Paz para
o Timor


Vinte e dois anos depois da ocupação indonésia (dezembro de 1975), "o Timor Leste segue na esperança e na fé dos povos, na luta pela paz, justiça e democracia", garante o Nobel da Paz 96.

Ramos-Horta

A agenda do timorense José Ramos-Horta, 48 anos, anda carregadíssima de compromissos, como convém a um Nobel da Paz – prêmio que dividiu no ano passado com outro timorense, o bispo católico Carlos Ximenes Belo, de Dili, capital do Timor Leste.

Jornalista e advogado, Ramos-Horta vive exilado na Austrália, país vizinho do Timor, junto com a mãe, dona Natalina. Trabalha na universidade e colabora com agências internacionais de notícias, mas a maior parte do tempo dedica a viagens pelos cinco continentes para divulgar a luta da sua gente. "Tudo em nome da paz verdadeira, da liberdade e do direito de o povo timorense poder decidir sobre o seu futuro."

Ex-colônia portuguesa, o Timor Leste ocupa metade da ilha do Timor, no Sul do Pacífico (a outra metade faz parte do território indonésio). Possui uma das vinte reservas petrolíferas mais ricas do mundo. Os 650 mil habitantes falam o tetum e o português (considerado o idioma da resistência, porque proibido). Assim que alcançou a independência, o pequeno território (menor que o estado de Sergipe) foi invadido pela gigante Indonésia, em dezembro de 1975.

A ação arbitrária e violenta do ditador Suharto – que há quase trinta anos está no comando da Indonésia – jamais foi reconhecida pelas Nações Unidas, nem aceita pela população timorense. A invasão dizimou pelo menos 310 mil timorenses, em conseqüência da guerra, da tortura e da fome. Isso representa mais de 40% da população existente no território antes da ocupação.

Na época, Ramos-Horta, que perdeu três irmãos na luta, era ministro das Relações Exteriores de um governo independente que mal chegou a estar de pé, tendo sido dissolvido pelas tropas indonésias.

Em setembro último, esteve no Brasil, participando, em Brasília, da Primeira Conferência Internacional de Direitos Humanos, promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil. Em São Paulo, foi o personagem principal de uma "Noite de solidariedade ao Timor", em que lançou o livro "Timor Leste, este país quer ser livre", organizado pelo professor Sílvio L. Sant'Anna, com prefácio de Herbert de Souza, o Betinho.

Participaram do ato de solidariedade representantes de organizações não-governamentais, intelectuais e artistas, como as atrizes Lucélia Santos e Bete Mendes, do grupo "Artistas Pró Timor Leste". Lucélia Santos, que é conhecida entre os timorenses por causa da novelas brasileiras, foi convidada especial de Ramos-Horta na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel, em dezembro do ano passado, em Oslo, na Noruega.

Na entrevista a SEM FRONTEIRAS, o porta-voz do Conselho Nacional de Resistência Maubere, que reúne as forças de resistência do Timor, lembra o mais importante prisioneiro político timorense, Xanana Gusmão, que desde 1991 cumpre pena de vinte anos em Jacarta, capital da Indonésia. Ele critica a hipocrisia do Ocidente e conclama os brasileiros a participar dos esforços internacionais em favor da libertação do povo timorense.


A luta de Davi (Timor Leste) contra Golias (Indonésia) completa 22 anos neste mês de dezembro. De onde vem essa força de resistência do povo timorense?

Ramos-Horta – Vem da fé, da esperança e do desejo de vencer e de ser livre. Lembro-me dos versos do nosso poeta e símbolo máximo da resistência timorense, Xanana Gusmão: "Nós mesmos ficamos a admirar como é possível tanta força interior, quando a pele, curtida nos horrores da guerra, vem sendo rasgada sem piedade. Uma luta verdadeiramente de um povo que sabe sorrir e abafar o seu ódio mortal. Que sabe ser dócil para ocultar a sua luta. Que se deixa insultar para formar o seu orgulho. Que se deixa bater para reforçar o seu ânimo. Que se deixa derrotar para procurar vencer".


Qual o significado do Prêmio Nobel da Paz 96, que o senhor e o bispo Ximenes Belo receberam?

– Foi um tributo à coragem e à tenacidade do povo do Timor, e não um tributo a duas pessoas, no caso eu e o bispo Ximenes Belo. Somos apenas representantes e defensores desse povo. Os verdadeiros heróis dessa luta são todos os timorenses: crianças, jovens e velhos, homens e mulheres que se opõem à invasão.


O fato de o prêmio ter sido concedido a dois timorenses contribuiu de alguma forma para mudar a situação no país?

– No plano interno, não, pois a repressão e a ocupação militar indonésia continuam fortes. A tortura é uma prática generalizada e de todos os dias. Há centenas de jovens presos, e prisão significa tortura. Além disso, o governo indonésio vem praticando a chamada política de transmigração. São cerca de 150 mil os civis indonésios que hoje vivem no Timor.


E no plano internacional, mudou alguma coisa?

– Há hoje, praticamente no mundo inteiro, um conhecimento muito maior da luta do nosso povo. Também houve mudanças importantes nas atitudes políticas de países europeus e dos Estados Unidos. Antes, o Timor não passava de um pé-de-página na história da Guerra Fria, entre as duas superpotências mundiais da época, os Estados Unidos e a União Soviética. Um país abandonado, sacrificado e traído.


