Timor Leste

Filme de terror


Atrocidades dos invasores indonésios desconhecem limites. Depoimento de uma militante timorense.


Bernardete Toneto



No pulso esquerdo, Maria de Fátima Gomes Guterres tem uma antiga tatuagem, com as iniciais do nome do marido. As marcas lhe trazem lembranças de três anos felizes.

Contudo, outras cicatrizes, muito mais profundas, não estão no corpo, torturado, mas na alma. Ela não esquece a violência de que foi vítima em conseqüência da invasão de seu país - o Timor Leste - pela Indonésia, em 7 de dezembro de 1975.

Exilada em Portugal desde 1987, saiu pela primeira vez do país em março deste ano, para participar de um encontro internacional de mulheres no Rio de Janeiro.

Em São Paulo, onde esteve a convite de pessoas solidárias com a causa timorense, sentiu-se "em casa". Tomou muitas xícaras de café, emocionou-se ao ver uma jaqueira em uma calçada, voltou a sentir o gosto da banana, da manga e do abacate. Chorou de saudades de seu país, tão parecido e tão distante do Brasil.


NA RESISTÊNCIA - Fátima, como é mais conhecida, tem 42 anos. Pequena, de pele morena, é tímida, mas fala com segurança. E emoção, muita emoção.

Ao contar sua história, a voz baixa e pausada é entrecortada de pequenos silêncios. Faz isso para poder suportar as lembranças, que afloram a cada palavra. Quando termina, invariavelmente sente fortes dores de cabeça. Nada comparável, entretanto, às dores físicas que suportou depois que foi presa, no Timor, em 3 de fevereiro de 1979.

Nascida na ilha de Atauro, filha de um enfermeiro do Estado português que teve oito filhos (dois deles mortos na guerra), Fátima ingressou, aos 20 anos, na Falintil (Forças Armadas de Libertação Nacional do Timor Leste), a organização popular que resistiu à invasão indonésia. Junto com parte da família, foi obrigada a fugir para as montanhas e, depois, para as planícies.

Trabalhava no campo, produzindo alimentos para os guerrilheiros e para a população pobre das aldeias. Nas épocas de crise, trituravam palmeiras e misturavam o pó com mel. Era a refeição possível.


AMOR E HORRORES - Aos 21 anos, conheceu e casou-se com Arturo, uma das lideranças da Falintil. Nas regiões pobres, foi vítima de paludismo e, nas fugas, sem poder andar, era carregada em uma cadeira.

"Os indonésios pensavam que iam tomar o Timor em 24 horas. Mas passaram-se meses, anos, e não conseguiram. Nos assaltos que faziam às aldeias, emboscavam, queimavam as casas, jogavam bombas napalm que queimavam plantações, animais e pessoas", conta.

No dia 3 de fevereiro de 1979, o pelotão a que ela e o marido, também doente, pertenciam, foi tocaiado pelo Batalhão 745. Não conseguiram fugir. Arturo foi morto em seus braços e Fátima, obrigada a acompanhar os soldados. Levada a uma acampamento militar, teve coragem para enterrar documentos que carregava consigo e que poderiam comprometer o comando de operações do qual era secretária.

Durante dois meses, Fátima ficou detida na prisão de Alas. Ali, encontrou uma amiga, Maria José. Todas as noites, passavam por interrogatórios vexatórios até a madrugada. Eram violentadas sete, oito vezes na mesma noite, todos os dias, por diferentes comandantes das tropas invasoras.

Depois, as duas foram levadas de helicóptero para uma cidade vizinha. Tinham a certeza de que seriam assassinadas. Fátima lembra, com horror, de ter visto a amiga ser jogada de uma altura de cinco metros. Uma hora depois, quando o helicóptero passou pelo mesmo lugar, viu a amiga, nua, agonizante, sendo estuprada por soldados.


SAUDADES DA TERRA - A timorense foi obrigada a servir de guia para os soldados nas invasões às aldeias. Só conseguiu se livrar quando furou um bloqueio e denunciou o fato a um general em visita à tropa.

Foi enviada a Mantuto, onde ficou presa em um quartel no qual a violência sexual era lei. Na capital, Dili, depois de semanas de interrogatórios, foi chamada a servir de informante para os indonésios. Alegou que, sendo mulher, não tinha capacidade para isso. Conseguiu liberdade provisória.

A família, via Cruz Vermelha, obteve asilo em 1987, depois de oito anos de tentativas junto ao governo português. Atualmente, Maria de Fátima estuda Letras e ajuda grupos de solidariedade ao Timor em Portugal.

