Campanha da Fraternidade 97

Um mergulho nos porões
do Brasil


Um tema audacioso para a Quaresma deste ano, que tem início no dia 12 de fevereiro: "A fraternidade e os encarcerados".
"Os encarcerados são símbolo, resultado e agentes de uma sociedade carregada de 'prisões' e 'cadeias'."
Um olhar sobre o texto-base da Campanha da Fraternidade.


Dimas A. Künsch


Em visita a um preso do Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, o padre Luiz Roberto Teixeira viu uma cena difícil de esquecer. Ele conta:

- Observei que entrou uma senhora de seus 60 anos, simples, cabelo grisalho, rugas no rosto, andar calmo, meio curvada, semblante sereno, carregando uma sacola. Dirigiu-se ao banco onde estava sentado um jovem de uns 25 anos. Ele a acolheu com carinho, e ela, com gestos de amor fraterno.

Luiz Roberto ficou admirado. O tempo todo, aquela mãe demonstrando carinho, acolhimento, alegria. O olhar dela era de ternura, e o rapaz se sentia alegre. Na hora da despedida, um abraço. O preso que o sacerdote orionita visitava explicou:

- Sabe, padre, aquela senhora não é a mãe dele. Ela é a mãe do rapaz que ele matou. No dia do enterro, ela prometeu que o perdoava. E que, como sinal desse perdão, ela o acompanharia com muito amor e assistência enquanto ele estivesse na prisão.

"Quem fez o mal à sociedade ou às pessoas deve pagar pelo seu crime", dizem os bispos católicos do Brasil, no texto-base da Campanha da Fraternidade deste ano. Mas "o amor perdoa sempre e, mesmo diante de situações limite, mantém viva a utopia de uma sociedade reconciliada e fraterna". Porque "o que constrói a fraternidade é o perdão", embora não seja fácil "equacionar exatamente a misericórdia e o perdão, a justiça e o castigo".


Audácia e coragem


Se a Igreja católica no Brasil, ao escolher o tema da Campanha da Fraternidade 97, estava à procura de "um assunto relevante da convivência humana, que interpela a consciência das pessoas e exige conversão profunda e respostas corajosas da sociedade", achou. Os problemas dos encarcerados, e tudo quanto a eles está relacionado, representam "uma das mais graves feridas da nossa sociedade", de acordo com o texto-base.

São muitas as cadeias e prisões desta sociedade nossa, Brasil. Os bispos listam uma série: doença, miséria, pobreza, falta de esperança, deturpação da sexualidade, egoísmo, avareza, mentira, injustiça, corrupção, desrespeito pela vida, preconceitos étnicos e raciais. "Os encarcerados são símbolo, resultado e agentes de uma sociedade carregada de 'prisões' e 'cadeias'."

Na visão da hieraquia católica, é assim que a tragédia de dentro do cárcere se liga à tragédia das ruas e becos, campos e cidades do país. O perfil do sistema penitenciário brasileiro é assustador e funciona como espelho para uma sociedade "moralmente doente". E não é nem um pouco complicado descobrir quem leva a pior nisso tudo.

O capitão da polícia militar de São Paulo, Édson de Jesus Sardano, em depoimento à revista "Veja", mostra que entende bem do assunto. Suspeitos de pequenos delitos, pobres, feios, são literalmente escrachados, "sem dó nem piedade", pelos meios de comunicação, em "festivais de sensacionalismo", do tipo "Aqui Agora". Não é assim com alguém que é bem situado economicamente: no máximo, "o suposto ladrão vira atração do 'Fantástico'".

O capitão faz as contas: a soma de todos os prejuízos ao patrimônio causados pelos presos do Carandiru não chega "a 10% do montante evaporado em um único dos recentes escândalos financeiros". Os criminosos, nesse caso, têm casa e imagem respeitadas. "O Brasil continuará convivendo com esse duplo tratamento até que todos entendam que pobre não é bandido e riqueza não é atestado de idoneidade."


Sociedade contra o preso


Sobram preconceitos, idéias tortas, ódio e muitas vezes maldade, em todos os campos, contra presos e presas. Desprotegida, insegura, amedrontada e estimulada pelos artesãos dos "festivais de sensacionalismo" da mídia impressa e eletrônica, a população pobre costuma esquecer que é o alvo privilegiado da pancadaria policial e do terror que freqüenta os fétidos corredores e celas de delegacias, distritos policiais e cadeias.

Todos contra os presos e presas! "Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto" ("Como se houvesse uma 'predestinação' de algumas pessoas ao crime").

"Eles escolheram esse caminho" ("Como se os presidiários não fossem gente como a gente, e como se as oportunidades tivessem sido sempre iguais para todos").

"Se foram presos, é porque não prestam mesmo" ("No fundo, existe uma crença de que a ordem estabelecida no mundo atual é justa, e cada um tem a vida que merece").

"Vivem melhor do que merecem" ("Poucos de nós tivemos oportunidade de conhecer de perto uma prisão para verificar, de fato, como lá se vive").

A lista de irreverências é enorme, e não atingem só os presos e as presas. "Muitas dessas atitudes dirigem-se também aos meninos e às meninas de rua, drogados, prostituídos, desempregados, viciados de todo tipo, mendigos e aos pobres em geral, todos de certa forma vistos como culpados da situação em que se encontram."


