Novo Milênio / Quinto Centenário

Berrante
do Jubileu

O júbilo do jubileu não pode ser cínico diante da dura realidade e tem de ser "mais que um jubileu light" para ser cristão.


Pedro Casaldáliga


Alguns crêem que já é hora de mudar nossos paradigmas, e até lhes parece que os mártires estorvam, nesta memória pós-moderna ou pós-militante.

Na onda da decepção, amigos e inimigos vêm lançando três perguntas provocadoras:
– O que fica do socialismo?
– O que fica da teologia da libertação?
– O que fica da opção pelos pobres?
Espero que não acabemos nos perguntando o que fica do Evangelho...

Muitos congressos, manifestos e revistas vêm se perguntando tanto pelo futuro da esquerda como pela missão da Igreja hoje. Em todo caso, ao Evangelho e à esquerda possivelmente lhes caiba estar sempre na oposição.

Enquanto isso, o neoliberalismo, o mercado total, "a geopolítica do caos" (Ignacio Ramonet), "o horror econômico" (Viviane Forrester) está aí, garroteando o mundo.

Os heróicos zapatistas convocaram um Encontro Universal pela Humanidade e contra o Neoliberalismo. E o próprio papa teve a coragem de definir a Igreja, nesta hora, como "a consciência dos novos pobres do neoliberalismo", precisamente.


Grandes desafios se colocam ao novo milênio: na efetivação dos direitos humanos e dos apenas incipientes direitos dos povos; nas relações interculturais e inter-religiosas; na economia sustentável; no respeito eficaz à ecologia, na distribuição eqüitativa dos encargos e das riquezas; na reformulação dos organismos mundiais que constituem o governo de facto do mundo...

É hora de revisar, de fazer exame de consciência e de pedir perdão..., mas com o propósito de emenda.

Foi notícia o livro de L. Accatoli "Todos os mea culpa de João Paulo II": o papa pede perdão 94 vezes.

Não falta quem reaja, definindo-o como "um mea culpa pela metade", se se repetem na atualidade gestos ditatoriais ou imisericordiosos, ou se se estigmatizam irresponsavelmente o Conselho Mundial de Igrejas e a Teologia da Libertação.

Nem se trata de esperar quinhentos anos para pedir perdão.

Ou, ainda, não seria correto insistir em que os "culpados" seriam alguns "batizados que não viveram sua fé", eximindo a Igreja como instituição (o papado, os episcopados, as congregações religiosas, o direito canônico, a teologia, a pastoral...).

Por outro lado, "pedir perdão pelos fatos da história é um absurdo", segundo os conservadores.

A gente pensa que é o mínimo que, a essas alturas do jubileu, podemos fazer. Nada nos desculpa.

O cardeal Primatesta, a maior autoridade eclesiástica da Argentina durante a ditadura militar, fechando o caminho para qualquer possível excusa de seus irmãos no episcopado, rompeu com essa confissão pública: "Nenhum de nós pode afirmar que desconhecia o que estava acontecendo".


A Igreja – as Igrejas, a Igreja de Jesus – vai celebrar, logicamente, com um solene jubileu, o Ano 2000 da Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré.

Diante da conjuntura-estrutura do mundo tragicamente neoliberalizado, na esperança desse outro mundo emergente, alternativo, e sentindo a Igreja dividida, contraditória e bastante anquilosada em suas estruturas, devemos perguntar:

– O que se pede à Igreja?

– Como queremos que seja a Igreja do terceiro milênio, una e plural, participativa e fiel aos tempos do Reino?

O mestre teólogo Karl Rahner dividia a história da Igreja em três grandes épocas:
  1. O breve período do judeu-cristianismo;
  2. O período da Igreja no âmbito cultural do helenismo e da civilização européia; e
  3. Este período nosso, que se abre com o Vaticano II e que tem – ou deve ter – como espaço vital da Igreja o mundo inteiro: "A Igreja no mundo, com o mundo e para o mundo, com seus diversos povos e culturas, suas pluriformes estruturas políticas e econômicas, suas diversas cosmovisões, religiões e confissões" (Norbert Greinacher).


O Ano de Graça que o berrante bíblico do jobel anunciava para Israel (Levítico 25,8ss), como ocasião sagrada para cancelar as dívidas sociais, como respiro para a terra e liberdade para os escravos, foi proclamado por Jesus, em seu primeiro discurso público, como um tempo universal e definitivo de graça, como a Boa Nova da Libertação (Lucas 4,16-21).

O jubileu é, pois, um tempo kairós (= hora de Deus em nossa hora humana) para cancelar dívidas – também as da Igreja – e um tempo forte de conversão pessoal e comunitária, social e religiosa. A não ser que se pretenda um jubileu light, um simples grande festival de aniversário.

A Igreja, as Igrejas – esta Igreja de Igrejas, que também somos nós –, está disposta a se converter nesta hora jubilar? Ou está só disposta a lançar alguns novos documentos e a programar algumas novas celebrações?

Cremos de verdade que Jesus plenificou o antigo jubileu, que se devia renovar periodicamente, e proclamou um jubileu definitivo e permanente, que não tem por que esperar o ano 2000?

Antes do ano 2000, ou passado o ano 2000, pode a Igreja de Jesus fazer que não entende as verdadeiras exigências desse jubileu definitivo e permanente que Jesus proclamou com sua boca humana e divina, e selou com seu sangue de vítima e de vencedor?


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Pedro Casaldáliga é bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia/MT. O texto que publicamos é parte da carta circular intitulada "O berrante do Jubileu", do início deste ano.