso. Fundaram quilombos no município de Cavalcante, na região conhecida como Morro do Chapéu (hoje município de Monte Alegre), formando assim o povo Kalunga.

A comunidade vive hoje numa área de 237 mil hectares – segundo estimativa do Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás, o Idago –, a 375 quilômetros de Brasília. São cinco os núcleos, abrigando cerca de cinqüenta grupos de base familiar: Vão de Almas, Vão do Moleque, Ribeirão dos Bois, Contenda e Kalunga.

O fato de os Kalunga terem permanecido distantes dos centros urbanos, num lugar inóspito e de difícil aproximação, acabou fazendo deles um dos poucos exemplos de remanescentes negros que quase não sofreram influências externas em seu modo de vida.

No dia-a-dia, o povo kalunga dedica-se à plantação de mandioca, arroz, fumo, milho e, às vezes, feijão. Cria gado e aves, pratica a caça e a pesca. Mas a fabricação de farinha – que envolve toda a família, numa espécie de ritual –, é a atividade produtiva mais importante, base principal do seu sustento.

Depois de esperado o tempo adequado para a raiz poder ser arrancada, a mandioca é descascada, ralada no pau de angico e colocada no piti (saco de palha) para escorrer a água. "Ainda molhada, deve ser peneirada no quibano e colocada para torrar. Mas, antes, tem que esfregar folha de quiabeiro no forno, que é pro barro não soltar", conta Demertino da Silva, 62 anos.


Terras quilombolas


A Constituição de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, garante aos remanescentes dos quilombos o direito de propriedade das terras que ocupam. Atualmente, dois projetos de regulamentação desse artigo tramitam no Congresso Nacional (veja outra matéria).

Responsável pelas questões que envolvem a comunidade negra, a Fundação Palmares, que é ligada ao ministério da Cultura, considera que não basta o tombamento histórico ou o reconhecimentro e titulação individual das famílias, feitos pelo Idago. Para Olympio Serra, assessor da Presidência, deve-se encontrar um modo de fazer a divisão que respeite a realidade dos próprios remanescentes.

Além do problema da demarcação das suas terras, os Kalunga também estão preocupados com a construção de uma estrada que facilite o acesso à região. A discussão maior é sobre onde se vai abrir a estrada, explica o deputado kalunga Zé Dias, 52 anos, eleito pelo PMDB e terminando o seu segundo mandato. "Há três possibilidades, mas até agora não houve acordo, porque o caminho escolhido não diminui a distância para todos." Para ele, não há dúvida de que "a vantagem de tranqüilidade do local irá acabar, mas a estrada também trará muitos benefícios".


Isolamento e liberdade


A antropóloga Mari Baiocchi chegou aos Kalunga em 1982 e foi quem primeiro fez um levantamento da vida da comunidade, inclusive alertando para o direito à posse da terra. Para ela, é fundamental respeitar em tudo a opinião da comunidade. "Tudo só pode ser feito a partir do que eles acham. Alguns me perguntaram se não seria melhor colocar água na porta, construir mais escolas e postos de saúde."

Para entender os Kalunga – alerta –, é preciso avistá-los como uma comunidade que construiu a sua cultura ao longo de quase trezentos anos de isolamento. Por causa dessas condições, eles não podem apresentar a mesma identidade do descendente de negros africanos do asfalto, em qualquer lugar do Brasil. "Eles não são negros.... Não como os queremos."

Na perspectiva do mundo moderno, os Kalunga assemelham-se a uma comunidade parada no tempo, um exemplo de atraso e necessidade de progresso. No entanto, é justamente esse suposto atraso a prova concreta do preço pago pelos descendentes daqueles que buscaram no isolamento o único meio de conquistar a própria liberdade.


Textos extraídos da Revista
SEM FRONTEIRAS
(N. 246 - nov. 96 - pág. 14)