América afro-latina

Liberdade, liberdade,
abre as asas sobre nós!

A população afro da América Latina e Caribe quer mais do que denunciar e trabalhar pelo fim da exclusão. Negros e negras exigem que se reconheça o seu papel na construção da história e das sociedades da Pátria Grande, ontem e hoje.


DIMAS A. KÜNSCH

O povoado, quase inacessível, está situado no norte da Colômbia, na região de Cartagena, e se chama San Basilio. É o palenque (quilombo) de San Basílio, onde muita coisa lembra a África negra.

Viajar de Bogotá a San Basilio é como saltar de um lado a outro do oceano. É também como fazer uma peregrinação pela história de cinco séculos de presença negra africana nas terras da Pátria Grande.

Aqui, no começo do século 17, o rei africano Benkos Biohó liderou uma revolta que fez de San Basilio o primeiro povoado negro livre do continente americano, com direito a reconhecimento pelas autoridades brancas, em 1713.

O território livre de San Basilio é parte de uma história oculta que a historiografia oficial, de cor branca, ainda insiste em não levar em conta.

Na versão dominante, a multidão de africanos trazidos compulsoriamente para o lado de cá do Atlântico não fez mais que trabalhar e se comportar de forma mais ou menos dócil, segundo os cânones prescritos pelas leis e costumes, o poder e a força do regime colonial de escravidão.


Outro lado da história

Não é verdade. Os negros do continente americano não aceitaram passivamente a escravidão, e o poder branco sabe que eles deram trabalho. E muito.

A resistência e a rebeldia, porém, têm vários lados e cores. Na história da escravidão, o sonho da liberdade e da vida às vezes ensina que é melhor negociar com o poder dominador, de forma a garantir espaços mínimos de dignidade, ou de sobrevivência.

É assim que deuses e espíritos africanos penetram silenciosamente o mundo da religião branca, imposta, para conviver de algum modo com a multidão de santos católicos, até então desconhecidos pelos negros.

Religião pacientemente negociada, música e dança, onde possível, fazem parte dessa tentativa impertinente de tornar menos irrespirável o ar fétido das senzalas, e menos desesperadores a saudade, a angústia e o sofrimento causado pelo trabalho forçado e o chicote do patrão.

Mas o sonho da liberdade e da vida às vezes também ensina que vale a pena se rebelar, articular a revolta, desobedecer, praticar sabotagens, fugir. Nos casos extremos, ensina que é preferível optar pela morte a ter que continuar como escravo.

Na Colômbia, chamavam-se palenques os povoados de negros livres que escaparam da escravidão para, ali, viver vida de gente e cultivar o gosto pelas raízes africanas. Na Venezuela, esses povoados de "selvagens não domesticados" receberam o nome de cumbes e, no Brasil, de quilombos.

Em 20 de novembro de 1695, no Brasil, era destruído o quilombo de Palmares, a República livre de negros rebeldes liderados por Zumbi.

Mas Zumbi e Benkos Biohó nem de longe foram os únicos. A história da resistência negra no continente americano lembra outros nomes famosos, como Bayano (Panamá), Ventura Sánchez (Cuba), Cudjoe e Nanny (Jamaica), Andresote (Venezuela), Yanga (México), Nat Turner (Estados Unidos), Dessalines, Henry Christophe e Toussaint L'Ouverture (Haiti), Francisco Congo (Peru).


Glórias e infortúnios

O tráfico de escravos trouxe pelo menos 8 milhões de africanos para o continente americano. O tempo, uma infinidade de pequenas e grandes lutas e outro tanto de arranjos históricos se encarregaram de fazer da escravidão oficial uma coisa do passado.

Mas não basta contestar e provar que é mentirosa a versão que varre da história da Pátria Grande toda luta e toda revolta negra contra o regime de escravidão, bem como a contribuição dos negros para a cultura e o desenvolvimento dessas nações. Há uma outra grande mentira a ser desmascarada, na visão dos movimentos negros dos quatro cantos do continente: a idéia de que a escravidão acabou. Parece ainda longe o dia da liberdade sonhada. Enquanto isso, vale cantar: "Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós".