Situação assustadora


Três são as finalidades da pena privativa de liberdade - a prisão -, de acordo com a lei: a punição pelo mal causado, a prevenção de novas infrações e a regeneração do condenado. Dessas três finalidades, "apenas o castigo é efetivo", diz o texto-base, após uma ampla análise da situação das prisões no Brasil. "Os condenados são duramente punidos, e os presos provisórios também, sendo que esses, não tendo pena a cumprir, presumem-se inocentes e como tais devem ser tratados."

O Censo Penitenciário Nacional, de 1994, feito pelo Ministério da Justiça, revelou a existência de 129.169 presos no país, ocupando uma rede de estabelecimentos que teria vagas para 54.954 pessoas. A média é de 2,15 presos por vaga.

Como preso e presa porém não é média, e sim gente de carne e osso, o drama da superlotação, em alguns casos, chega ao ponto de obrigar presidiários a se amarrar às grades para dormir à noite - os chamados "morcegos". Isso acontece na capital de São Paulo, o Estado onde se encontra mais de um terço da população encarcerada do país. Em novembro de 95, cada preso ocupava menos de 1 metro quadrado, sendo que a lei determina um mínimo de 6 metros quadrados.

Superlotação, falta de higiene e de assistência à saúde, impossibilidade quase total de contar com instrução escolar (87% dos presos não têm o primeiro grau completo) e trabalho, como determina a lei... Falta de assistência jurídica (85% dos presos não têm dinheiro para contratar advogado, o que "torna a pena privativa da liberdade uma espécie de castigo seletivo para os pobres"), morosidade da Justiça, torturas... "Tudo na prisão contribui para piorar, em vez de melhorar, a condição moral e humana das mulheres e homens presos. Podemos até nos surpreender quando alguns se reabilitam, apesar de terem passado pela prisão."


Mudanças urgentes


A Igreja sabe que vai ser acusada, mais uma vez, de "defender bandidos". Não é verdade. O verdadeiro criminoso deve pagar pelo crime praticado, o agressor merece ser corrigido - avisam os bispos -, mas dentro do princípio da lei, da justiça. É e continua sendo um ser humano. O objetivo maior a ser buscado é a regeneração, a volta ao convívio social. "Pensamos que toda pessoa é maior que a sua culpa e que todos são recuperáveis", defendem os bispos. O verdadeiro criminoso: todos os criminosos, pobres e ricos. Os de "colarinho branco" também.

O enorme desafio de mudar a política penal e penitenciária do Brasil passa, segundo os bispos, por um questionamento do modelo atual de sociedade. É urgente "reverter o apartheid racial e social de grande maioria da população brasileira. A questão da recuperação das presas e presos está intimamente ligada à questão da viabilização das profundas reformas sociais que a consciência ética de nossa sociedade reclama".

O texto-base apresenta propostas concretas para o início de uma mudança do sistema penitenciário nacional. Como, por exemplo, as penas alternativas. A medida ajudaria muito a desafogar os presídios, corrigir injustiças contra pessoas que cometeram crimes menores e reeducar para o convívio social. As penas privativas de liberdade devem ser reservadas apenas para as condutas "que lesem de forma grave o corpo social". Condutas de menor potencial ofensivo podem ser punidas com serviços prestados à comunidade. A legislação brasileira prevê isso, mas as penas alternativas são ainda pouco aplicadas.


Convocação geral


O tema da Campanha da Fraternidade promete "levantar muita poeira", afirma a Irmã Maria Emília G. Ferreira, da Pastoral Carcerária, na entrevista do mês (páginas 5 a 7 desta edição). "Porque a questão das prisões não está sendo levada a sério." Ela alerta, porém, para o risco de se falar apenas das "prisões morais", esquecendo o tema incômodo - "A fraternidade e os encarcerados" -, para se fixar no lema: "Cristo liberta de todas as prisões". Segundo Maria Emília, "temos que falar de prisão por causa da divisão social, econômica e política entre pobres e ricos".

A convocação é geral: "Todos somos convidados a participar desta tarefa: os cristãos e as Igrejas, os educadores e as educadoras, os que trabalham nos meios de comunicação social, todos os homens e as mulheres de boa vontade, a sociedade em geral, e, especialmente, os homens e as mulheres que estão ou trabalham nas prisões, na administração de Justiça, na Polícia, no Governo e no Legislativo".

Ao longo de toda a Quaresma, e também depois, não faltarão estímulos, idéias e sugestões de todo tipo, coisas muito simples e também grandes projetos, para fazer com que a fraternidade avance pelos corredores e celas das prisões brasileiras. Como nos anos anteriores, a Campanha da Fraternidade pretende, antes de tudo, mexer com a consciência, provocar, chamar para a solidariedade e a ação concreta, e não ditar receitas.

Fazer do Brasil um país melhor para todos, também no que diz respeito aos modos de evitar o crime e a violência, punir com justiça os criminosos, corrigir as lacunas e erros do atual sistema penitenciário, cuidar das vítimas - eis aí um desafio de todo tamanho, que vale uma Quaresma e muito mais.


POPULAÇÃO PRISIONAL
(Dados do Censo Penitenciário Nacional/1994 - Ministério da Justiça)

Total de presos: 129.169
Homens: 124.403 (96,31%)
Mulheres: 4.766 (3,69%)
Vagas disponíveis: 59.954
Média por vaga: 2,15
Idade: 68% com menos de 30 anos.
Brancos: 56%
Negros e morenos: 43%
Outros: 1%
Pobres e muito pobres: 95%

FONTE: TEXTO-BASE DA CF


O Texto-Base da Campanha da Fraternidade 1997,
A Fraternidade e os encarcerados,
está disponível para download no site da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)