Jubileu
com pé no chão


Solidariedade para com os excluídos e exame de consciência no quinto centenário do início da evangelização no país. É assim que a Igreja católica pretende entrar no terceiro milênio.

 Manoel Godoy



O ano de 1997 foi o primeiro do Projeto Rumo ao Novo Milênio (PRNM), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Lançado oficialmente em dezembro de 96 como preparação para a celebração cristã do ano 2000, um segundo objetivo importante é promover um exame de consciência sobre as práticas cristãs e católicas ao longo dos cinco últimos séculos no Brasil, desde a chegada dos portugueses ao país, em 1500.

O projeto reúne, "de forma criativa", as orientações da carta apostólica "Advento do terceiro milênio", do papa João Paulo II, as propostas do Quinto Congresso Missionário Latino-Americano e as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil.

O padre Manoel Godoy, da equipe executiva, comemora o primeiro aniversário de implantação do projeto. Segundo ele, o saldo é positivo. Os leigos estão na dianteira, e a grande maioria das dioceses aderiu com bastante entusiasmo.

"Quem não entra na roda são justamente as dioceses mais conservadoras". Uma atitude, no mínimo, contraditória, argumenta Godoy: "Não era de se esperar que elas não comungassem de um projeto que tem suas origens em uma carta do papa".

Godoy acha que o projeto não tem o tom triunfalista que muitos temiam. Em entrevista a SEM FRONTEIRAS, ele sustenta que a questão de fundo é a seguinte: "O que a Igreja tem a dizer aos excluídos e oprimidos de hoje?".


SEM FRONTEIRAS – O que a Igreja católica pretende realmente com o Projeto Rumo ao Novo Milênio?

Manoel Godoy – O primeiro grande objetivo é a preparação da Igreja para o novo milênio que se aproxima. Quer ajudar a gente a se abrir mais para a realidade social, política, econômica e cultural, sobretudo para a situação dos excluídos, neste final de século e milênio. A questão de fundo é essa: o que a Igreja tem a dizer a toda essa gente hoje? O projeto também recebeu um empurrãozinho do papa João Paulo II.


Como assim?

– A carta apostólica "Advento do terceiro milênio", do papa, serviu de provocação. Com ou sem essa carta, porém, a gente, por aqui, já se perguntava como celebrar os quinhentos anos de evangelização do Brasil e os 2 mil anos do nascimento de Cristo.

O recado do papa obteve uma resposta criativa. Centramos a atenção mais em cima do eixo principal da carta: Jesus Cristo, o Espírito Santo e Deus Pai, bem como a relação da Igreja com os pobres.

Pena que não se fale muito nisso, mas a carta do papa deixa clara a questão do resgate das dívidas sociais, especialmente quando toca no tema do perdão da dívida externa. Quer reforçar, e muito, a opção pelos pobres.

Outra coisa fundamental que o projeto quer pôr em evidência é a seguinte: uma das maneiras privilegiadas para celebrar o ano 2000 é reassumir com coragem as reformas promovidas pelo Concílio Vaticano II. Isso é importante, até porque existe uma onda conservadora dentro da Igreja, gente querendo dar marcha a ré.


Mesmo assim, não há o risco de se cair em um certo triunfalismo?

– Não, porque o projeto vai em linha contrária. Não é triunfalista, não quer fugir dos problemas que afligem o povo, não quer enganar ninguém com ondas milenaristas. Quer ajudar o cristão a viver a fé e o feijão com arroz do dia-a-dia. Os subsídios que estamos lançando apontam todos para o compromisso com as lutas populares. É lógico que sempre vai ter alguém promovendo pereginações à Terra Santa ou a Roma.


Que balanço o senhor faz do primeiro aniversário do projeto?

– Quando o projeto foi anunciado, houve críticas e temor de que caísse nesse triunfalismo de que você falou antes. Passado o primeiro ano, o pessoal fica de boca aberta, pois isso realmente não aconteceu. Pelo contrário, as comunidades estão vibrando com o projeto. Fizeram uma reflexão séria sobre o evangelho de Marcos, no ano passado, e estão acolhendo com alegria a proposta do estudo do evangelho de Lucas neste ano.

Além disso, há uma sintonia entre a Semana Social e o PRNM. Até porque as duas iniciativas, que duram ambas três anos, abordam temas comuns, ligados às dívidas sociais, como o desemprego, a educação, a falta de moradia, a dívida externa.


Como está sendo a adesão das dioceses ao projeto?

– O projeto, que não pretende ser nenhuma camisa-de-força, abre espaço para uma recepção criativa por parte das dioceses e comunidades. O fato é que a maioria das dioceses tem pautado suas atividades até o ano 2000 a partir das três prioridades do projeto: diálogo, serviço e anúncio. Muitas chegaram a formar grupos especiais encarregados de questões como direitos humanos, Campanhas da Fraternidade, Grito dos Excluídos e outras.


