Teologia africana

Um Cristo de
muitos rostos

A teologia africana reflete sobre Jesus a partir das condições sócio-culturais do continente. Diferentes imagens de um mesmo Jesus, encantadoramente africano.


John R. Levison e Priscilla Pope-Levison

JESUS,
O IRMÃO MAIS VELHO

Chamar Jesus de Irmão mais Velho é algo muito comum na África. Os angolanos, por exemplo, cantam: "Jesus Cristo é nosso Irmão mais Velho. Ele é africano".

O canto fala de Jesus como alguém que assume as funções do irmão mais velho. Este defende os irmãos menores que se metem em apuros, atua como mediador entre eles e os pais, por exemplo em assuntos de casamento, e, inclusive, se sente responsável por suas ações.

Esse modo de entender a pessoa de Jesus conduz os teólogos africanos à figura do sumo sacerdote, apresentado pela Carta aos Hebreus como um irmão cuja solidariedade com a família leva à salvação:

"Pois tanto o Santificador quanto os santificados descendem de um só. Por isso, Jesus não se envergonha de os chamar irmãos. Convinha, por isso, que em tudo se tornasse semelhante a seus irmãos, para ser, em relação a Deus, um sumo sacerdote misericordioso e fiel... Pois, tendo ele mesmo sofrido pela tentação, é capaz de socorrer os que são tentados" (Hebreus 2,11.17-18).

Essa imagem de Jesus sublinha outro ponto importante, que o identifica com suas irmãs e irmãos africanos: a participação nos chamados ritos de passagem, através dos quais o indivíduo se torna uma pessoa com plenos direitos dentro de sua tribo.

São ritos muito diferentes de uma tribo para outra, ligados aos diversos momentos da vida: nascimento, puberdade, matrimônio e morte.

Na realidade africana, esses ritos pressupõem a plena humanidade de Jesus. Os evangelhos mostram que ele, para ser admitido como membro pleno de sua comunidade, teve que passar por ritos assim.

Nesse sentido, as genealogias de Mateus e Lucas explicam sua filiação tribal. Os pais dele levam ao templo as oferendas prescritas. A mãe tem que passar por um período de exclusão, para restaurar desse modo a pureza após ter dado à luz, como ensinava a tradição.

Através do batismo, mais tarde, Jesus se solidariza com seu povo. Segue um período de reclusão e exclusão no deserto, através do qual ele passa a fazer parte da vida pública como adulto, curando e ensinando a seus irmãos e irmãs.

Ao final de sua vida, Jesus participa do último rito de passagem: a morte na cruz. Esta, para os africanos, é sinal de perfeição, e não de vergonha.


JESUS, O
ANTEPASSADO

Se, por meio dos ritos de passagem, Jesus se torna membro de pleno direito da comunidade humana, é por meio da ressurreição que ele passa a fazer parte da comunidade dos antepassados.

A centralidade da ressurreição para a fé cristã indica a possibilidade de que Jesus não seja apenas o primogênito entre os vivos, como Irmão mais Velho, mas também o primogênito entre os vivos que morreram, como Antepassado.

A imagem de Jesus como Antepassado encontra ressonância no evangelho de João, de três modos específicos:

Em primeiro lugar, os antepassados são mediadores da força de vida para a comunidade. Do mesmo modo, Jesus é como a videira que dá vida aos ramos (Jo 15, 4-7). Ele é a água da vida (Jo 4,14), o pão da vida (6,51) e a vida em abundância (10,10).

Em segundo lugar, os antepassados são mediadores entre os viventes, com suas orações e oferendas, e Deus. É desse modo que muitos africanos entendem essas palavras, tão familiares: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim" (Jo 14,6).

Em terceiro lugar, os antepassados velam pela comunidade. Como Jesus, que não abandona os discípulos desolados (Jo 14,18) e lhes promete o Espírito.


JESUS, O
GRANDE CHEFE

Segundo a religião tradicional africana, a salvação acontece nesta vida, no equilíbrio social e na harmonia com vivos e mortos. É equilíbrio interior que produz bem-estar físico. É algo que acontece aqui e agora, quando se é abençoado com a amizade, com uma descendência numerosa e uma vida longa.

Assim, se Jesus quer se tornar salvador para os africanos, tem que oferecer algo mais que uma vida eterna. Deve controlar as forças de que os africanos lutam por se libertar, aqui e agora, como a infecundidade e os maus espíritos. Para as comunidades africanas, uma das figuras que assume essa responsabilidade salvadora é o chefe da tribo.

O chefe é o guardião da comunidade, a pessoa que encarna as aspirações religiosas e políticas da tribo. Ele tem que ter valentia e heroísmo, sendo capaz de triunfar sobre os inimigos dos mundos terreno e espiritual. A força do chefe vem de sua posição de mediador entre esses dois domínios. Sua autoridade provém de seus ancestrais.

O chefe é mediador entre todos os que constituem a comunidade: a tribo, os antepassados e, inclusive, os que ainda não nasceram. A comunidade adquire identidade e coesão a partir dele.

Essa solidariedade entre tribo e chefe se assemelha à que existe entre a Igreja e Cristo. Como a tribo se identifica com o chefe, a Igreja se identifica com Cristo (1Cor 12,27).

Cristo é a cabeça, "cujo corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura, com a operação harmoniosa de cada uma de suas partes, realiza o seu crescimento para a sua própria edificação no amor" (Ef 4,15-16).

Existe ainda outra dimensão desse papel de mediador. Quando acontece um conflito na comunidade e se rompe o equilíbrio social, o chefe deve colocar as necessidades da comunidade acima de seu bem pessoal. Deve fazer de tudo para aliviar as tensões. Com outras palavras: a mediação se transforma em reconciliação.