O Haiti, de grande maioria negra, foi o primeiro país livre da América Latina. A poucos anos do bicentenário de sua independência, porém, é visto como o mais pobre, esquecido e desprezado do continente. Qual o seu crime? Qual o seu pecado?

O Haiti paga pelo delito da dignidade, escreveu recentemente o autor uruguaio Eduardo Galeano, fazendo referência à humilhação que os negros haitianos infligiram aos brancos, em 1803, ao derrotar as tropas expedicionárias francesas de Napoleão Bonaparte, na batalha que levou à independência do país, proclamada em 1º de janeiro de 1804.

Em quase duzentos anos de independência, a República negra nunca pôde saborear de fato a liberdade. E o mesmo poder estrangeiro, que sustentou um rosário de infames ditaduras nesse período, interveio para cortar na raiz as esperanças nascidas, em 1990, com a eleição popular do governo de Jean-Bertrand Aristide.

Um novo golpe de Estado se encarregou de pôr ordem na casa, a ordem do fuzil. Os novos ditadores de plantão foram depois afastados, em 1994, com a intervenção dos Estados Unidos e da ONU, mas o país teve que pagar caro pela ousadia de pensar em caminhos alternativos à miséria.

No Haiti, que hoje dança segundo a música do neoliberalismo imposto pelos países ricos do Ocidente, a história da perseguição "adquire dimensões de tragédia", afirma Galeano. Um caso típico de "racismo da civilização ocidental".


O Zimbábue é aqui

As comunidades negras são as mais pobres no meio do grande exército de excluídos do continente. Poucos duvidam disso, nem mesmo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que, no final do ano passado, divulgou um amplo relatório sobre a marginalização na América Latina.

Na avaliação do BID, o racismo tem pelo menos dois lados: um cultural e outro social. Trocando em miúdos, no que se refere ao "racismo social", significa que a população negra é obrigada a viver sob condições que perpetuam a pobreza. Os estudiosos chamam isso de "apartheid social". Uma outra forma de dizer que a escravidão continua.

O relatório do BID estima em 90 milhões a população negra na região e acrescenta que outros 60 milhões descendem de africanos. São 150 milhões de pessoas, mais de 30% dos 490 milhões de habitantes da América Latina.

O Brasil, último país do continente a abolir a escravidão negra, em 1888, tem a maior população negra da América Latina: de 42% a 60% dos brasileiros (dependendo das estatísticas) são negros ou têm sangue negro nas veias. A qualidade de vida de toda essa gente só se compara à do Zimbábue e do Lesoto, dois dos países mais pobres da África.

É o que mostra um estudo, recentemente divulgado, da historiadora Wânia Sant'Ana e do economista Marcelo Paixão. Os dois pesquisadores cruzaram os resultados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), da ONU, com os dados oficiais disponíveis sobre a população afro-brasileira. A conclusão: se considerado o nível de qualidade de vida dessa população, o país cai do 63º lugar que ocupa no mundo para o 120º.

O IDH mede o grau de desenvolvimento dos países a partir de três variáveis: esperança de vida, situação educacional e nível de rendimento dos habitantes. Os negros perdem feio para os brancos em todos os itens. "Usamos os dados oficiais e as condições mais favoráveis possíveis, para termos parâmetros de comparação e não sermos acusados de piorar deliberadamente os índices", avisa Marcelo Paixão.


Exclusão é feminina e negra

A marginalização social e econômica é ainda maior no caso das mulheres negras. Os dados mostram que elas ganham em média a metade do salário das mulheres brancas e um terço da média de salários da população brasileira. Em termos de formação escolar, oitenta por cento não conseguem passar da quarta série e quase 30% são analfabetas.

As diferenças entre os países não são suficientes para contestar a tese de que a mulher afro-latina e afro-caribenha se encontra numa situação de maior exclusão socio-econômica que o homem negro e muito pior que homens e mulheres brancos. Por três motivos, como lembra Elida Rocha, presidente da Associação Hondurenha de Mulheres Negras: por ser mulher, pobre e negra.

"O poder é masculino, branco e rico. A fome é feminina e negra. A exclusão é feminina e negra", denunciou a senadora brasileira Benedita da Silva durante o Terceiro Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e caribenhas, realizado em dezembro de 96 na Costa Rica.

