Novo Milênio

Bairro 2000


Nasce um menino num lugar qualquer do Brasil. É noite de Natal.


Dimas A. Künsch


Zé, me conta o que tá acontecendo!

– Nada não, Maria. É coisa que dá e passa.

Nunca viu o marido tão preocupado, e o pior é que ele não fala. Só anda de um lado para outro, pensativo, cabisbaixo, evitando os amigos.

Tem motivos, e Maria sabe disso muito bem. Mas podia pelo menos falar, se abrir. Porque também ela tem com que se preocupar, e muito. O bebê pode nascer de uma hora para outra – ai, meu Deus! –, ali, no meio daquele sem-conforto e daquela sujeira toda.

– Conversa comigo, Zé, pelo amor de Deus!

José, um homem corajoso, o "seu" homem. Foi um dos primeiros a vibrar com a proposta e a dizer que topava, quando um grupo de famílias decidiu ocupar um terreno baldio na periferia da grande cidade.

Quanto orgulho de ver seu companheiro, lá na frente, com aquela disposição toda, animando o pessoal! "O povo unido jamais será vencido!", gritava, com uma força e uma convicção que Maria até então desconhecia.

Depois, a divisão dos lotes, as tábuas, o martelo, os pregos, as folhas de zinco... E ela bem ali, o tempo todo, dando força e ajudando.

Um barraco de um cômodo só, uma coisinha de nada, mas dava para ir ajeitando aos poucos, com fé em Deus. Melhor que pagar aluguel, porque dinheiro não existia. Com o José desempregado...

– Pelo amor de Deus, Zé! Me fala o que tá acontecendo!

– A polícia, Maria! Dizem que vai ter despejo! O juiz já baixou uma liminar...



Os dias passam, e a ameaça paira no ar. Todo mundo com medo. Um advogado do Movimento de Moradia consegue sustar a liminar. Não vai ser hoje nem amanhã, pode ser que nem aconteça o despejo, Deus é quem sabe! O que não pode é desanimar.

Mas José já não tem forças para gritar que "o povo unido jamais será vencido". Só pensa em Maria, a "sua" mulher, e no filho que está para nascer. Foi por ela, e também pelo filho, que arriscou entrar no movimento. Se for menina, vai se chamar Esperança. Se for menino... Ah, é melhor discutir isso com Maria.

Conversa com Don'Ana, moradora de um barraco vizinho. Parteira das boas, um amor de pessoa. Pode ser a qualquer momento...

É noite, e José ouve ao longe o toque dos sinos de uma igreja, convidando os fiéis para a celebração. "E eu lá tenho tempo para cuidar de religião?!", pensa com seus botões.

– Ai, Zé. Me acode!

– Don'Ana! Don'Ana!

A vizinha chega correndo, com um "sai pra lá, Zé, que isso não é coisa pra homem".

"Espere, José! Vai dar tudo certo."

Ele espera. Até que...

O choro da criança interrompe uma prece ao Padre Cícero, a única que sabe rezar, coisa aprendida com a mãe, lá no Ceará. "Nasceu! Nasceu! Obrigado, meu padim Padre Ciço!"

Enxuga o suor do rosto. Olha para o alto, aliviado, e vê uma estrela cortando o céu. Céu bonito, nem tinha reparado.

Os sinos da igreja agora parecem tocar bem ali, na porta do seu barraco. Não é que dá até para ouvir os cânticos!?

"É Natal, é Natal, é Natal, nasceu o Salvador..."

– Vem ver, Zé! É um menino! Forte que só vendo – anuncia a parteira.

Entra. De onde vem essa luz toda, se nem energia elétrica tem? E esse cântico e essa paz e esse encanto? De onde? De onde?

Um sorriso nos lábios de Maria. Ah, o seu homem vai gostar! O menino tem a cara dele, pode jurar.



A notícia corre de boca em boca, de beco em beco, de barraco em barraco. E não é só a notícia que sacode a calma da noite. É também a luz brilhando na escuridão, é o toque dos sinos, é o cântico, tão bonito, como ninguém nunca ouviu antes.

– Bota mais uma! – ordena o bêbado. – Põe aí na minha conta.

Ele jura que viu um anjo passar, dizendo alguma coisa, não sabe o quê. Não, não é a cachaça! Diz até logo e sai cambaleando, rumo à casa de José. O dono do boteco vai junto.

"É coisa do outro mundo..."

– Pode entrar, a casa é sua! – convida José, todo sorridente.

E entra o bêbado e entra o dono do boteco. E já entraram os vizinhos da parte de cima e os vizinhos da parte de baixo do morro.

Indiferentes ao tumulto, o cachorro e a gata da casa dormem sossegadamente debaixo da rede onde repousam Maria e o filho. De dentro da gaiola pendurada na parede, o papagaio observa tudo: "Loro! Loro! Dá o pé, loro!"

– Pode entrar, a casa é sua!

Chega mais gente, e ninguém se pergunta como é que faz para caber todo mundo. De repente, o Bairro 2000 – é esse o nome que deram à ocupação – parece virar uma casa só, bem iluminada, com direito a música vinda ninguém sabe de onde, com uma paz e um encanto que ninguém sabe explicar.

– O povo unido jamais será vencido! – grita o bêbado, com a voz trêmula de muitos goles tomados.

