Semana dos povos indígenas

A justiça do homem branco
não é cega

Cimi/CNBB

O mais duro golpe do governo brasileiro contra os direitos dos povos indígenas.
É assim que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) define o decreto 1.775, de 8 de janeiro, no texto-base para a Semana dos Povos Indígenas (14 a 19 de abril). Reproduzimos os principais trechos do documento do Cimi,
intitulado “Terra e justiça para os povos indígenas”.


“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
(Artigo 231 da Constituição brasileira)



O governo federal tem a obrigação, constitucional e moral, de efetivar a demarcação das terras indígenas e proteger os seus bens, garantindo aos povos indígenas condições que efetivem o princípio do respeito à diversidade étnica e cultural.

Entretanto, no primeiro ano do seu mandato, o governo de Fernando Henrique Cardoso não adotou qualquer providência em relação aos graves problemas que afetam esses povos. Revelou, dessa forma, completa falta de compromisso político com os legítimos interesses indígenas.

O golpe mais duro contra os direitos indígenas foi desferido no dia 8 de janeiro, quando o presidente da República editou o decreto 1.775/96, com novas regras orientadoras do procedimento administrativo para a demarcação das terras indígenas. A principal novidade foi a instituição do princípio do contraditório e da ampla defesa para os interessados na redução dessas terras.


PRESENTE PARA OS INIMIGOS DOS ÍNDIOS


Trocando em miúdos: todos os invasores ou interessados nessas áreas – Estados, municípios, fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e outros – têm agora a oportunidade de contestar e interferir na definição dos limites dessas terras. Basta apresentarem os elementos de prova que quiserem para demonstrar vícios nos relatórios de identificação das áreas a serem demarcadas.

Agora, essas contestações podem ser apreciadas entre a fase da identificação – realizada por uma equipe técnica da Funai – e a da delimitação – determinada por portaria do ministro da Justiça (veja quadro na próxima página). O decreto, dessa forma, transforma em “processo administrativo” o que antes era nada mais do que um “procedimento administrativo”, através do qual o Executivo explicitava os limites das terras ocupadas tradicionalmente pelos povos indígenas.


Permitir que uma terra indígena seja disputada administrativamente é dar legitimidade a títulos e ocupações de terceiros invasores, cuja nulidade é expressamente determinada pelo parágrafo 6° do artigo 231 da Constituição Federal.

Na realidade, trata-se da consumação de uma manobra, destinada a instituir um mecanismo que permite ao governo administrar as pressões das forças políticas e econômicas que lhe dão sustentação no Congresso Nacional, dos governos e entidades do estrangeiro interessados nas riquezas do solo e subsolo indígenas.

Os povos indígenas, as forças políticas progressistas e democratas, o movimento popular e sindical e seus aliados no Brasil e no exterior apontam outra alternativa para permitir que as terras indígenas sejam corretamente demarcadas. Não de forma isolada, mas inseridas em adequadas políticas de proteção e utilização das riquezas naturais existentes no país, em favor dos reais interesses populares, contando com a solidariedade internacional entre os povos.


O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO


De acordo com a Constituição, a União é proprietária das terras indígenas e responsável por sua demarcação. A demarcação das terras indígenas é uma providência necessária para explicitar os seus limites, facilitando as medidas de proteção.

É a Constituição, no artigo 231, que reconhece aos índios os direitos originários sobre “as terras que tradicionalmente ocupam”.

Esse conceito é definido com base em quatro aspectos, que devem ser considerados em conjunto, de acordo com os usos, costumes e tradições de cada grupo indígena.

São eles: as terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural (parágrafo 1°).


“Para demarcar uma terra indígena, a União deve se orientar pela definição de 'terra tradicionalmente ocupada por índios'. Da mesma forma, um juiz, para decidir uma questão levantada num processo, deve se basear nessa definição.”

Outra garantia constitucional importante é a que proíbe a ocupação, o domínio e a comercialização dessas terras e a exploração de suas riquezas, seja por quem for. Só há uma exceção, permitida pela Constituição: quando se tratar de ato de relevante interesse público da União. Além disso, somente as benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé terão direito à indenização (parágrafo 6°).

A Constituição proíbe ainda a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo em duas circunstâncias: em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco a população indígena que ocupa a terra, ad referendum do Congresso Nacional, e para defender interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso. Em qualquer hipótese, deve ser garantido o retorno imediato logo que cesse o risco (parágrafo 5°).


A VIOLÊNCIA CONTRA OS ÍNDIOS


Apesar das garantias constitucionais, a realidade brasileira revela a negação desses direitos, na medida em que a maioria das terras indígenas está invadida por diversos grupos econômicos. Esse fato tem sido a principal causa da violência praticada contra os povos indígenas.

Atualmente, em todos os Estados brasileiros existem conflitos decorrentes da invasão de terras. Esses conflitos contam, inclusive, com a participação de policiais militares e civis, cujos comandos seguem orientações ilegais de setores antiindígenas nos Estados.


