Reforma agrária



Em legítima defesa

A história da viúva que, ao tentar defender o marido, acabou matando o assassino. Julgamento e absolvição.


No dia 19 de novembro de 1990, o pistoleiro e policial nas horas vagas Marino Santos dirigiu-se à casa do sindicalista Alonso Silvestre Gomes, no povoado de Veloso, município de São Mateus. Perguntou por Alonso e saiu dizendo que iria ao centro de São Mateus.

Maria Rodrigues dos Santos Gomes, esposa de Alonso, porém, percebeu que Marino, ao contrário do que dissera, seguia em direção à roça do marido. Desconfiada, pegou um atalho, chegando quase ao mesmo tempo que o pistoleiro ao local onde se encontrava o marido.

NA PRESENÇA DOS FILHOS – Após uma breve troca de palavras, Marino sacou da cintura um revólver Taurus, calibre 38, e atirou em Alonso. Mas a distância era pouca, e os dois se atracaram. Apavorada, Maria agarrou um pedaço de pau e deu com ele na cabeça de Marino, de quem recebeu muitos chutes. Em determinado momento, ela pegou o facão de Alonso e desferiu um golpe fatal no peito do agressor. Percebeu, então, que o marido estava morto.

Dois dos cinco filhos de Maria presenciaram tudo e estão traumatizados até hoje. A mãe, em estado de choque, não pôde marcar presença no enterro de Alonso. No bolso do pistoleiro policial foi encontrada uma lista com os nomes de outros trabalhadores rurais marcados para morrer. No mesmo papel constavam os nomes de Plácida de Oliveira Costa e Dalila Pereira, mandantes do crime.

Embora o inquérito policial apresentasse evidências de que agiu em legítima defesa, Maria foi processada e pronunciada. Plácida e Dalila nada sofreram. Ironicamente, o Ministério Público arrolou as duas como testemunhas de acusação, desqualificadas, posteriormente, pelos advogados de defesa, José do Carmo Siqueira, Helena Heluy e Hamilton Aragão.

MULHERES DA BÍBLIA – Por determinação da Justiça, Maria foi a julgamento pelo Tribunal do Júri em 27 de setembro de 1995, recebendo a solidariedade de entidades dos direitos humanos do mundo inteiro.

Os bispos católicos maranhenses, num documento, solicitaram uma postura ética e bom senso do Ministério Público no caso. Dirigindo-se "aos cristãos e a todas as pessoas de boa vontade", eles pediam que fossem reconhecidas, "no ato extremo de Maria, as razões e emoções profundas de um coração de mulher, de mãe e de esposa", que gera, protege e defende a vida, com carinho, mansidão, decisão, coragem e legitimidade.

Maria, disseram ainda os bispos, convida a refletir na coragem das mulheres da bíblia que "defenderam a vida, o seu povo, os seus maridos e os seus filhos, enfrentando a violência e a injustiça".

Uma vigília foi organizada por pessoas de comunidades, movimentos e organizações populares. O pároco de São Mateus, Cláudio Bergamaschi, e mais de vinte agentes pastorais fizeram jejum e foram acompanhados por correntes de orações.

O julgamento durou cerca de doze horas. Passava de mil o número de pessoas presentes, incluindo jornalistas, religiosos, sindicalistas e populares. A decisão do Conselho de Sentença foi unânime: 7 a 0 em favor de Maria. A juíza Maria José França Ribeiro proferiu as palavras de absolvição. Acabava naquele momento a agonia de Maria.

CABEÇA ERGUIDA – Hoje, Maria Rodrigues faz parte da coordenação do Movimento de Viúvas da Violência no Campo, o MVC. "Todo o sofrimento com a morte de Alonso e o julgamento me deram força e coragem para continuar lutando pelo fim da violência e da impunidade no campo", ela diz com segurança.

Endossando as palavras de Maria, Teresinha Rodrigues Amorim, viúva de Francisco Fernandes Rodrigues, assassinado em outubro de 1989, enfatiza: "Mesmo com ameaças e perseguições, não vamos desistir de lutar pela justiça e pela punição dos assassinos dos nossos maridos".

Desejo de vingança? Não. O que transparece, na conversa com as viúvas, é uma imensa sede de justiça. Sede de acabar com a violência, que já ceifou a vida de tantos Raimundos, Joãos, Antônios, Josés e Marias, cujo sangue regou a terra pela qual eles tanto lutaram e pela qual outras e outros, milhões, continuam a lutar neste Brasil de todos nós. – A.C.O.