Mulheres zapatistas

A fé e fogo

Chiapas, sudeste mexicano: vítimas da miséria cotidiana, as mulheres indígenas rompem com um passado de subordinação e partem para a luta. Hoje são 30% das forças do Exército Zapatista de Libertação Nacional.


Laura Greenhalgh


Mulher, indígena e pobre: três vezes nada, igual a nada. Depois de quinhentos anos de dominação, quem ousaria desafiar essa conta? O desafio sempre existiu. Só que, nos últimos dois anos, o desafio fincou pé em Chiapas, o Estado mais pobre da república mexicana, com metade de sua população constituída de mulheres, 85% delas indígenas e pobres. Três vezes nada?

Imagine o ar de surpresa daqueles que presenciaram o ataque guerrilheiro à cidade de San Cristóbal de Las Casas, a terceira maior de Chiapas, na madrugada de 1º de janeiro de 1994. Os rebeldes chegaram com a noite, rostos cobertos por toucas negras de lã, liderados militarmente por uma mulher – a major Ana Maria. Ela comandou a operação, articulando nada menos que novecentos insurgentes do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Não houve baixas humanas na tomada. Mais tarde, o subcomandante Marcos, cérebro político-militar do zapatismo, diria: "A operação em San Cristóbal foi um poema". Pois naquela madrugada, ouviu-se algo além das granadas dos rebeldes. Um grito de mulher ficou parado no ar.

Semanas mais tarde, quando foi aberto o primeiro diálogo entre o EZLN e o governo mexicano, fontes oficiais reagiram com desdém à inclusão do tema "mulher" na pauta das negociações. Julgaram "irrelevante". Também negaram a criação de uma comissão de mulheres no Conselho Estatal de Organizações Indígenas e Camponesas (Ceoic). Era "não prioritária". Mas ficaram ressabiados ao perceberem que a primeira declaração zapatista, datada de dezembro de 1993, já continha uma "Lei revolucionária de mulheres" (veja quadro).

Hoje, as mulheres representam 30% das forças do EZLN. Indígenas e pobres, são apontadas pelos próprios companheiros de luta como as mais devotadas e corajosas nos momentos de conflito. Em geral, as zapatistas reagem aos elogios com uma explicação muito simples: "Temos sido as mais valentes porque sempre fomos as mais reprimidas".

Encontrei-me com essas bravas criaturas em fevereiro deste ano, em Aguascalientes II, um dos centros de operação do EZLN, na região dos altos de Chiapas. Com os rostos semicobertos por lenços coloridos (que os mexicanos chamam de paliacate), as comandantes Susana e Hortênsia falaram da participação feminina na guerrilha e do trabalho de mobilização social junto às comunidades indígenas. Elas são membros do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI), o alto comando zapatista, e contam por que entraram para a organização.

"Nós já não tínhamos nada a perder", avalia Susana, falando em tzotzil, a língua de seu povo. "Eu vivia presa à minha casa, o dia inteiro carregando crianças às costas, cortando lenha, buscando água, passando fome. Via as crianças morrerem e os índios serem expulsos de suas terras. Mas naquela época eu não sabia pensar..."

Ao lado do subcomandante Marcos e da major Ana Maria, Susana participou da tomada de San Cristóbal. Antes disso, passou pelo menos dez anos maturando a idéia da rebelião armada. Seria ou não a forma de pressionar um poder político centralizador, que se mantém no comando do país há sete décadas, dando as costas para o México miserável? Só nos últimos vinte anos, foram contabilizados 25 mil casos de expulsão de terra por ordem dos fazendeiros chiapanecos, abençoados pelos governantes do PRI, o partido oficial, e acobertados pelas guardias blancas, bandos dedicados à prática do extermínio de índios. O primeiro levante zapatista simbolizou a indignação que já não cabia em si e transbordou.

"Nós nos preparamos para aquele momento. Para as mulheres foi mais difícil. Não tínhamos voz ativa em casa, nunca havíamos participado de uma reunião política, não sabíamos que tínhamos direitos... E então fomos percebendo que não nos restava outra saída a não ser pegar as armas, todos juntos, mulheres e homens", lembra Hortênsia.

Enquanto as comandantes contam os primeiros tempos da luta num belo final de tarde em Aguascalientes, dezenas de mulheres zapatistas estão reunidas num barraco de madeira para discutir os problemas da comunidade. São muitos os problemas e desmentem o ufanismo de políticos que juram que o México é parte do Primeiro Mundo.

As indígenas zapatistas não acreditam e sentem na pele o que as estatísticas apenas quantificam: no Estado de Chiapas, 99,2% da população vivem em comunidades rurais, e 80% das famílias, em média constituídas por seis pessoas, vivem com rendimentos abaixo de dois salários mínimos. No município de Altamirano, por exemplo, em 93% das casas cozinha-se à lenha, e as crianças não sabem o que é latrina. Em Ocosingo, localidade vizinha, 68% das moradias nunca receberam energia elétrica. Há em Chiapas uma enfermeira para 1.315 habitantes, uma cama de hospital para 1.400, e os casos de desnutrição crônica aumentaram em 641% nos últimos dez anos! Em compensação, vinte famílias ricas ocupam as terras mais lindas, frondosas e férteis da região... terras a perder de vista.