Em seu último ato de reconciliação, Jesus coloca em primeiro lugar a comunidade. Na cruz, ele reconcilia o mundo com Deus (2Cor 5,18) e cria uma nova humanidade, livre de hostilidades (Ef 2,11-16). Ele é Senhor, ou Chefe, precisamente porque se humilha na vida e na morte (Fil 2,5-7).

Por isso, o universo inteiro – os seres celestes, os terrestres e os que vivem sob a terra – confessará que Jesus Cristo é o "Chefe" (Fil 2,10-11).


JESUS,
AQUELE QUE CURA

Outra figura-chave da vida tribal africana é a pessoa encarregada de restabelecer a plenitude e a salvação. É o nganga, o curandeiro-médico tradicional. Um teólogo congolês explica que o curandeiro é a pessoa mais poderosa e complexa da sociedade. De fato, a palavra "nganga" pode ser traduzida por sacerdote, químico, mago, profeta e vidente.

Qualquer nome que se use, o importante na cura africana é seu caráter holístico, isto é, leva-se em conta a totalidade da pessoa, matéria e espírito. Busca-se tanto detectar as prováveis causas espirituais quanto sociais do sofrimento físico ou das tensões na comunidade.

Uma vez diagnosticada a doença, o nganga receita remédios que vão desde sacrifícios até danças pelo restabelecimento das relações sociais.

Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas estão cheios de histórias que mostram Jesus curando. São três as semelhanças entre Jesus como Aquele que cura e o nganga africano:

Em primeiro lugar, Jesus reconhece a ligação entre corpo e espírito. Junto com a cura física, ele perdoa a culpa: "Os teus pecados estão perdoados" (Mc 2,5). E elogia a fé dos doentes: "A tua fé te curou" (Mc 10,52).

Em segundo lugar, Jesus coloca a doença no contexto da reintegração social. Os portadores de lepra – hoje conhecida como hanseníase – têm que avisar os sacerdotes (Mc 1,44; Lc 17,14). O possuído pelo demônio, de Gerasa, tem que voltar para casa e para junto de seus amigos (Mc 5,19). A sogra de Pedro tem que voltar a cuidar da casa depois de curada (Mc 1,31). Até mesmo as palavras "vão em paz" contêm o sentido da totalidade social e do restabelecimento da saúde (Mc 5,34).

Finalmente, os métodos de cura de Jesus se aproximam aos dos nganga africanos. Ele aplica saliva ou mistura de saliva e barro sobre o corpo do enfermo (Mc 8,23), cospe nos dedos e toca a língua do surdo-mudo (Mc 7,33), faz sinais e geme (Mc 7,34).


JESUS, O
LIBERTADOR

A teologia negra sul-africana se voltou para o Jesus histórico dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) – como outras teologias da libertação –, descobrindo nele o libertador dos oprimidos.

Junto com essa imagem de Jesus Libertador, porém, incorpora influências do Movimento de Consciência Negra, que convida negros e negras a acolher a beleza de sua raça.

É fundamental, para isso, fazer valer a própria história e tradição. Foi-se o tempo da história contada por conquistadores holandeses e ingleses sobre "negros pagãos". Agora é a vez da história dos mártires negros que lutaram pela justiça. Não é uma história de exclusão ou submissão, mas de inclusão e libertação.

Essa teologia defende que Jesus passou a vida restituindo aos oprimidos e oprimidas a história e as tradições que lhes estavam sendo negadas.

Curados, os leprosos podem agora apresentar aos sacerdotes as oferendas prescritas. Os aleijados podem guardar o sábado. Os cegos, os coxos e as crianças podem acompanhar Jesus ao templo. As prostitutas podem reclamar sua entrada no Reino de Deus. Os cobradores de impostos podem ser chamados "filhos de Abraão".

A todos eles e elas, doentes e pecadores, todos os excluídos, Jesus restitui sua história e suas tradições.

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Trechos de matéria publicada pelo boletim "Dei Verbum", da Federação Bíblica Católica (Nş 42, 1/97).


Libertação e inculturação

São conhecidos os efeitos devastadores do colonialismo sobre costumes e práticas africanas.

No campo religioso, segundo o líder cristão sul-africano Desmond Tutu – bispo anglicano e Prêmio Nobel da Paz –, existe uma esquizofrenia na alma africana, entre a cultura tradicional do continente e o cristianismo ocidental.

A cultura ocidental chegou junto com o Evangelho. Com freqüência, por exemplo, música, ritmos e danças africanos foram substituídos por cânticos ocidentais acompanhados por um órgão importado. Face à herança perversa do colonialismo, tanto no campo cultural quanto no político, não é de se estranhar que os teólogos africanos, quando se esforçam em ler o Evangelho nos diferentes contextos locais, caminhem em duas direções. Uns dão prioridade às questões políticas (teólogos da libertação), enquanto outros consideram prioritárias as questões ligadas à cultura africana (teólogos da inculturação).

Até pouco tempo atrás, a maioria dos teólogos da libertação provinha da África do Sul. Ali, a teologia negra relacionava a mensagem libertadora do Evangelho com as situações de opressão provocadas pelo apartheid. Para esses teólogos, Jesus é um libertador.

Sem dúvida, porém, para a maior parte da África ao sul do Saara, a forma dominante é a teologia da inculturação. A meta é integrar o cristianismo na vida e na cultura dos povos africanos. Os principais representantes dessa teologia definem Jesus como o Irmão mais Velho, o Antepassado, o Chefe ou Aquele que cura. São imagens familiares à cultura africana. – J.R.L./P.P-L.