“O decreto 1.775 tem estimulado o aumento das invasões e pressões contra a demarcação. Em algumas áreas, os ocupantes não-índios até retornaram, alegando que agora têm direitos sobre a terra.”


Até o momento, as áreas afetadas são as dos povos Uru-Eu-Wau-Wau, Suruí e Nambikwara, em Rondônia, Tembé, Urubu-Kaapor e Munduruku, no Pará, Munduruku, no Amazonas, Makuxi, Wapixana, Taurepang e Ingaricó, em Roraima, Enawenê-Nawê e Xavante, no Mato Grosso, Guarani-Kaiowá e Nhandeva, no Mato Grosso do Sul, e Kaingang, no Paraná.


A TERRA NA COSMOVISÃO INDÍGENA


Para os povos indígenas, a terra é fonte e mãe da vida, o espaço vital, a garantia de sua existência e reprodução enquanto povos, enquanto coletividades específicas e diferenciadas. Não é possível imaginar um povo indígena sem terra. Por isso, defesa do território equivale à defesa da própria existência física e cultural, material e espiritual. O que acontece com a terra acontece com os filhos da terra.

A terra não é, como na mentalidade capitalista, apenas fator econômico-produtivo ou bem comercial, de propriedade individual, que pode ser adquirido, transferido ou alienado segundo as leis do mercado.


“Na cosmovisão indígena, não é a terra que pertence ao homem. É o homem que pertence à terra. A relação com a terra é mística e espiritual, construída através dos séculos, de geração em geração. Nada se faz à terra sem lhe pedir licença.”


Porque a terra não é só a base do sustento, mas também o lugar territorial onde jazem os ancestrais, onde se reproduzem a cultura, a identidade e a organização social própria. Essa base territorial abrange o solo e o subsolo, a flora e a fauna, a água e o ar, os lugares sagrados.

Por tudo isso, os indígenas reivindicam que seja reconhecido e respeitado seu direito à terra, isto é, a seus territórios ou áreas amplas e contínuas, sem as quais sua existência enquanto povos étnica e culturalmente diferenciados fica comprometida.


A JUSTIÇA DA RESSURREIÇÃO


“Deus é justo” significa, no Antigo Testamento, que Deus é coerente, fiel e solidário. Deus é coerente às próprias normas, que são um desdobramento da sua sabedoria e do seu amor.

Ele é fiel às suas promessas e solidário com seu povo na realização do seu projeto histórico: “Faço aproximar a justiça que prometi, ela não está longe. E a libertação que predisse não tardará” (Is 46,13). No Antigo Testamento, justiça e libertação estão vinculadas ao território, que garante a vida do povo.

Também no Novo Testamento, a justiça é uma prioridade absoluta. A missão de Jesus de Nazaré se resume nessa prática, que exige bom senso, lucidez e discernimento. A prática da justiça inclui a perspectiva da gratuidade, do perdão e da cura, mas tampouco exclui a condenação do coração de pedra: “Quem não pratica a justiça, não é de Deus” (1Jo 3,10).

Para os cristãos, a prática da justiça é uma ordem do Senhor: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as outras coisas vos serão dadas em acréscimo” (Mt 6,33).


“Jesus de Nazaré, o Messias prometido como o Justo, sofre injustiça e exclusão. 'Morreu pelos injustos' (1Pd 3,18). Os legalistas sempre encontram ou fazem leis para perseguir, para excluir, para matar: 'Nós temos uma lei, e segundo essa lei ele deve morrer' (Jo 19,7).”


Um julgamento político-religioso levou Jesus à pena de morte na cruz. Deus, porém, fez o Autor da Vida ressurgir de dentre os mortos. A ressurreição do Justo inicia a justiça definitiva: a Justiça da Ressurreição.

O Ressuscitado envia a comunidade cristã ao mundo com a missão de ser testemunha dessa justiça. Da fidelidade ao Deus da Vida emana a missão de testemunhar que a vida prevalece sobre a morte.


TERRA E JUSTIÇA PARA OS POVOS INDÍGENAS


Em decorrência da fidelidade para com o Deus da Vida e com a nossa missão, assumimos um compromisso de solidariedade com os povos indígenas.

Testemunhar, no meio dos povos indígenas, a Justiça da Ressurreição significa defender e recuperar seus territórios de vida. A nossa solidariedade é radical, vai até às últimas conseqüências. O testemunho da Justiça da Ressurreição amarrou a nossa vida à vida dos povos indígenas.

Concretizamos essa fidelidade e solidariedade na luta pela coerência da sociedade brasileira para com as normas da Carta Magna. A Constituição garante as terras dos povos indígenas e promete sua demarcação, como início de um processo que faz dessas terras territórios alternativos de vida.

“Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (Mt 5,4). A partir da nossa fé, exigimos terra e justiça para os povos indígenas.


(Cimi/CNBB, p. 13)


Participe do protesto contra o decreto 1.775!
Escreva ao Presidente da República e ao Ministro da Justiça