No ano passado, comemorou a outorga do Nobel da Paz a dois timorenses, o bispo Ximenes Belo e o professor Ramos-Horta, mas acha que a paz ainda vai demorar. Um sonho? "Voltar ao Timor, com seus cheiros, seus gostos, meu povo."


TIMOR LESTE

(x) Sim, eu quero ver esse país livre!


Participe você também da campanha pela libertação do líder timorense Xanana Gusmão (conhecido como "o Nélson Mandela do Timor") e pela autodeterminação do Timor Leste.

  1. Não compre produtos fabricados na Indonésia.
  2. Escreva ao presidente Fernando Henrique Cardoso (Palácio do Planalto - Praça dos Três Poderes - Brasília/DF, E-mail: gppr@cr-df.rnp.br), pedindo que o Brasil apóie com decisão a causa do Timor Leste.
  3. Escreva ao líder Xanana Gusmão (L.P Cipinang - Jalan Raya Bekasi - Jakarta Timur - INDONÉSIA), manifestando-lhe solidariedade. Nota: pode ser em português, língua que é falada no Timor Leste.
  4. Informe-se: Clamor por Timor - R. Haddock Lobo, 1310, Apto. 42 - 01414-002 São Paulo/SP.


Morte do marido - "Combinamos que as duas últimas balas eram para nós dois. Chegou o momento. Ele me olhou e não teve coragem de me matar. Nos despedimos. Assim que acabamos de nos beijar, ele foi atingido, caiu e me puxou. Pensei que era para rastejar por causa das balas que continuavam a cruzar por cima da gente, mas quando olhei para o lado, lá estava o cérebro. Sabia que ele estava morto, mas eu chamei, chamei umas três vezes, ele ainda me respondeu. Eu o abracei e fingi que estava desmaiada. Senti os passos. Levantei-me e ia disparar, quando recebi coronhadas e caí. Não pude enterrar meu marido, só o cobri com um lençol, e eles me levaram."


Interrogatórios - "A cadeira era a cama deles. As perguntas eram sempre as mesmas, tudo sobre sexo. Depois das perguntas, éramos violadas. Mandavam para o quarto e, passados cinco minutos, vinham chamar para outro comandante. Todos os dias, éramos violadas, de dia e de noite, conforme o número de soldados. A gente rezava o terço toda noite com o desespero de que nossas orações se transformassem em insulto a Deus."


Nas aldeias - "Eles matavam, todas as vezes eles matavam. Quando se tratava de um guerrilheiro, torturavam, despiam e começavam a cortar o corpo em pedaços. Colocavam o corpo em pé, para servir de treino. Gastavam as balas sem pensar. Já morto, espetavam o coração com um punhal, tiravam e lambiam a lâmina.

Chegamos a uma aldeia onde estavam umas vinte pessoas, entre elas uma velhinha e um bebê de menos de 1 ano. Mataram todos, menos essas duas pessoas. Quando o bebê começou a chorar, colocaram a boca da criança para mamar no seio da mãe já morta. Não saía leite, só sangue. Corri para pegar a criança, mas eles me disseram para não me meter nessa história, que era assunto deles. Nunca mais soube daquelas duas pessoas."


Fatos e números

  • O gigante indonésio invadiu a ex-colônia portuguesa do Timor Leste em 7 de dezembro de 1975, assim que o pequeno território (menor que o estado de Sergipe) alcançou a sua independência.
  • A invasão causou a morte de pelo menos 310 mil timorenses, em conseqüência da guerra, da tortura e da fome. Isso representa mais de 44% da população existente no território antes da ocupação.
  • Xanana Gusmão, poeta e líder maior da resistência, preso desde 1992, foi condenado a vinte anos de prisão em Jacarta, capital da Indonésia.
  • Hoje, apenas 1% da população do Timor Leste fala o português, uma língua proibida pelos indonésios na ilha.
  • Em 1975, ano da invasão, os Estados Unidos aumentaram em 450% o envio de armas para a Indonésia. Aviões de fabricação estadunidense foram utilizados pelos militares indonésios nos bombardeios que acompanharam o processo de ocupação.
  • Apoiada pelas grandes potências, sobretudo pelos Estados Unidos, a Indonésia continua a desrespeitar as resoluções da ONU exigindo a retirada das tropas invasoras e a autonomia do território.
  • Carlos Ximenes Belo, bispo de Dili, capital do Timor Leste, e José Ramos-Horta, representante do líder Xanana Gusmão, receberam o Prêmio Nobel da Paz 96.

FONTE: CLAMOR POR TIMOR


(Bernardete Toneto, p. 37)