Há dioceses que se negaram a participar?

– O fato é que algumas dioceses, que defendem quase uma veneração pelo papa, na hora de responder à carta dele em sua totalidade, não o fazem. Pensam só no interesse próprio, isto é, numa resposta muito do jeitinho espiritualista.

Por outro lado, há também bispos que vão mais a fundo. Consideram ter chegado a hora de a Igreja resgatar também algumas dívidas dela mesma. É o caso, por exemplo do tratamento que vem sendo dispensando a divorciados e a padres casados. É, sobretudo, o caso da participação da mulher.

Porém é bom lembrar que, nas dioceses que não vestiram a camisa do projeto, há comunidades e paróquias participando ativamente, mesmo sem o aval do bispo.


Como as comunidades de base estão participando?

– Sem as comunidades, o projeto não anda para frente, porque é na base que ele quer caminhar. Então são, de fato, protagonistas.


Em que tudo isso tem ajudado no diálogo com outras religiões e Igrejas cristãs?

– Tenho a impressão de que esse seja um dos grandes ganhos do projeto: a abertura para a dimensão do diálogo com outras religiões e Igrejas cristãs.

Há dioceses se questionando sobre como conversar com os novos movimentos religiosos, fazendo disso um desafio. Graças a Deus, porque não era bem assim até pouco tempo atrás.

Mais uma coisa bonita é que está para ser criada, na CNBB, uma comissão para assuntos afro-brasileiros. Pela primeira vez, os negros vão ter também a sua comissão em nível de conferência de bispos.

Outra coisa importante é o trabalho conjunto entre a CNBB e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Inclusive está sendo trabalhada a idéia da Campanha da Fraternidade ecumênica para o ano 2000. Você imagina que bonito a gente passar em frente a uma igreja luterana ou presbiteriana e ver o cartaz da campanha?! Vai ser tudo em comum: cartaz, hinos, texto-base...

Se a gente se alegra com essas coisas, por outro lado se entristece quando vê que ainda tem gente na Igreja que não se compromete em dialogar com outras religiões e Igrejas, nem com os mais pobres – prefere empurrar com a barriga.


Nesse sentido, o projeto veio para cutucar...

– Sim. Veio também ajudar a Igreja a fazer uma espécie de exame de consciência sobre sua atuação nesses quinhentos anos de presença no Brasil. Foi um assunto difícil de incluir no projeto. Entretanto, no fim, conseguimos pôr um capítulo em que se fala da revisão de nossas atitudes quanto à primeira evangelização.

O documento menciona os "enormes sofrimentos provocados aos indígenas e negros como o maior pecado da expansão colonial". Diz que "a evangelização foi acompanhada por injustiças e ações anti-evangélicas".

Retomamos também o discurso que o papa fez na abertura da Quarta Conferência dos Bispos Latino-Americanos, em Santo Domingo, em 1992: "A própria evangelização constitui uma espécie de tribunal de acusação para os responsáveis por aqueles abusos".


O que mais a CNBB está preparando para ajudar a celebrar esses quinhentos anos?

– Está para ser formada uma comissão mais voltada para essas celebrações, encarregada de preparar subsídios para ajudar na reflexão das comunidades. As celebrações vão ter um momento penitencial bastante forte e, ao mesmo tempo, um outro, de agradecimento pela presença de tanta gente que deu a vida pela difusão do Evangelho em nossas terras. Quanto à data, talvez se realize no dia 21 de abril do ano 2000 mesmo, junto com as celebrações civis.


No campo das missões, o que o projeto traz de novo?

– O eixo forte do documento é a abertura da Igreja para realidades fora dela. Em 1997, trabalhamos mais na formação do evangelizador.

Este ano, a ênfase vai para as missões populares, buscando aproximar quem vive afastado da Igreja e dialogar com fiéis de outras Igrejas.

Em 1999, queremos ganhar o mundo. Já estamos fazendo um levantamento para ver o número de missionários brasileiros que atuam no exterior. Queremos acentuar bastante isso: a necessidade de partilhar a nossa experiência como Igreja com outros povos. Em todo esse processo, são os leigos, homens e mulheres, que estão na dianteira.


O texto do projeto fala também da participação da mulher nas decisões da vida da Igreja?

– Essa questão está muito longe de ser resolvida, porque tem a ver com a estrutura da Igreja, e não é um problema só do Brasil. O projeto tem coisas bastante corajosas nesse sentido. Reconhece que esse é um tema a ser aprofundado, que a mulher deve participar mais ativamente das decisões na Igreja.

Textualmente: "É preciso que o reconhecimento da dignidade da mulher na vida da Igreja e a busca de relações verdadeiramente humanas entre homens e mulheres sejam objeto de reflexão teológica e efetivo progresso na vida das comunidades".