Reforma agrária



Corações rebeldes

No Maranhão, viúvas de trabalhadores rurais assassinados pelo latifúndio dão provas de resistência e coragem, no árduo trabalho coletivo de construção de cidadania no campo.


Antônio Carlos de Oliveira


– Os urubus comeram ele, porque os pistoleiros não deixaram ninguém se aproximar do cadáver.

Até hoje, Maria de Nazaré Souza não consegue conter as lágrimas quando lembra que foi impedida de oferecer um enterro digno ao marido, Antenor Sena de Freitas, assassinado em setembro de 1985 na fazenda Capoema, município de Santa Luzia, a 520 quilômetros de São Luís.

O caso de Maria de Nazaré não é único, nem de longe. Outras tantas viúvas de lavradores maranhenses passam pelo mesmo sofrimento e têm sempre muitas histórias tristes para contar.

Aldenora Mendes da Silva, por exemplo. Ela perdeu, de uma só vez, o pai e o marido. Os dois, Julião Pinto de Souza e Bento Alves de Lima, foram mortos à queima-roupa numa casa de produção de farinha, no povoado Juçaral, município de Lago Verde, algumas semanas depois do assassinato de Antenor, o marido de Maria de Nazaré.

Desesperada, Aldenora ficou entre os dois, chorando, sem saber a quem socorrer primeiro. "O que mais me revoltou, na época, foi que o assassino andava dizendo nas redondezas que tinha matado dois cachorros", relembra, indignada.

Angelita Ferreira de Souza é viúva do ex-líder sindical Gonçalo Ferreira de Souza, o Ferreirinha, assassinado em agosto de 1985 no povoado de Santa Tereza, município de Lago da Pedra. Mesmo sob constantes ameaças à sua vida, ela fez questão de continuar o trabalho do marido e, durante oito anos, esteve à frente da delegacia sindical. "O sangue dele me deu coragem", diz, sem esconder a emoção.

Com muitos filhos para criar, viúvas como Maria de Nazaré, Aldenora e Angelita enfrentam enormes dificuldades para continuar sobrevivendo. A situação se agrava ainda mais com o total desamparo do Estado e o descaso da Justiça na apuração dos crimes. O clima, entre as viúvas, é de angústia e aflição. Até o atestado de óbito de seus companheiros, muitas vezes, lhes é negado.


Juntando tristezas e energias


Indignação. Desejo de justiça. Em abril de 1991, movidas por esses sentimentos, as esposas de trabalhadores rurais assassinados criaram o Movimento de Viúvas Vítimas da Violência no Campo, o MVC. Para isso, contaram com o apoio da Animação dos Cristãos no Meio Rural (ACR), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Núcleo de Apoio às Viúvas de Trabalhadores Rurais (NAV).

Desde então, foram muitos os encontros e reuniões para trocar idéias, discutir e articular a luta contra a violência no campo. A união as torna mais forte, e amadurece dessa forma o movimento que criaram. Oitenta viúvas participam efetivamente das atividades.

"A recuperação da auto-estima, a determinação e a vontade de justiça das viúvas têm potencializado as ações do MVC", avalia Benedito Souza Filho, cientista social e membro da coordenação do Núcleo de Apoio às Viúvas de Trabalhadores Rurais.

Os objetivos do MVC estão bem definidos: as viúvas querem a punição para mandantes e assassinos de trabalhadores rurais e indenização, lá onde o Estado esteve envolvido, através da ação ou da omissão.

Além disso, exigem dos órgãos previdenciários simplificação nos processos de obtenção de pensão por morte. Elas cobram do Ministério Público agilização no andamento dos processos já instaurados e abertura imediata de processo nos casos onde não foi obedecido tal procedimento. Lutam pelo direito à saúde e educação para os órfãos de trabalhadores rurais. Querem reforma agrária plena.


Com João Paulo II e Esquivel


Em sua jornada de luta, as viúvas nunca desperdiçam a chance de fazer ecoar o seu lamento e grito por justiça em manifestações e eventos de todo tipo. Em outubro de 91, vestidas de luto e trazendo o nome dos maridos numa fita amarrada à cabeça, elas se encontraram com João Paulo II em sua passagem por São Luís. "Santo Padre, as viúvas do campo clamam por justiça", disseram ao papa, a quem entregaram um documento pedindo justiça no campo.

Nos dias que precederam a importante visita, o MVC realizou uma vigília com a participação de Dona Olinda Tavares, mãe do padre Josimo, assassinado em Imperatriz, em maio de 1986. Muito emocionada, ela dizia: "A nossa luta é muito dura. Eu espero que o papa consiga, pelo menos, colocar no coração dos opressores um pouco de humanidade".

