Novo Milênio

Paz e justiça
na terra


A grande questão é como fazer do ano 2000 um tempo de verdadeiro jubileu bíblico.


Marcelo Barros


A bíblia conta como a Palavra de Deus foi dirigida a Abraão, prometendo-lhe uma descendência numerosa e uma terra para viver. Segundo os estudiosos, o patriarca que deu início à história dos antepassados diretos de Israel teria vivido em torno do ano 1800 antes de Cristo.

Pois bem, nessa mesma época, no continente que hoje chamamos América - mais exatamente no México e na América Central - , um dos povos mais antigos da terra, os Maia, também escutavam uma palavra divina.

Era uma música vinda do seio da mãe-terra que revelava aos antepassados como viver numa região alta e às vezes inóspita, de vulcões e terremotos.


Em junho deste ano, na periferia da capital da Guatemala, coordenei um curso sobre o problema da terra e a missão das Igrejas cristãs. Metade dos participantes era constituída por homens e mulheres maias.

Minha maior alegria foi poder apoiar de alguma maneira a caminhada desse povo, tão perseguido e injustiçado. Senti-me representando a todos vocês que lêem estas páginas porque escutam hoje em suas vidas o apelo de Deus chamando-os à solidariedade mundial.

Na primeira parte do encontro, as comunidades contaram como é a realidade fundiária no país. Junto com o Brasil e El Salvador, a Guatemala possui uma das mais ferozes concentrações de terra do planeta. Disseram que 6% dos guatemaltecos são donos de quase 98% do território nacional.

Essa situação vem dos tempos da Colônia, e os grandes proprietários não estão nem um pouco a fim de mudar as coisas. Na frágil paz conquistada após uma guerra que deixou mais de 50 mil mortos, falar em reforma agrária parece subversão e loucura.

O resultado disso é que mais de 1 milhão e meio de pessoas vivem literalmente penduradas nos barrancos quase verticais que rodeiam a capital. Foram expulsas da terra pela política de modernização do país.

Sem espaço vital, segurança ou higiene, essa gente enfrenta uma violenta repressão do governo, que lhe nega até atendimento de saúde para, como se diz, não estimular invasões ilegais. Entretanto, quanto mais perseguida, mais se organiza e persevera na luta por terra e moradia.


Achei estranho, durante o encontro, como um povo assim resistente me parecia tão quieto, silencioso, misterioso. Que diferença do Brasil, onde os lavradores cantam e dançam, se mexem e brincam!

Quando insisti que cantassem suas lindas canções ancestrais, escutei a mais terrível lamentação dos meus vinte anos de trabalho com lavradores e índios.

Eles me disseram: "Nossas canções nos são ensinadas pela terra. Quando nos roubaram a terra, roubaram também as nossas canções. Sem terra, não sabemos mais cantar".

Logo me recordei do salmo 137, no qual a bíblia conta que, na terra do exílio, os opressores exigiam que o povo cantasse. "Mas como poderíamos cantar os cânticos do Senhor numa terra que nos é estranha (onde vivemos como desterrados)?".

Para os lavradores e povos indígenas, a terra não é apenas propriedade. É um sacramento de comunhão e de vida. Sem ela, a cultura não sobrevive, a medicina (baseada na terra e nas plantas) falha e só resta lugar para a fome, a miséria e a morte.


Alguns religiosos também participavam do encontro. Eles lembraram uma coisa que eu já sabia: por toda a América Latina espalham-se cânticos e roteiros de celebrações preparando uma grande festa para o ano 2000.

O papa João Paulo II escreveu uma carta em que propõe que o mundo inteiro comemore, com festas e encontros importantes, o aniversário de dois mil anos do nascimento de Jesus Cristo.

Como explica o papa, o jubileu tem origem numa lei que Deus inspirou ao povo do Antigo Testamento.

Falando do jubileu, o capítulo 25 do livro do Levítico diz que o povo, de cinqüenta em cinqüenta anos, devia fazer uma grande reforma social, repartindo novamente a terra que tinha sido concentrada, cancelando as dívidas e libertando os escravos.

O Evangelho de Lucas mostra que Jesus anunciou o seu programa de ação com a proclamação de um jubileu especial, um ano de graça: o Espírito o enviava para libertar os prisioneiros, curar os doentes e confirmar a todos no amor de Deus.

Baseada nisso, a cada cinqüenta anos e desde muitos séculos, a Igreja católica celebra o jubileu como um ano de peregrinações a Roma e de graças para quem quer ser perdoado por Deus de suas falhas.


As comunidades ligadas à transformação do mundo acolheram com alegria a proposta do papa de um maior esforço para que as Igrejas cristãs, em vista do ano 2000, superem as divisões entre si e intensifiquem também o diálogo com outras religiões.

Mas essas mesmas comunidades lamentam o fato de que, em muitos lugares, a preparação do jubileu esteja sendo feita mais no sentido de um fortalecimento da estrutura eclesiástica do que de uma preocupação com a justiça, a repartição da terra, a partilha.

Apesar disso, a maioria dos grupos e organizações, tanto étnicas como religiosas, está aceitando a proposta de diálogo e colaboração.

A idéia é fazer do ano 2000 um tempo de verdadeiro jubileu bíblico, que proclame de novo a justiça divina e resgate a terra e os escravos deste mundo. As comunidades cristãs populares querem, nesse período, fazer uma grande campanha de justiça na terra.

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Marcelo Barros é monge beneditino, prior do mosteiro da Anunciação, em Goiás, comunidade monástica inserida no meio do povo e consagrada à acolhida e ao diálogo com outras Igrejas, religiões e culturas.