Também houve avanços nas negociações mediadas pela Organização das Nações Unidas (ONU)?

– Na verdade, não. Há, sim, esperanças de que o envolvimento ativo do secretário geral da ONU, Kofi Annan, sirva de pressão sobre a Indonésia, para que esta reduza as suas tropas no Timor e ponha fim às torturas e execuções sumárias.


Qual a posição do governo brasileiro no conflito?

– Tem sido discreta, mas positiva. Seria injusto dizer que o governo brasileiro é indiferente à nossa causa. A posição oficial é de apoio à autodeterminação do Timor. Em março deste ano, o embaixador do Itamaraty, Ivan Cannabrava, esteve no Timor para levantar dados sobre o conflito, o que foi muito positivo.


Como está a relação entre os Estados Unidos e a Indonésia?

– Para os Estados Unidos, a Indonésia continua a ter a mesma importância estratégica e econômica na região. Mas não é mais como nos tempos da Guerra Fria. Os Estados Unidos começam a perceber que Suharto, continuando no poder, pode levar à fragmentação da própria Indonésia.


O comércio de armas entre os dois países continua como antes?

– Na verdade, se a Indonésia ainda ocupa o Timor, é só porque possui muito mais armas. O fato de venderem armas para a Indonésia permite simplesmente que a opressão se perpetue. As armas vêm fundamentalmente dos Estados Unidos e de países europeus, como Inglaterra, França e Alemanha. Recentemente, o Congresso estadunidense deu sinais positivos, proibindo a venda de aviões e tanques à Indonésia. Mas isso ainda é muito pouco.


Esses países chegaram a condenar a invasão indonésia em 1975?

– Sim. Parece até contradição o fato de que esses países, que condenaram a invasão, continuem a vender armas à Indonésia. É uma lição da hipocrisia internacional.


Como o senhor avalia esse tipo de comércio?

– Faço parte da Comissão Nobel para o Desarmamento no Mundo e estamos com um projeto de código internacional de conduta para restringir a venda de armas. Porque é óbvio que esse tipo de negócio é ilícito e imoral – e os cinco países membros do Conselho de Segurança da ONU, que deveriam garantir a paz e segurança, são os que mais têm causado conflitos no mundo. Com a venda de armas, os Estados Unidos, a França, Inglaterra, Rússia e China alimentam as atuais ditaduras, como a de Suharto.


Como o senhor vê a questão dos direitos humanos hoje no mundo?

– Varia muito de país para país. Em alguns, a situação é bastante positiva, enquanto em outros é de extrema gravidade. Há problemas graves no Timor Leste, na Indonésia, em Mianmá (antiga Birmânia), na China... É demasiado longa a lista de países onde é dramática a situação de desrespeito aos direitos humanos.


Xanana Gusmão recebeu em julho passado a visita do presidente sul-africano Nélson Mandela, que também recebeu o Nobel da Paz, como o senhor. O que essa visita representou?

– Foi extremamente importante, pois Mandela é hoje o chefe de Estado de maior prestígio no mundo. O seu envolvimento pode contribuir muito para solucionar o problema do Timor.


Que chances o Timor tem de se tornar independente?

– O que tem acontecido na história recente da humanidade confirma que os impérios não são eternos, que os regimes são transitórios. Mas os povos, sim, são eternos. As ditaduras militares não sobrevivem à sede de liberdade e de autodeterminação dos povos.

Há mais de vinte anos diziam que nós, timorenses, deveríamos ser realistas, aceitando a ocupação militar. E o que aconteceu nesse período, no mundo? Hoje, a Armênia é soberana. A Eritréia, traída e abandonada por todo mundo, é independente. Há dez anos, quem apostava que Nélson Mandela sairia da prisão e passaria a dirigir uma África do Sul democrática?

Não! O Timor Leste segue na esperança e na fé dos povos, na luta pela paz, justiça e democracia.


De que forma o brasileiro pode ajudar na luta pela independência do Timor?

– Fazendo um rigoroso boicote aos produtos indonésios. Todo brasileiro deveria verificar a etiqueta, antes de comprar um produto. Se for made in Indonésia, deveria boicotá-lo. É o caso dos tênis Reebok e Nike, bem como de certos produtos têxteis e eletrônicos. Isso teria um impacto muito grande, pois o Brasil possui uma enorme população e um grande comércio com a Indonésia, que movimenta em torno de 400 milhões de dólares por ano. A campanha de boicote já vem sendo realizada em Portugal, Austrália e Nova Zelândia.

A intolerância do regime de Jacarta pode ser dobrada com esse tipo de pressão. Além de solidariedade ao Timor, esse gesto também representa o repúdio às condições de trabalho na Indonésia. Ali, não há sindicatos livres, e um funcionário ganha em média de 1a 4 dólares por uma jornada de trabalho de 10 a 15 horas.


Como um Nobel da Paz define a paz?

– A paz é o que qualquer criança ou adulto aspira, é tranqüilidade física e de espírito. É ausência de guerra e do medo de ser preso e torturado. Mas é também acesso à educação, à saúde, à moradia.