O documento também foi entregue ao Prêmio Nobel da Paz de 1980, Adolfo Pérez Esquivel, em Brasília, durante o Fórum Nacional contra a Violência no Campo, em dezembro de 91. Esquivel estava acompanhado de duas das Mães da Praça de Maio, da Argentina, que há anos exigem das autoridades do país uma explicação sobre o paradeiro dos familiares desaparecidos durante a ditadura militar (1976-1983).

Em março de 92, as viúvas maranhenses prestaram depoimento à CPI da Pistolagem, da Câmara Federal, e novamente denunciaram a violência no campo. Na Caminhada da Esperança, em junho do ano seguinte, percorreram a pé os 200 quilômetros entre Vitória do Mearim e São Luís.


Cinismo e corpo mole


No momento, uma das principais bandeiras de luta das viúvas é por uma pensão de um salário mínimo. Em agosto de 92, elas levaram essa reivindicação ao então governador do Estado, hoje senador, Édison Lobão (PFL-MA), com quem tiveram uma audiência. Cinicamente, ele respondeu que não dava, porque isso levaria o Estado à falência.

No entanto, às vésperas de deixar o cargo para se candidatar a uma vaga no Senado, Lobão encaminhou um projeto de lei beneficiando as viúvas de ex-governadores com uma pensão vitalícia de quase cem salários mínimos. Houve protestos, mas o decreto acabou sendo aprovado pela Assembléia Legislativa e sancionado pelo sucessor do ex-governador, José de Ribamar Fiquene (PFL-MA).

Em agosto de 94, o deputado federal Domingos Dutra (PT-MA), na época exercendo o mandato de deputado estadual, fez outra tentativa, apresentando uma emenda para garantir a pensão exigida pelas viúvas. Dutra argumentava que o Estado sempre esteve envolvido nos conflitos de terra, de forma direta ou indireta, através da participação das polícias civil e militar nas prisões, torturas e assassinatos de trabalhadores rurais. A emenda era bem fundamentada, mas foi rejeitada.

No mesmo período, numa visita à Procuradoria Geral de Justiça, em Brasília, as viúvas solicitaram a reabertura de todos os processos criminais. A Procuradoria pediu, então, que fosse apresentada uma relação com os nomes das vítimas e prometeu agir imediatamente. Até hoje, nada foi feito. Os assassinos continuam livres, e a responsabilidade do Estado nos crimes, sem apuração.


Campeão da violência


Enquanto isso, a tensão no campo permanece. Em seus relatórios, a Comissão Pastoral da Terra do Maranhão aponta números que preocupam. Só nos últimos dois anos foram registrados 48 conflitos, com dez assassinatos.

São conflitos sangrentos, cuja causa principal é a expansão do latifúndio, que hoje detém quase 80% dos 32 milhões de hectares de terra do Estado. Não é por acaso que o Maranhão é um dos "campeões da violência no campo", junto com o Pará e a Bahia.

A conclusão é da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a violência no campo, de 1992. Uma outra conclusão: "O Estado do Maranhão, de forma ativa e passiva, tem contribuído no processo de concentração fundiária e de violência contra os lavradores".

Feita a denúncia, tudo permanece como antes. A impunidade não conhece limites, e a pistolagem campeia solta.

Corajosas, as viúvas não desistem. Têm força e têm esperança. E sabem que têm muito trabalho pela frente.


"Fiquei enterrada
  naquele sangue"


Aldenora Mendes da Silva, Lora, como é conhecida, mora num local de difícil acesso, o Centro dos Cabecinhas, mas suas histórias correm léguas. Ela lidera a comunidade de doze famílias do povoado onde há dez anos vive com seus nove filhos. Em 1984, uma manhã de domingo marcaria para sempre sua vida.

Nesse dia, presenciou o assassinato de seu pai, Julião Pinto de Souza, e do marido, Bento Alves de Lima. Tentando conter uma lágrima, relata:

"Eu fiquei com o Bento nos meus braços. Ele derramou muito sangue na minha cara, nos meus braços. Levei foi dias com o sangue no meu corpo, nas unhas. Fiquei mesmo foi enterrada naquele sangue".

Gorcino Gabriel Ramos, fazendeiro que tentava expulsar cinqüenta famílias do povoado, foi o autor dos disparos. A Justiça nunca o localizou, apesar de Lora saber enumerar cada passo de sua fuga após o crime, bem como o seu paradeiro atual.

Uma das mais combativas do movimento das viúvas, Aldenora revela que aprendeu bastante nesses anos. "O que é o poder, por exemplo. E que nós precisamos lutar para conseguir ser iguais aos outros." – Márcia Alves.