O papagaio dá o troco: "Bêbo! Bêbo!".

Na igreja, lá embaixo, os fiéis cantam, e suas vozes invadem o Bairro 2000 em festa: "Glória a Deus nas alturas, é o canto das criaturas. Paz para o povo sofrido, é o grito dos oprimidos...".



Dá licença, minha gente! Paz pra quem é de paz!

A mãe-de-santo entra toda enfeitada, vestido branco de rendas, um lenço também branco na cabeça. Veio da Bahia, não se sabe como. Veio seguindo uma estrela, na companhia dos Orixás.

Abençoa Maria, pega o Menino no colo e faz uma reza, enquanto as mulheres distribuem bolo de milho e café para todos.

Uma menina de rua de Porto Alegre traz para o recém-nascido um presente ainda embrulhado, recebido de uma dona caridosa em noite de Natal:

– É pra ele brincar. Ele é meu irmãozinho.

Chega um índio: "É o Galdino, é o Galdino! Ué, ele não tava morto?".

Chega um sem-terra do Pontal do Paranapanema. Chega uma menor prostituída de Fortaleza. Chega um favelado da Rocinha. Chega gente de todo canto, chega gente de todo lugar, ninguém sabe como... É coisa do outro mundo!

Abraços. Sorrisos. Calor humano.

– Trouxe um presentinho, é pouca coisa, mas é de coração!

– Trago lembranças de todo mundo, e muita bênção e muita paz!

– Trouxe um pouco de arroz e de feijão, e também umas batatinhas!

– Não trouxe nada porque não tinha nada pra trazer, mas vim correndo cumprimentar Seu Zé e Dona Maria!

Do alto-falante da igreja, lá embaixo, ressoa a voz do pregador: "O povo que andava nas trevas viu uma grande luz...O nome dele será Jesus."

Jesus?!?

– Maria, vamos chamar nosso menino de Jesus!

– Muito bom! –, se alegra o índio. – Vai ser meu xará, porque eu também sou Jesus: Galdino Jesus dos Santos, do povo pataxó, às suas ordens!

– Precisa entregar o coração a Jesus! – fala um crente da Assembléia de Deus, olhando na direção do bêbado, enquanto o papagaio repete "Jesus, Jesus".



O Espírito de Natal toma conta de lares e templos de norte a sul do Brasil. Noite santa. Noite abençoada.

"Noite feliz, noite feliz... pobrezinho nasceu em Belém..."

O menino da família rica do bairro do Morumbi, em São Paulo, desembrulha presentes e mais presentes, enquanto a mãe ordena que a empregada negra coloque a mesa para a ceia.

Na Globo, a transmissão da Missa do Galo, direto do Vaticano. O papa anuncia que está chegando o Jubileu do Ano 2000, tempo de festa e de grandes celebrações.

Na catedral, o senhor cardeal-arcebispo explica aos presentes que jubileu vem da bíblia. Significa tempo de conversão, de arrependimento dos pecados, de mudança de vida.

– Significa tempo de justiça e de solidariedade – arremata o padre de uma igreja da Baixada Fluminense. Ali são quase todos negros, todos pobres.

Ele recorda a história do nascimento de Jesus: num estábulo, pobre entre os pobres, um excluído.

Repete as palavras pronunciadas por Jesus, um dia, quando já adulto: "Obrigado, Senhor, porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do vosso agrado!".

Na televisão, o papa encerra a homilia, convocando novamente os cristãos e todo o mundo a se preparar para a chegada do ano 2000.

Numa casa da periferia de Belo Horizonte, uma criança chora. Está com fome, não consegue dormir. A mãe reclama do marido, que há mais de um mês não traz um centavo para casa.

– Come a sobremesa –, diz a mãe do bairro do Morumbi para o seu filho de cinco anos, que só pensa na montanha de brinquedos que ganhou, sem contar a promessa de uma viagem com os pais para a Disneylândia, nas próximas férias.



No Bairro 2000, o recém-nascido agora dorme, depois de passar de braço em braço, de colo em colo, de prece em prece.

Diante da porta do barraco de José e Maria, a Folia de Reis do Sul de Minas Gerais afina os instrumentos. Um apito, e começa a cantoria: "Meu senhor, dono da casa, dá licença, eu quero entrar, ai, ai".

A multidão de vizinhos, e também de visitantes de outros cantos e lugares, acompanha atenta, o coração em festa, cada verso da lenta e demorada narrativa popular do nascimento do Menino Deus.

"Lá pras bandas de Belém, pobrezinho ele nasceu, ai, ai".

Pastores, anjos, a estrela-guia, os reis magos... E ninguém dá atenção quando o papagaio faz coro com os cantores, repetindo o "ai, ai".

"O rei Herodes, o assassino, quis matar o Menino Deus, ai, ai."

José sente um frio na espinha. Pensa na ocupação, na ameaça de despejo. Seu olhar percorre a multidão reunida no seu barraco de tábuas.

"Pro Egito ele fugiu, com Maria e com José, ai, ai."

Desatento aos apelos do crente da Assembléia de Deus, o bêbado vira mais um gole e oferece o copo a José:

– Preocupa não, Zé! Deus dá um jeito. Vamos comemorar!

"Maria e José, ai, ai", repete o papagaio.