Benedita considera que todo esforço é pouco para "tornar visível" a condição em que vivem as mulheres e os homens negros da América Latina e Caribe. Que ninguém diga que não sabe, não viu, não escutou. Reconhecer o esquecimento e a exclusão é o primeiro passo na direção da mudança.

A bandeira da "visibilidade" está sendo levantada por organizações negras de norte a sul da região. O objetivo é mais ambicioso do que simplesmente mostrar que os afro-americanos, hoje como ontem, vivem em condições de abandono e exclusão. Negros e negras querem ver reconhecido o seu papel na construção da história das nações latino-americanas e caribenhas.

"Uma das conseqüências mais graves do racismo é a inversão do sentido da história", comenta o sociólogo negro peruano José Carlos Luciano. "É isso o que queremos mudar."

Recontar a história, dar à história o seu "sentido real", é fundamental para o resgate da identidade negra. Segundo Luciano, é um pressuposto para a conquista da dignidade e da liberdade negadas.


E Jesus entrou na dança

Parábola para os dias de hoje: Jesus visita um terreiro.

Frei Carlos Mesters


Certa vez, Jesus reuniu os discípulos e as discípulas e disse:

"Quando vocês forem anunciar o Reino, não devem levar dinheiro nem comida, mas devem confiar no povo. Chegando num lugar, se vocês forem acolhidos e o povo partilhar comida e casa com vocês, e se vocês participarem da vida dele, trabalhando, tratando dos doentes e do pessoal marginalizado, sem voz e sem vez, então podem dizer ao povo, com toda certeza: 'Gente, olha aqui! O Reino chegou. Está chegando'".
E eles foram.

Jesus também foi. Andou, andou.
Estava começando a anoitecer, quando chegou num terreiro. O pessoal que entrava, saudava e dizia:
- Boa noite, Jesus! Entre e sinta-se em casa. Participe com a gente.

Jesus entrou. Viu o pessoal reunido. A maioria era pobre. Alguns, não muitos, da classe média. Todo mundo dançando alegre. Havia muitas crianças no meio. Viu como todos se abraçavam entre si. Viu como os brancos eram acolhidos pelos negros - como irmãos.
Jesus, ele também, foi sendo acolhido e abraçado. Estranhou, pois conheciam o nome dele. Eles o chamavam de Jesus, como se fosse amigo e irmão de longa data. Gostou de ser acolhido assim.
Viu também como a Mãe-de-Santo recebia o abraço de todos. Viu como invocavam os orixás e como alguns vinham distribuindo passes para ajudar os aflitos, os doentes e os necessitados.

Jesus também entrou na fila e foi até a Mãe-de-Santo. Quando chegou a vez dele, abraçou-a, e ela disse:
- A paz esteja com você, Jesus!
Jesus respondeu:
- Com a senhora também!
E acrescentou:
- Posso fazer uma pergunta?
E ela disse:
- Pois não, Jesus!
E ele disse:
- Como é que a senhora me conhece? Como é que eles sabem o meu nome?
E ela disse:
- Mas, Jesus, todo mundo conhece você. Você é muito amigo da gente. Sinta-se em casa, aqui no meio de nós!
Jesus olhou para ela e disse:
- Muito obrigado!
E continuou:

- Mãe, estou gostando, pois o Reino de Deus está aqui no meio de vocês!
Ela olhou para ele e disse:
- Muito obrigada, Jesus! Mas isto a gente já sabia. Ou melhor, já adivinhava. Obrigada por confirmar pra gente. Você deve ter um orixá muito bom. Vamos dançar, para que ele venha nos ajudar!
E Jesus entrou na dança.

Dentro dele, o coração pulava de alegria. Sentia uma felicidade imensa, e dizia baixinho: "Pai, eu te agradeço porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste ao povo humilde aqui do terreiro. Sim, Pai, assim foi do teu agrado".
Dançou um tempão.
No fim, comeu pipoca, cocada e batata assada com óleo de dendê, que o pessoal partilhava com ele.
E, dentro dele, o coração repetia sem cessar: "Sim, o Reino de Deus chegou! Pai, eu te agradeço! Assim foi do teu agrado!".