"O negro ainda é discriminado pela sociedade brasileira e pela Igreja católica." A constatação é do bispo José Maria Pires, da arquidiocese da Paraíba. Uma das principais vozes negras da Igreja católica, "Dom Zumbi" - como gosta e é carinhosamente chamado - calcula que, dos quatrocentos bispos católicos no Brasil, apenas cinco são negros. No caso dos padres, a matemática apresenta um saldo ainda menos enaltecedor: dos cerca de 14 mil sacerdotes, uns duzentos são negros. "Ainda faltam organização e consciência de nosso valor e de nossa cultura."
Dom Zumbi, aos 76 anos, trinta como bispo de uma região onde predominam negros e índios, diz que nunca sofreu discriminação aberta. Mas recorda uma visita pastoral feita há anos a uma pequena cidade da Paraiba. Foi recebido com cerimônia pela dona de uma casa que, na despedida, disparou: "Olha, pra ser sincera, eu estou vendo a cor de sua pele. Mas, como o senhor é bispo, pra mim deixou de ser negro". Uma ofensa e tanto...

Deus negro - Ele lembra que houve época em que os negros ficavam na porta da igreja, como seres inferiores. Hoje, em sua opinião, a Igreja católica está despertando para a cultura negra. "Está percebendo que a Palavra de Deus passa pelo jeito de ser de um povo."
Para ele, depois do despertar, a fase agora é de organização. Sinal disso é o crescimento da participação de seminaristas, religiosos e religiosas Agentes de Pastoral Negros. "Ainda há um longo caminho a percorrer, mas estamos mostrando uma nova forma de ser Igreja, baseada no fim dos preconceitos e no reconhecimento de nossa identidade."
O padre Antônio Aparecido da Silva, o "Toninho", concorda. Ex-diretor da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção e professor de teologia da PUC de São Paulo, Toninho percebe avanços na pastoral afro: a população negra é hoje tema de relatórios e estudos pastorais e prioridade na maioria dos planos diocesanos de pastoral das grandes cidades.
No campo da teologia surgem estudos e reflexões que não brotaram de forma acadêmica, mas de experiências comunitárias levadas para os bancos das faculdades. "O ponto de partida da teologia afro é o Deus dos pobres. Um Deus negro, que se revela na própria história da população negra, marginalizada, que o tem como única fonte de segurança."

Liturgia e cultura negra - Toninho foi um dos que sofreram discriminação ao tentar entrar no seminário. Prefere não citar nomes, mas conta que passou por uma diocese e uma congregação que não o aceitaram. Acabou entrando na congregação de Dom Orione. "É inegável que o preconceito existe. A própria CNBB reconhece que, até o Concílio Vaticano II, eram raros os seminários diocesanos e congregações que admitiam negros e negras."
O teólogo defende uma liturgia que recupere os principais elementos da cultura negra, que, em sua opinião, são "eficientes para representar o fundamental do projeto do Reino de Deus, para expressar a utopia da fé cristã". São as roupas, as cores, as comidas, o canto e a dança. O bispo José Maria Pires pensa do mesmo jeito. "A celebração não pode ser de braços cruzados, escutando leituras e ouvindo sermões. O povo tem de participar, dançar, cantar. Tem de se mexer para celebrar os louvores de Deus, não só com a mente mas com todo o corpo. São detalhes que fazem parte da cultura negra."
(Bernardete Toneto, pág. 18)