"Como não sentir revolta? Não podíamos mais ficar caladas", desabafa Susana. "A sina das mulheres daqui tem sido ter muitos filhos cedo para que eles morram cedo, de fome e doenças. O governo diz que quer negociar, mas oferece hospital sem médico, escola sem professor... E manda milhares de soldados para nos ameaçar. É preciso contar ao mundo que estamos cercados!"

Desde o levante zapatista, o governo mexicano vem tratando a guerrilha de maneira ambígua. "Gobierno de cara doble", definem os rebeldes, em poucas palavras. O presidente Ernesto Zedillo, que cumpre à risca o projeto neoliberal de seu antecessor, Carlos Salinas de Gortari, diz aos meios de comunicação que deseja negociar as "justas reivindicações do EZLN". Mas, ao mesmo tempo, autoriza o envio de tropas militares para Chiapas.

Fala-se hoje em algo perto de 50 mil soldados na região. O número exato é segredo de Estado, mas a militarização é visível. Impossível não ver as manobras militares nos territórios sob controle zapatista, não ouvir as bombas que algumas autoridades insistem em qualificar como "tiros de festim". Zedillo apenas repete a versão autorizada pelo governo estadunidense: os militares em Chiapas combatem o narcotráfico. Alguém acredita?

"Eles tentaram invadir aqui em janeiro deste ano", conta Susana, percorrendo com os olhos as montanhas que cercam as poucas casinhas de madeira de Aguascalientes. "Eram cinqüenta caminhões cheios de soldados e armas..." Na ocasião, as mulheres puxaram a resistência. Ao ver os soldados já quase à entrada do acampamento zapatista, dezenas delas subiram até a estrada, muitas carregando filhos às costas. Deram-se as mãos e formaram um cordão humano. O cinturão pela paz.

A participação feminina na luta zapatista – uma luta que vem sacudindo a consciência nacional – acontece em dois níveis. Em geral, as mulheres dividem-se entre milicianas e insurgentes. As primeiras conseguem viver nas comunidades, encarregando-se do trabalho político e de mobilização. São talvez as que sofrem mais de perto a pressão militar. Os soldados as ameaçam para saber onde estão os maridos, os pais, os irmãos, enfim, os homens da organização. Ou então para tentar violá-las mesmo, como comprovam as denúncias feitas por centros de direitos humanos e pela Anistia Internacional.

Quanto às insurgentes, elas já se despediram dos familiares para ingressar no exército indígena. São as "mulheres sem rosto" e sem endereço. Vivem clandestinas e armadas.

"Estamos vivendo uma bela experiência de igualdade", explica Hortênsia. "Na organização, nós, mulheres, temos as mesmas chances que os homens para conquistar graus militares. Passamos pelas mesmas provas e precisamos mostrar a mesma competência. Aqui somos iguais porque temos problemas comuns."

Uma revolução dentro da revolução. A igualdade de gênero bate de frente com tradições indígenas desfavoráveis às mulheres. Por exemplo, no artigo sétimo da "Lei revolucionária de mulheres", fica estabelecido que elas "têm direito a eleger seu parceiro e a não serem obrigadas por força a contrair matrimônio". Esse preceito revolucionário contraria o costume indígena de dar as jovens em casamento em função de um acerto financeiro entre os pais dos noivos.

Já o artigo terceiro estabelece algo que seria impensável tempos atrás: "As mulheres têm direito a decidir o número de filhos que podem ter e cuidar". Entusiasmadas, feministas trataram de implementar a plataforma pró-aborto nas comunidades indígenas. Encontraram resistências. Bravas, saíram afirmando que havia a interferência pessoal de Samuel Ruiz Garcia, bispo de Chiapas e defensor histórico dos indígenas, bloqueando a discussão do aborto. As líderes indígenas se indignaram.

Quem colocou um ponto final na discussão foi o próprio subcomandante Marcos. Num comunicado-resposta a uma feminista, Marcos disse: "Dizem as companheiras que não pedem clínicas de abortos porque nem sequer têm clínicas de partos. E que subir as colinas carregando um fardo de lenha é algo que nenhum código penal leva em conta".

Aos poucos, o feminismo começa a perceber que as indígenas chiapanecas são portadoras de uma agenda própria. O tema do aborto não é prioritário para elas. Mas o prato de comida de cada dia, sim. Como também é prioritária a presença de médicos e promotores de saúde que saibam falar os idiomas indígenas e que possam traduzir para uma mãe desesperada o que está se passando com a criança enferma que ela tem nos braços.

