América Afro-latina: Peru

Ser humano, acima de tudo

"O racismo, no Peru, é evidente. É descarado, sistemático, permanente."


ENTREVISTA: JOSÉ CARLOS LUCIANO

O sociólogo José Carlos Luciano é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Não-Discriminação, da Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos. Também assessora organizações negras peruanas. Na entrevista a seguir, ele defende que, para os negros peruanos, "uma das aspirações mais importantes é escapar da armadilha da cor".

A população negra ou de origem negra peruana é estimada em 2 milhões de pessoas ou pouco menos. A grande maioria, cerca de 70%, vive em Lima, a capital do país.


Como você avalia a influência da cultura negra na sociedade peruana?

JOSÉ CARLOS LUCIANO - Os negros desempenharam um papel muito importante na composição demográfica da população e, obviamente, na mestiçagem da costa do Pacífico.

Eles participaram no desenvolvimento da economia urbano-colonial. O pequeno comércio e o trabalho nas fazendas dos arredores de Lima estavam nas mãos da população negra.

É conhecida a contribuição dos negros para as artes culinárias. Os negros tiveram um papel fundamental na construção da cultura nacional. No nível da religiosidade popular, por exemplo, temos a procissão do Senhor dos Milagres, que é uma das mais importantes expressões religiosas populares da América Latina.

Foi também valiosa a contribuição dos negros para a consolidação de um sentido de pátria no Peru. Eles participaram dos esforços libertários e ajudaram a livrar o país do domínio colonial.

De que forma se expressa a discriminação racial hoje no país?

- Historicamente, a população negra sempre constituiu um segmento importante dos pobres do país. Essa é uma das mais profundas formas de discriminação, porque a pobreza impede o negro de participar das oportunidades em pé de igualdade com as outras pessoas.

A segunda forma de discriminação tem a ver com o tratamento. O modo de tratar o negro é agressivo, ofensivo e, diferentemente do que se diz, isso não é feito em silêncio ou escondido. O racismo, no Peru, é evidente. É descarado, sistemático, permanente.

Nós, os negros, não aparecemos na história oficial. Isso é outra forma gravíssima de discriminação, porque atenta contra a nossa auto-estima e identidade. Se você não se reconhece em seu passado, é difícil se projetar para o futuro.

A discriminação contra a mulher negra é mais grave ainda, porque ela é negra, é pobre e é mulher. Ela também é objeto de discriminação dentro da própria comunidade negra, por causa do nosso machismo. Assim, ela é desigual dentro da desigualdade.

O que as organizações negras estão fazendo no sentido do resgate da auto-estima?

- Resgatar a auto-estima é uma das principais tarefas que nos temos proposto, enquanto organizações negras, porque isso é parte importante do resgate da consciência e da dignidade do homem e da mulher negra no Peru. Assim, estamos tentando descobrir qual a contribuição da coletividade negra para a história do país. Queremos depois divulgar isso, dentro da comunidade negra e da sociedade peruana.

Uma segunda coisa de que estamos convencidos é que, sem uma participação ativa do negro e da negra na vida política, esse resgate da auto-estima vai demorar muito tempo. Nesse sentido, trabalhamos na formação de lideranças, para que o negro e a negra possam participar ativamente na democratização do país. Queremos contribuir para a construção de um sentido de cidadania baseado na igualdade e na não-discriminação.

Uma resposta de muitos negros e negras frente à discriminação, ou uma conseqüência desta, é o "branqueamento". Também estão trabalhando isso?

- O racismo, entre outras coisas negativas, provoca uma perda do sentido da própria dignidade, da honra, do respeito para consigo mesmo. Por isso, parte importante das tarefas que estamos realizando tem a ver com a pessoa, o indivíduo, o homem e a mulher negra, o resgate da dignidade.

E aqui existe um paradoxo: é importante resgatar a idéia de dizer "sim, eu sou negro", para renunciar a ela, imediatamente. É preciso poder dizer "eu sou um ser humano", acima de qualquer condição, de qualquer circunstância.

Para mim, o miolo, o coração do trabalho das organizações negras nesta etapa consiste em resgatar para o homem e a mulher negra o direito de falar em primeira pessoa, as oportunidades e os espaços que como pessoas lhes correspondem, como a qualquer pessoa.

A mensagem dos movimentos negros do Peru é: renunciemos à raça, afirmemos a pessoa. Creio que, no caso dos negros do meu país, escapar da armadilha da cor é uma das aspirações mais importantes.


Peru

Nome oficial: República do Peru
Capital: Lima
Idioma: aimará, espanhol e quéchua (oficiais)
Religião principal: cristianismo (católicos: 98%, em 1989)
População: 24,2 milhões (1996)
População negra: perto de 2 milhões