TAMBORES DO QUILOMBO

A música embala os sonhos de liberdade negra em vários ritmos. Sob o som dos tambores, será celebrada, em Salvador, neste mês de novembro, a Missa dos Quilombos, em comemoração aos trezentos anos da morte de Zumbi.
Atualizada, a obra dos poetas Pedro Tierra e Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia/MT, musicada por Mílton Nascimento, irá em seguida para o Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Porto Alegre. A produção da missa, como da primeira vez, será feita pelo frei Paulo César Bottas. Na Bahia, haverá um coral com percussão, ficando a narração a cargo de um ator negro.
A Missa dos Quilombos foi celebrada pela primeira vez em 22 de novembro de 81, na praça em frente à Igreja do Carmo, em Recife, onde, em 1695, a cabeça de Zumbi foi exposta no alto de uma estaca. Foi fruto de muito trabalho. Na época, os dois Pedros poetas resolveram dar seqüência à Missa da Terra Sem Males, que abordou a exploração do índio e o posicionamento da Igreja católica em relação à questão indígena. Para falar da escravidão negra e do silêncio teológico a respeito, os autores gastaram dois anos em pesquisas. Casaldáliga pediu a Mílton Nascimento - "um negro, criança maior" - para compor a música, "unificando, num rio de memória, sangues derramados, raças e sonhos, e as vozes de negros, índios, profetas, os criadores do povo, para levantá-las aos ouvidos indiferentes dos cínicos".
A nova versão da Missa dos Quilombos continua falando da exploração do negro. Mas ganhou nova roupagem, abordando assuntos recentes, como o massacre de 111 presos do Carandiru, em outubro de 92, e o pipocar de grupos de rap na periferia. Casaldáliga e Tierra consideram que a missa dá oportunidade para se cantar o quilombo construído no dia-a-dia. Eles escrevem: "O quilombo dos pretos e dos brancos, dos índios e dos amarelos, dos práticos e dos sonhadores, dos que não se rendem à ferocidade do mercado, dos que querem repartir o trabalho e a esperança, o pão e a invencível alegria desse povo de raiz negra, de negra dança, de negra beleza".
(Bernardete Toneto e Paulo Lima, pág. 17)


FICHAS

ZUMBI

O líder máximo da República dos Palmares, a maior comunidade de negros fugitivos da história das Américas, se transformou num verdadeiro mito para o povo negro. Hoje, em 20 de novembro - o dia de sua morte, aos 40 anos, em 1695 - celebra-se o "Dia da Consciência Negra". No tricentenário de sua morte, neste mês, Zumbi é visto como símbolo da luta pela liberdade.

O nome Francisco, que lhe deram no batismo, não pegou. Para os quilombolas (habitantes dos quilombos), ele era mesmo "zumbi", título reservado aos grandes guerreiros, aos corajosos. O termo evocava a presença de Zambi, que, em banto, quer dizer "deus guerreiro", ou, ainda, "a força do espírito presente".

Zumbi nasceu na comunidade de Macaco, a capital de Palmares, em 1655. Ainda criança, foi capturado por soldados do governador de Pernambuco e dado de presente ao padre Antônio de Melo, da paróquia de Porto Calvo. Estudou português e latim, foi coroinha.

Em 1670, com 15 anos de idade, fugiu da casa paroquial e se tornou, mais tarde, o líder de Palmares. E isso não foi à toa. É que Zumbi conhecia bem as estratégias militares dos senhores de engenho e dos soldados, tinha pulso firme nas decisões e muito carisma.


QUILOMBO DOS PALMARES

Quilombo é uma palavra de origem africana que quer dizer "acampamento".

A partir do século 16, pipocaram quilombos por todo o Brasil. O maior deles foi o de Palmares, no limite dos atuais Estados de Alagoas e Pernambuco. Na realidade, Palmares era formado por uma rede de povoados (eram onze, na metade do século 17), com uma população estimada em 20 mil habitantes. A República Negra resistiu por quase um século (1600-1694) às investidas do poder colonial.

Palmares não era só um esconderijo de negros escravos no meio do mato. Recentes descobertas arqueológicas na região dão conta de que ali conviviam, junto com a maioria negra, indígenas, muçulmanos e europeus excluídos do projeto colonial português.

Depois do fracasso de quinze expedições oficiais, o governo da Província de Pernambuco teve que recorrer à ajuda do famoso bandeirante paulista Domingos Jorge Velho para destruir a República Livre dos Palmares, que representava uma ameaça aos propósitos do poder colonizador.