Do contrário, acontecem histórias como a de Aurélia. Conheci essa indígena tojolabale em outra Aguascalientes, desta vez no coração da Selva Lacandona, quase fronteira com a Guatemala. É lá que vive Marcos, o líder branco a quem os indígenas chamam de "El Sup", uma maneira divertida de dizer "Supercomandante".

Aurélia foi mãe de oito crianças. Só lhe resta uma filha, que há pouco tempo lhe deu um neto. Onde foram parar os outros filhos, Aurélia? "Calentura...", responde com olhos rasos d'água. Aurélia só é capaz de se lembrar da febre, o sintoma comum às várias doenças que dizimaram sua família. Mas a morte tem muitos nomes em Chiapas: desnutrição, vermes, pneumonia, diarréia, hepatite, cólera... "Entende por que eu luto?", pergunta-me Aurélia, certa de que a situação um dia vai melhorar.

E quando chegará esse dia? Ninguém sabe, mas ele está sendo construído por milhares de pessoas, mulheres e homens, crianças, jovens e anciãos. "Até que o governo atenda às nossas demandas, vamos nos manter em armas", insiste Hortênsia. As demandas são onze pontos: os zapatistas querem trabalho, terra, teto, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz. São os onze pontos ou nada!

As negociações têm acontecido, mas, de modo geral, não entusiasmam. Em fevereiro deste ano, representantes zapatistas e do governo mexicano encerraram a primeira fase do Diálogo de Paz de San Andrés. Trataram de autonomia e cultura indígena, mas firmaram poucos acordos – ao contrário do que andou divulgando a grande imprensa.

"Esses acordos são palavras de papel... Não garantem nada", diz o comandante David, um dos chefes máximos do EZLN. Uma coisa é certa: as negociações não irão avançar enquanto os zapatistas estiverem cercados. A presença ostensiva dos militares em Chiapas indigna a população. "Soldado mexicano, no mates su hermano", gritam até mesmo as crianças.

Como acontece hoje em várias partes do mundo, ocupações militares constrangem a população civil e, em especial, as mulheres. "Antes não havia prostituição em nossas comunidades. Mas depois que os soldados chegaram...", confessa Susana.

Casos violentos têm sido registrados. Como o que aconteceu a três jovens indígenas do grupo tzeltal. Elas saíram cedo de casa com a mãe para vender verduras. Do que pudessem arrecadar, comprariam um pouco de sabão para lavar roupa, óleo de cozinha e feijão. No caminho, foram surpreendidas por soldados que as acusavam de ser zapatistas e de ter participado da ação guerrilheira em Altamirano. As três foram esbofeteadas na frente da mãe e transferidas para o quarto de descanso dos oficiais. Sete homens as violaram.

Humilhadas, as indígenas zapatistas exigem que as violações a mulheres, nas zonas de conflitos, sejam julgadas como crimes de guerra – como estabelece o documento final da Quarta Conferência Mundial da Mulher (China, 1995), promovida pela ONU.

É bom lembrar que o governo mexicano assinou esse documento, sem fazer reservas. Portanto, que ele cumpra a sua palavra. E que recolha os seus batalhões. "Só nos interessa a paz verdadeira", finaliza Susana, a indígena que não sabia pensar.

(Laura Greenhalgh é jornalista)


A LEI DA SELVA

Conheça os dez artigos que compõem
a "Lei revolucionária de mulheres", concebida
pelas zapatistas a partir da experiência cotidiana
da miséria e da exploração.

  1. Primeiro – As mulheres, sem importar sua raça, credo, cor ou filiação política, têm direito de participar na luta revolucionária no lugar e grau que sua vontade e capacidade determinem.
  2. Segundo – As mulheres têm direito a trabalhar e a receber um salário justo.
  3. Terceiro – As mulheres têm direito a decidir o número de filhos que podem ter e cuidar.
  4. Quarto – As mulheres têm direito a tomar parte nos assuntos da comunidade e a ocupar cargos se eleitas livre e democraticamente.
  5. Quinto – As mulheres e seus filhos têm direito a atenção primária para sua saúde e alimentação.
  6. Sexto – As mulheres têm direito a educação.
  7. Sétimo – As mulheres têm direito a eleger seu parceiro e a não serem obrigadas por força a contrair matrimônio.
  8. Oitavo – Nenhuma mulher poderá ser golpeada ou maltratada fisicamente nem por familiares nem por estranhos. Os delitos de tentativa de violação ou de violação serão castigados severamente.
  9. Nono – As mulheres poderão ocupar cargos de direção na organização e ter graus militares nas forças armadas revolucionárias.
  10. Décimo – As mulheres terão todos os direitos e obrigações que assinalam as leis e regulamentos revolucionários.
(volta ao texto)


Veja também:

Entrevista com Dom Samuel Ruiz
bispo de Chiapas (jan. 96)

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